quarta-feira, outubro 12, 2005

Castro em Vila Franca (1)

Na primeira metade do século XX houve um nome que se destacou por uma atitude cultural, cívica e moral, tornando-se num ponto de referência sem paralelo duma ética libertária entre nós. E por diversas razões:
Em primeiro lugar, a circunstância de este nome, que é o de Ferreira de Castro, ser simultaneamente um autor de larguíssima audiência interna, e também o mais lido o mais traduzido do seu tempo, proeminente durante cerca de quarenta anos -- um tempo imenso. Esta difusão dos seus livros, além dos seus textos de ocasião, das suas entrevistas, dos seus depoimentos amplificavam a mensagem essencial de liberdade que perfilhou.
Outro aspecto que contribuiu para tornar Ferreira de Castro num caso à parte foi a circunstância de ele, anarquista e escritor, aparecer, senão isolado, pelo menos muito minoritário na cena cultural portuguesa, em que dominavam, por um lado, a acção oficial e oficiosa do Estado Novo, em especial através de António Ferro e do Secretariado da Propaganda Nacional, e por outro uma cultura de oposição em que se procurava hegemonizar um cânone neo-realista, configurado pelos jovens intelectuais ligados ao PCP. Após o 28 de Maio de 1926, o anarquismo e a sua vertente sindicalista, muito forte entre nós, definha inexoravelmente; na década de trinta, o atentado contra Salazar, protagonizado por Emídio Santana, e a greve-geral da Marinha Grande, já com o concurso de militantes comunistas, são uma espécie de canto do cisne do libertarismo organizado. Isto sem embargo das correntes minoritárias, com maior ou menor importância cultural e literária, dos republicanos históricos aos antigos integralistas, e de gente que circulava entre um e outro lado. E havia ainda os que não se misturavam, não por sobranceria mas por razões de princípio. Lembremos o caso de José Régio, um caso exemplar, um dos mais notáveis escritores portugueses do seu tempo e a forma como ele teve de lidar com as pressões de um e de outro lado, pese embora os protestos da maior admiração e respeito que ambos os lados faziam, o que, ironicamente, por vezes era até verdade...

José Maria Ferreira de Castro nasceu a 24 de Maio de 1898 nos Salgueiros, uma aldeia da freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, filho de caseiros humildes.
A infância, marcada pela morte do pai, decorreria, contudo, com uma previsível normalidade, até à altura em que, engrossando a tradicional corrente migratória para o Brasil, se decide pela ida para a antiga colónia, corria o ano de 1911. Ao que parece, uma paixoneta juvenil não correspondida por uma rapariga muito mais velha, Margarida, levaram-no à audácia duma decisão inusitada para uma criança ainda imberbe de doze anos incompletos.
Chegado a Belém do Pará já no período da crise da borracha, recomendado a um vago parente que não o amparou como seria de esperar, foi o pequeno Zeca mandado para o seringal «Paraíso», em plena floresta virgem, nas margens do rio Madeira, braço do Amazonas. Nesse magnífico texto de memórias que é a «Pequena história de "A Selva"», Castro lembrou, dolorosamente:

(continua)

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