A categoria "romance histórico" está de tal modo gasta e desacreditada, que classificar como tal A Ponte Sobre o Drina (1945), de Ivo Andrić, constituiria um afunilar sem sentido de um grande romance -- um daqueles livros que enformam a cultura europeia e a civilização ocidental. "Como, ocidental?", perguntarão os mais apressados que saibam do que se trata, -- "como, se o pano de fundo é a Bósnia, durante séculos otomana, tornada austríaca já muito dentro do século XIX, iugoslava, finalmente, após a Grande Guerra?"
"Ocidental, pois", digo eu, porque se desenrola numa zona de fronteira, em que se entrecruzam e convivem as três religiões do Livro, e porque desde o conceito do limes romano a Europa sempre se construiu no confronto-entendimento com o outro tornado próprio (os chamados bárbaros germânicos são disso a melhor ilustração).
Existe essa ponte (hoje, património da Unesco), mandada construir por Mehemed-Paxá, um antigo janízaro (tropa de elite de infantaria do sultão, recrutada coercivamente por entre as crianças cristãs); um sérvio que se alcandorou a grão-vizir (primeiro-ministro) do Império Otomano, cargo que ocupou durante catorze anos (1565-1579), até à sua morte, e durante a época de ouro imperial turca. Mehemed-Paxá era natural duma aldeia nas cercanias de Višegrad (hoje integrante da República Sérvia da Bósnia), e a ponte edificada torna-se via obrigatória de circulação entre Oriente e Ocidente. Sob a sua égide se desenrola este romance, abrangendo cerca de quatro séculos e uma multiplicidade de histórias de vida: «Muitos, muitíssimos de nós sentámo-nos ali, pousados sobre esta pedra bem talhada e polida, e, perante eternos jogos de luz nas montanhas e das nuvens do céu, desenredámos os fios dos anónimos destinos das gentes da cidade, eternamente os mesmos, mas eternamente emaranhados de uma nova maneira.»
A Ponte Sobre o Drina, ao longo da suas 380 páginas, faz-nos reflectir também sobre a acção do tempo, tão corrosiva no que respeita a sistemas de governo e a ideologias e tão lenta no transformar da essência humana, sabiamente reflectida naquilo que o escritor nos dá como «a filosofia inconsciente da cidade: a vida é um milagre incompreensível, porque se consome e dilui sem cessar, todavia continua rija e sólida "como a ponte sobre o Drina".» Andrić (Prémio Nobel de 1961) é um escritor fino, inteligente e brilhante;
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