sábado, junho 29, 2024

a arte de começar - VIÚVAS DE VIVOS

«Escolhera o mestre do barco aquela noite negra, para que a Lua não assistisse à largada. Também não compareceram as estrelas, com grande contentamento do velho João Frade, posto lhes quisesse muito, mas no alto, em plena derrota, para conversar com elas  sobre coisas noutros tempos acontecidas, já que sem idade para sonhar com vida nova.»

Viúvas de Vivos (1947), de Joaquim Lagoeiro (1918-2011), aborda o tema das mulheres que ficavam anos sem ver os maridos, emigrados para a América do Norte, como outrora sucedia com as companheiras dos navegadores.

O título do romance é bastante expressivo, pois é viúva de vivo quem tem marido demasiado longe de si, na emigração, na guerra ou noutras situações extremas -- e sem perspectivas de reencontro a breve trecho.

A frase inicial transmite uma atmosfera carregada de ilicitude, de clandestinidade: há um barco que partirá de noite, tão de breu que nem a Lua poderá assistir à largada, situação reforçada a seguir com a referência às estrelas, que nessa noite não se vislumbravam.

Outra sensação que podemos colher deste incipit, trazida por uma informação objectiva que nos é dada pelo narrador, é a de que algo com um certo grau de grandeza irá ocorrer, uma vez que o "velho João Frade" é um lobo do mar, um capitão de longo curso, pois trata-se de alguém que costuma falar com as estrelas, certamente para confirmar se a rota está a ser seguida à risca.

Mas é no fim do parágrafo que o leitor fica ciente de que a emigração é um tópico central do romance -- a emigração e as suas decorrências na vida social e mental de quem a sofre, de quem parte e quem fica, ideia que percebemos bem a partir do título: João Frade já vivera tempo demasiado para que pudesse permitir-se «sonhar com vida nova.» 

Emigração clandestina e abandono das mulheres (e dos filhos) é pois o que nos dá, sem grande margem para dúvidas, título e parágrafo inicial deste belo romance, que segue por aí fora, contando-nos mais das mulheres que por cá ficaram do que dos homens que saíram, pois nelas está o foco; mas umas e outros aparecem-nos na narrativa como vítimas duma terra madrasta e medíocre, com o circuito a fechar-se no explicit, o fim da narrativa.

O tempo histórico não é referido, mas percebe-se contemporâneo, até por algumas alusões de modernidade: automóveis, um médico de visão progressiva, além do padre, a farejar o Vaticano II, ainda duas décadas à frente, personagem deliciosa a fazer lembrar a bonomia austera do senhor reitor do Júlio Dinis.

O espaço é indefinido. À medida que a narrativa avança, com alusões que poderiam referir-se a uma vasta área do litoral norte -- e digo norte, pois as festas sob a égide de determinados santos concorrem para fornecer mais dados ao leitor familiarizado com esse folguedo -- o lugar vai-se precisando, embora nunca nomeado: a aldeia de Veiros, concelho de Estarreja, terra-natal do autor.

Parece outro tempo, outro mundo, mas foi ainda ontem.

2 comentários:

Manuel M Pinto disse...

Em 1982 estive em Castro Laboreiro (Melgaço) e nessa altura tomei conhecimento da singular expressão "Viúvas dos Vivos" aplicável às mulheres dos emigrantes!...

Veja "«Viúvas dos vivos»" no YouTube:
https://youtu.be/GO12JbxGM74?si=RjMMbsOMqCEGjNzw

R. disse...

Obrigado!