Porque faz sentido ler Bernardes em 2014? Pela mesma razão que não nos dispensamos de ver a pintura de Sequeira ou de ouvir as sonatas de Seixas. O grande estilo não prescreve, e, tratando-se de prosa edificante e religiosa, é irrelevante o sermos ateus, mesmo que o assunto seja Deus, o Diabo e a Virgem Maria, a salvação ou a condenação, Paraíso ou Inferno. Pelo contrário, se dotada de sincera profundidade, o supremo gozo do leitor é o de assistir à exímia arte da escrita desenrolar-se diante dos olhos, ao sábio dosear dos recursos de estilo, por forma a manipular o leitor ou o ouvinte. Atente-se neste exemplo retirado dos Exercícios Espirituais (1686), em que o autor procura definir Deus, terminando por admitir o aparente fracasso:
«[...] Deus é um supremo Senhor, de infinita majestade e perfeição, de infinita sabedoria, poder e santidade, o qual só de si mesmo é compreendido. É uma luz escuríssima por sua muita claridade, um abismo de perfeições, quanto mais conhecidas mais ignoradas, um ser eterno e incomutável, fonte de todo o ser criado. A Eternidade é o seu século, a Imensidade o seu trono, a Omnipotência o seu ceptro. Dentro de si, mora e vive uma vida felicíssima, sem princípio, sem fim, sem novidade, sem defeito, sem mudança. É Monarca independente, absoluto Senhor, Pai amoroso, de cuja bondade e glória comunicada estão cheios os Céus e a terra. Este é Deus, ou para dizer melhor, este não é Deus, porque Deus não é o que na palavra ou pensamento nem humano nem angélico pode caber. [...]»
Bernardes era também um grande narrador: os seus textos exemplares são construídos para prenderem o leitor/ouvinte, como se se tratasse duma obra de recreação profana e não aquilo que efectivamente pretendem ser: instrumentos para a salvação da alma.
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