sábado, janeiro 19, 2013

LÁZARO

Estava de pé, em frente da barraca, meio embrutecido, amortalhado num fato de malha sujo, que se lhe rugava nas barrigas das pernas esqueléticas; fitava o campo lívido, taciturno, entristecido pelas poucas árvores despidas de folhagem, que se erguiam esguias por baixo dum dossel de nuvens pardacentas, humedecidas pela neblina. Fitava o campo lívido e o clarão sinistro da fome incendiava-lhe o negrume dos olhos. A barraca, coberta de lona encharcada pela chuva, assemelhava-se na penumbra a enorme animal, todo ossos e pele flácida.
Passaram um dia sem comer; os últimos bocados de pão havia-os devorado naquela manhã o filho, esse pequeno monstro humano, de crânio calvo e separado como esférica abóbora. Ele, porém, o mísero, tinha o ventre mais vazio do que o tambor no qual rufava, para atrair os curiosos e exibir o horrível fenómeno a troco dalguns cobres. Não se enxergava, porém, alma viva e a criança jazia dentro da barraca, deitada num montão de velhos farrapos, as pernas contorcidas, o busto deformado, matraqueando os dentes num acesso de febre, enquanto o rufar das baquetas na pele do tambor lhe produzia espasmos dolorosos nos temporais.
Do céu escurentado tombava uma chuva miudinha, persistente, raivosa, que, por toda a parte se infiltrava, encharcava até à medula, gelava o sangue.
rufar do tambor perdia-se sem eco na tristeza do crepúsculo outona; e Lázaro rufava, rufava de pé, lívido, triste, cravando o olhar angustiado na sombra como para descortinar nela algo que devorasse, apurando o ouvido a cada momento na ânsia de ouvir as vaias de alguns borrachos que se aproximassem. Por duas ou três vezes se voltou para examinar o ignóbil farrapo de carne viva, que arquejava estendido por terra, e, de todas, os olhos do mísero fixavam outros onde se lia a suprema dor.
Não se avistava vivalma. A sombra dum cão surgiu duma viela negra, passou com rapidez em frente de Lázaro, cauda entre as pernas, e parou por detrás da barraca para esburgar um osso encontrado Deus sabe onde. O tambor calava-se; rajadas de vento faziam turbilhonar folhas secas arrancadas dos galhos das carvalheiras. Pairou seguidamente pávido silêncio, silêncio apenas quebrado de vez em quando pelo rosnar do cão, o surdo rumor das cordas de água fustigando a lona branca e o estertor da criança -- um estertor que parecia sair duma garganta mutilada.

Gabriele d'Annunzio, Terra Virgem, trad., M. L., Lisboa, Editorial Minerva, 1955.

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