«Toda a memória lhe vem das janelas em guilhotina da 1.ª Classe, para onde tantas vezes olhou em vão, na esperança de que viessem socorrê-la. As irmãzinhas haviam-na abandonado num camarote sem ar e sem vigias: uma luz mortuária por cima da cabeça, sacos de plástico para o enjoo arrumados numa bolsinha fatídica, o beliche estreito e a mistura dos cheiros que só existem nos barcos -- salitre, tintas quentes e o amoníaco entorpecente das latrinas muito próximas. Dos porões, chegavam-lhe aos ouvidos atordoados o choro das vacas e das cabras, os urros dos vómitos e o lamento contínuo de muitas outras mulheres. Depois entrara nela o zumbido que o mar transmite às paredes trémulas dos barcos.»
João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas (1988)
Sem comentários:
Enviar um comentário