"A verdade é que ainda persiste em Portugal uma certa saudade imperial e, sobretudo, uma enorme ignorância no que diz respeito à história do próprio idioma. É sempre bom recordar que antes de Portugal colonizar a África, os africanos colonizaram a Península Ibérica durante oitocentos anos. A língua portuguesa deve muito ao árabe. A partir do século XVI, com a expansão portuguesa, a língua começa a enriquecer-se, incorporando vocábulos bantos e ameríndios, expressões e provérbios dessas línguas, etc.. A minha língua é esta criação coletiva de brasileiros, angolanos, portugueses, moçambicanos, caboverdianos, santomenses, guineenses e timorenses. A minha língua é uma mulata feliz, fértil, generosa, que namorou com o tupi e com o ioruba, e ainda hoje se entrega alegremente ao quimbundo, ao quicongo ou ao ronga, se deixando engravidar por todos esses idiomas.”
Passando ao largo da banalidade do texto (acredito que um leitor médio do Globo tenha uma noção desse percurso histórico da língua) e da literatice delicodoce ("A minha língua é uma mulata feliz", etc.), não só não me reconheci na prosa como me perguntei se seria o mesmo Agualusa que foi jornalista do Público, viveu muito anos em Portugal (onde creio que mantém residência), faz parte dos círculos literários portugueses, vai regularmente às televisões e às rádios -- ou se seria um outro Agualusa que nunca tivesse passado os limites do Huambo.
Fui ler a crónica aqui. Tem que ver com o Acordo Ortográfico, uma controvérsia que parece cansá-lo. Agualusa pega num exemplo de um desqualificado qualquer que há anos, num colóquio, gritou salazarentamente o impropério: "a língua é nossa", e a partir daqui lança-se ao alegado saudosimo colonial que "ainda persiste em Portugal". Um leitor brasileiro que pouco mais saiba de nós do que as anedotas de português e do bigode, estará autorizado a pensar que esse saudosismo identificado por Agualusa é um, digamos, sentimento que em Portugal tem expressão. Ora isso é tão estúpido como eu dizer que em Angola persiste um sentimento de inferioridade de país colonizado -- é inconcebível.
Agualusa conhece muito bem Portugal para saber destrinçar a vox pop ignara das pessoas que usam, trabalham e estimam a língua. Sabe que a esmagadora maioria dos escritores e dos intelectuais portugueses é contra o "Aborto Ortográfico" não por saudosismo imperial, mas pelos danos que ele provoca à própria língua. José Saramago e Vitorino Magalhães Godinho eram contra o AO por nostalgia imperial? António Lobo Antunes ou José Pacheco Pereira são contra o AO por isso e também por "enorme ignorância no que diz respeito ao idioma? Os editorialistas do Jornal de Angola, lúcidos opositores do AO, fazem-no por mentalidade de colonizados?...
Apontemos os defeitos todos, antigos colonizadores, ex-colonizados, mesmo com banalidades e kitsch tropical, mas não seria mau fazê-lo de boa-fé e com honestidade intelectual.