sábado, outubro 31, 2020

Sean Connery (1930-2020)


 

«All Right All Night»

a arte de começar

«CRIANÇAS LADRONAS [...] Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido notícias sobre a atividade criminosa dos "Capitães da Areia", nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos, que se tronam diários, fazendo jus a uma imediata providência do juiz de menores e do Chefe de Polícia.»

Jorge Amado (1912-2001), Capitães da Areia (1937) 

quinta-feira, outubro 29, 2020

a arte de começar mais depressa:

«Branca». «D. Branca morava no Porto e sofria, por vezes, de chiliques inofensivos.»

«Roxo». «Tinha os olhos roxos, de vidente.»

«Amarelo». «Findo o espectáculo, em toda assistência se notava um contentamento pouco expressivo.»

«Azul». «A transfusão de sangue tinha operado o seu milagre -- realmente o sangue azul corria-lhe nas veias em caudal abundante, até mesmo para um bom aproveitamento sanguíneo eléctrico.»

«Pardos». «Os Pardos viviam fora da cidade.»

«Vermelho». «Todas as vezes que entrava numa sala onde estava gente ele fazia-se vermelho.»

«Preto». «A morte do Preto começava na terça-feira».

«Verde». «Foi gratuitamente e por acaso que estando ontem na Ribeira das Naus a olhar para um Tejo verde me espantei a trouxe-mouxe.»

Ruben A. (1920-1975), Cores (1960)

quarta-feira, outubro 28, 2020

50 discos: 29. POWER IN THE DARKNESS (1979) - #8 «Man You Never Saw»




«Leitor de BD»

                                                    François Bourgeon, Os Passageiros do Vento

                                                                                                                                      jornal i

segunda-feira, outubro 26, 2020

a arte de começar

«Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho, o Fidalgo da Torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita cor-de-rosa, trabalhava. Gonçalo Mendes Ramires (que naquela sua velha aldeia de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo "Fidalgo da Torre") trabalhava numa novela histórica, "A Torre de D. Ramires", destinada ao primeiro número dos "Anais de Literatura e de História", revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenáculo Patriótico, em casa das Severinas.»  

Eça de Queirós (1845-1900), A Ilustre Casa de Ramires (1900, póstumo)

50 discos: 21. GRAND HOTEL (1973) - #8 «Fires (Which Burns Brightly»




domingo, outubro 25, 2020

"O Cânone" de quem? -- do que falta numa lista, passado a limpo

1.

Acabo de ver a lista de cinquenta nomes assinalados como o cânone literário português, na opinião de três académicos: António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen. Lista bastante defendida no anúncio da editora como nas declarações ao Observador. Antecipando-se à discussão que aí virá, espera-se.

As escolhas são sempre louváveis, desde que honestas e justificadas, porque representam (ou podem representar…) a coragem de escolher como a de excluir. O título, porém, é de menos, pois mesmo sem me pronunciar sobre o que ainda não li, já o posso fazer sobre as ausências. E há ausências de peso, que absolutamente não poderiam verificar-se numa obra que se arroga a pretensão de estabelecer o dito cânone, se o título é para levar a sério. Aliás, o mesmo Observador, com  desenvoltura jornalística, anunciara que o cânone viria aí, perguntando(-se): "Quem são os grandes escritores que formam o cânone da literatura portuguesa?"

Ora, enquanto leitor não totalmente destituído ou desinformado, considero que é um jogo de apostas avançar com nomes que tenham publicado há menos de cinquenta anos; mas o que me parece temerário é trazer para o cânone autores que tenham entrado por este século adentro. Diria até que todos quantos iniciaram a publicação da totalidade ou da parte mais importante das respectivas obras depois do 25 de Abril de 1974 deveriam estar ausentes dum livro que se arroga a pretensão com que se intitula.

Claro que podemos sempre arriscar nomes, percepções (eu tenho algumas, que apenas têm o valor dessa intuição, mais ou menos alicerçada nas minhas próprias qualidades de leitor, satisfatórias ou medíocres, para o caso é irrelevante). E, no fundo, é mesmo disso que se trata, com excepção para o século XIX, o único período que me parece (quase) incontroverso. Talvez, por isso, mais apropriado -- embora menos comercial e cintilante -- fora reconhecer isso mesmo com um título mais singelo, umas Propostas para a Fixação de um Cânone [Literário Português], ou coisa que o valha. Tenho pena, porque demasiada presunção ou falta de humildade envenenam-me a leitura; e tanto faz que venham agora dizer que se trata de uma mera lista como outras possíveis, o que se vê à vista desarmada. 

Começo por subscrever no texto da página da editora, certamente da autoria de um dos coordenadores: «Os grandes escritores não são escolhidos por consenso ou por votação popular, mas por terem sempre leitores, mesmo que poucos, ao longo do tempo.» Certamente que o livro desenvolverá o conceito. Eu acrescentaria  que Os grandes escritores de uma língua e de uma comunidade são aqueles que inauguram um modo de expressão cuja voz continua a fazer-se ouvir nas vozes de outros que lhe sucederam, tendo inscritos um conjunto de tópicos reveladores da pertença a uma nação e/ou a um território.

O mesmo texto informa que não se trata de “um guia neutro para a literatura portuguesa”. Se a neutralidade absoluta é impossível, não deve deixar de ser perseguida num trabalho desta natureza, sob pena de irremediavelmente o comprometer não digo na sua credibilidade, mas na utilidade que pode ter para quem não esteja muito interessado nas opiniões dos editores e respectivos colaboradores. 

Parece que o livro tem artigos sobre movimentos e revistas literárias (cuja dimensão desconheço), o que, à partida, tornará híbrida a natureza da obra, oscilando entre o ensaísmo e a historiografia cultural. [ver 5., adenda] Quanto a isso, talvez ainda não se fizesse melhor do que a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, pese embora as suas (poucas) omissões quanto a escritores relevantes: se a memória não me atraiçoa, lembro-me dos nomes do romancista, ensaísta e poeta Francisco Costa (1900-1988) e do poeta presencista Fausto José (1903-1975), mas haverá outros.

Uma nota marginal, incrédula e possivelmente preconceituosa sobre a inclusão numa obra deste teor de artigos sobre literatura feita por mulheres e por homossexuais: não são temas de somenos, mas não vejo grande utilidade numa obra que pretende definir o cânone. É o espírito do tempo que levará, em obras futuras, a escrever-se sobre escritores vegetarianos, por exemplo. Que interesse tem isso para o Cânone, a não ser marginalmente? Não vejo.


2.

São-nos servidos cinquenta autores, por ordem alfabética. Mais uma vez, o título peca por abusivo, para ser suave. Se a intenção fosse a de estabelecer o cânone só por coincidência chegaríamos a um nome redondo, cinquenta. O cânone será o que será, 47 ou 114. No entanto,  cinquenta nomes para novecentos anos de país parece-me modesto, por muito restritivo que se seja.

O cânone, cronologicamente, começa com Fernão Lopes e termina com uma única autora viva -- escritora extraordinária, aliás, Maria Teresa Horta (1937), arrolada nas "Três Marias". Vou seccionar os cinquenta nomes em três grupos: até ao século XVIII, séculos XIX e XX.

Escritores nascidos até ao século XVIII, são onze, ou seja, 22% do total: Fernão Lopes (c.1380-c.1460), D. Duarte (1391-1438), Gil Vicente (c.1465-c.1536), Sá de Miranda (c.1481-1558), Bernardim Ribeiro (c.1482-c.1552), Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583), Luís de Camões (c.1524- c.1580), Frei Luís de Sousa (1555-1632), o Pe. António Vieira (1608-1697), António José da Silva (dito O Judeu, 1705-1739) e Bocage (1765-1805). 

Comecemos por notar a estranha ausência da poesia trovadoresca, o que sem dúvida estará justificado [ver 5.]. O problema, mais uma vez: uma obra que se define como O Cânone não poderia deixá-la de fora, porque mais canónico que o trovadorismo não há. Fica a curiosidade pela justificação. Quanto ao resto, nada a dizer quanto às presenças, a não ser registar a boa surpresa de ver o rei eloquente, D. Duarte, que talvez não estivesse mal acompanhado do seu irmão, o infante D. Pedro (1392-1449),  príncipe das sete partidas, aliás um dos grandes portugueses destes quase 900 anos.

Sendo também restritivo, e sem querer alardear erudição que me fique curta nas mangas, a grande perplexidade é a ausência do Pe. Manuel Bernardes (1644-1710), prosador onde bebem Camilo e Aquilino. Não pertence ao cânone o Bernardes? Outra perplexidade, Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622), não apenas o poeta, mas também o prosador de A Corte na Aldeia (1619); também não?... 

Fico-me por estes dois, mas poderia lançar o António Ferreira (1528-1569) de A Castro (póstumo, 1587), o ascetismo bucólico do Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), os sermões do Frei António das Chagas (1621-1692).

Também a literatura dos Descobrimentos e da Expansão me parece subrepresentada, a não ser indirectamente, dos cronistas aos autores de relatos, o Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) ou o Pero Vaz de Caminha (1450-1500). O meu conhecimento dos autores deste período é superficial, mas não me parece que o cânone literário português os possa deixar de fora.


3.

O século XIX é facílimo. Eles aí estão todos bem à mostra, à espera de quem os pique, excepto um, que ficou para trás, e não devia. Não há grandes dúvidas sobre os autores que integram o cânone oitocentista, onze também aqui, como o correspondente a toda a literatura escrita até ao século XVIII: Almeida Garrett (1799-1854), Alexandre Herculano (1810-1870), Camilo Castelo Branco (1825-1890), João de Deus (1830-1896), Júlio Dinis (1839-1871), Eça de Queirós (1845-1900), Oliveira Martins (1845-1894), Antero de Quental (1848-1891),Gomes Leal (1848-1921), Cesário Verde (1855-1886), António Nobre (1867-1900).

Apraz-me ver João de Deus e Júlio Dinis neste rol. Há trinta anos teriam sido varridos, certamente ainda se faria sentir sobre ambos o labéu da "ingenuidade", quando não, no caso do romancista d'A Morgadinha dos Canaviais, o de escritor cor-de-rosa. Há porém uma ausência que não compreendo, e ela é a de Fialho de Almeida (1857-1911). Nunca ninguém escrevera como ele e eventuais epígonos não atingem o seu nível, nem por vezes no mal-estar que provoca. Trata-se de uma falta significativa. Há um nome cuja não inclusão me levanta as maiores dúvidas, o de Ramalho Ortigão (1836-1915). Então e As Farpas?, deitam-se fora? Imitando a parcimónia: tenho também dúvidas de que o Guerra Junqueiro (1850-1923) seja arredado de ânimo leve, mas, dos três, é aquele cuja ausência menos me choca. E, já agora, lanço um nome para ponderação, o do exímio contista que foi o Conde de Ficalho (1837-1903). Não me parece que lá ficasse mal, mas precisaria de relê-lo para ter uma ideia mais segura.


4.

Quarenta e quatro nomes, 66% da lista para os escritores do século XX, em que os três primeiros começam a publicar ainda no século anterior, e a antepenútlima, em data de nascimento, felizmente ainda viva e a publicar: Camilo Pessanha (1867-1926), Raul Brandão (1867-1930),Teixeira de Pascoais (1877-1952), Aquilino Ribeiro (1885-1963), Fernando Pessoa (1888-1935), Mário de SáCarneiro (1890-1916), Irene Lisboa (1892-1958), José de Almada Negreiros (1893-1970), Florbela Espanca (1894-1930), José Régio (1901-1969), José Rodrigues Miguéis (1901-1980),Vitorino Nemésio (1901-1978), Miguel Torga (1907-1995), Jorge de Sena (1919-1978), Ruben A. (1920-1975), Carlos de Oliveira (1921-1981), Maria Judite de Carvalho (1921-1988), Agustina Bessa Luís (1922-2019), José Saramago (1922-2010), Mário Cesariny (1923-2006), Alexandre O’Neill (1924-1986), Herberto Helder (1930-2015), Ruy Belo (1933-1978), Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), Luiza Neto Jorge (1939-1969), As Três Marias: Maria Teresa Horta (1937), Maria Velho da Costa (1938-2020) e Maria Isabel Barreno (1939-2016). e Luiza Neto Jorge (1939-1989). Não discuto nenhum: mesmo os poucos que aqui estão que dificilmente podem ser considerados grandes têm o seu lugar no cânone literário português. Estranho algumas ausências, como as do António Botto (1897-1959) ou Vergílio Ferreira (1916-1996): porém, eu sei que daqui a cem anos o Aquilino será lido, não sei se com o V.F. sucederá, quem saberá dizê-lo?...

Continuando a ser restritivo -- poderiam estar aqui dezenas de nomes, não atirados a esmo, em especial na poesia --, avanço com nove escritores, cuja ausência dir-se-ia escandalosa se houvesse lugar a escândalos, num livro que se apresenta como o cânone. A constatação dessa ausência significa que o livro, com título pomposo e definitivo, serve para pouco, relativamente àquilo a que se propõe: M. Teixeira-Gomes (1860-1941), ou o primado da estética, sem par. Ninguém tem a mesma elegância informada, desassombrada, cultíssima. Manuel Laranjeira (1877-1912), uma escavação interior desapiedada, que vim a encontrar num Cioran; o tal que levou o Unamuno a qualificar-nos como povo de suicidas. Jaime Cortesão (1884-1960), porventura o maior historiador português do século (está para ele como Herculano para o anterior, portador de uma ideia de país que foi confirmá-la nas fontes. Ferreira de Castro (1898-1974), o romance português era uma coisa antes dele e foi outra depois; ninguém falara do país da maneira como o fez. Foi o pai do neo-realismo. A partir de Emigrantes (1928) não tem um só romance menor.  Tomaz de Figueiredo (1902-1970) é uma outra estética, não cosmopolita, à maneira do Teixeira-Gomes, mas castiça. É o nosso Lampedusa antes de O Leopardo, como se dos olhos de um príncipe criança. Saul Dias (1902-1983) -- o pintor Júlio [Maria dos Reis Pereira], irmão de Régio, poeta da palavra essencial, justa e definitiva. Alves Redol (1911-1969), ficcionista de sangue quente, duma têmpera  de romancista como poucos, de longe um dos grandes do século, como o século fará questão de registar. Manuel da Fonseca (1911-1993,) tão neo-realista e tão singular, ele é o Alentejo profundo e dramático, por vezes trágico, no romance, no conto, na poesia. Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), como não?, a palavra decantada, o canto dos tópicos nacionais, o mar, as navegações, mas também a liberdade, a dignidade, que é o contrário da servidão e do aviltamento. E Rui Knopfli (1932-1997), uma expressão eloquente e desafiante, que se faz também de uma interpelação ao cânone. Poderia continuar, mas creio que será suficie.

Em conclusão: um título desastroso dum livro que certamente terá as suas virtualidades. Mas um título é o mais importante depois de tudo o que está lá dentro.  O organizador Miguel Tamen, em declarações ao Obervador: sustentou«Quem acha que certos nomes deviam estar lá, tem bom remédio, escreva um livro. É disso que precisamos.» Como não concordar?


5. Adenda. Folheado anteontem, verifiquei tratar-se de artigos breves. Há um dedicado à poesia trovadoresca e outro ao renascimento, bem como à crítica literária, prémios literários, memorialística, entre outros que não retive. Não vi na consagrado às narrativas de viagens, outra falha importante.

«I Am The Resurrection»

sábado, outubro 24, 2020

quarta-feira, outubro 21, 2020

"O Cânone" de quem? - do que falta numa lista (4)

(Continuação do comentário à lista de O Cânone, edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen).

Quarenta e quatro nomes, 66% da lista para os escritores do século XX, em que os três primeiros começam a publicar ainda no século anterior, e a antepenútlima, em data de nascimento, felizmente ainda viva e a publicar:Camilo Pessanha (1867-1926), Raul Brandão (1867-1930),Teixeira de Pascoais (1877-1952),Aquilino Ribeiro (1885-1963),Fernando Pessoa (1888-1935),Mário de Sá‑Carneiro (1890-1916),Irene Lisboa (1892-1958),José de Almada Negreiros (1893-1970), Florbela Espanca (1894-1930),José Régio (1901-1969),José Rodrigues Miguéis (1901-1980),Vitorino Nemésio (1901-1978) Miguel Torga (1907-1995), Jorge de Sena (1919-1978),Ruben A. (1920-1975), Carlos de Oliveira (1921-1981),Maria Judite de Carvalho (1921-1988), Agustina Bessa‑Luís (1922-2019),José Saramago (1922-2010), Mário Cesariny (1923-2006), Alexandre O’Neill (1924-1986), Herberto Helder (1930-2015),Ruy Belo (1933-1978),Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), Luiza Neto Jorge (1939-1969),  Ruy Belo (1933-1978), "As Três Marias": Maria Teresa Horta (1937), Maria Velho da Costa (1938-2020) e Maria Isabel Barreno (1939-2016). Não discuto nenhum: mesmo os poucos que aqui estão que dificilmente podem ser considerados grandes terão o seu lugar no cânone literário português. Estranho algumas ausências, como as do António Botto (1897-1959) ou Vergílio Ferreira (1916-1996), sem grande escândalo, porém: eu sei que daqui a cem anos o Aquilino será lido, não sei se com o V.F. sucederá o mesmo, quem saberá dizê-lo?...

Continuando a ser restritivo -- poderiam estar aqui dezenas de nomes, não atirados a esmo, em especial na poesia --, avanço com nove escritores, cuja ausência dir-se-ia escandalosa se houvesse lugar a escândalos, num livro que se apresenta como o cânone. A constatação dessa ausência significa que o livro, com título pomposo e definitivo, serve para pouco, relativamente àquilo a que se propõe: M. Teixeira-Gomes (1860-1941), ou o primado da estética, sem par. Ninguém tem a mesma elegância informada, desassombrada, cultíssima. Manuel Laranjeira (1877-1912), uma escavação interior desapiedada, que vim a encontrar num Cioran; o tal que levou o Unamuno nos qualificasse como povo de suicidas. Jaime Cortesão (1884-1960), porventura o maior historiador português do século (está para ele como Herculano para o anterior), portador de uma ideia de país que foi confirmá-la nas fontes. Ferreira de Castro (1898-1974), o romance português era uma coisa antes dele e foi outra depois; ninguém falara do país da maneira como o fez. Foi o pai do neo-realismo. A partir de Emigrantes (1928) não tem um só romance menor.  Tomaz de Figueiredo (1902-1970) é uma outra estética, não cosmopolita à maneira do Teixeira-Gomes, mas castiça. É o nosso Lampedusa antes de O Leopardo, como se dos olhos de um príncipe criança. Saul Dias -- o pintor Júlio [Maria dos Reis Pereira], irmão de Régio, poeta da palavra essencial, justa e definitiva. Alves Redol (1911-1969), ficcionista de sangue quente, duma têmpera  de romancista como poucos, de longe um dos grandes do século, como o século fará questão de registar. Manuel da Fonseca (1911-1993,) tão neo-realista e tão singular, ele é o Alentejo profundo e dramático, por vezes trágico, no romance, no conto, na poesia. Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), como não?, a palavra decantada, o canto dos tópicos nacionais, o mar, as navegações, mas também a liberdade, a dignidade, que é o contrário da servidão e do aviltamento. E Rui Knopfli (1932-1997), uma expressão eloquente e desafiante, que se faz também de uma interpelação ao cânone. Poderia continuar, mas creio que será suficiente.

Em conclusão: um título desastroso dum livro que certamente terá as suas virtualidades. Mas um título é o mais importante de um livro, depois de tudo o que está lá dentro. 

O organizador Miguel Tamen, em declarações ao Obervador: sustentou«Quem acha que certos nomes deviam estar lá, tem bom remédio, escreva um livro. É disso que precisamos.» Como não concordar?

em tempo: vou passar a limpo e postar o texto completo



terça-feira, outubro 20, 2020

50 discos: 34. THE WALL (1979) - #8 «Empty Spaces»




"O Cânone" de quem? -- do que falta numa lista (3)

(Continuação do comentário à lista de O Cânone, edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen)
O século XIX é facílimo. Eles aí estão todos bem à mostra, à espera de quem os pique, excepto um, que ficou para trás, e não devia. Não há grandes dúvidas sobre os autores que integram o cânone oitocentista, onze também aqui, como o correspondente a toda a literatura escrita até ao século XVIII: Almeida Garrett (1799-1854), Alexandre Herculano (1810-1870), Camilo Castelo Branco (1825-1890), João de Deus (1830-1896), Júlio Dinis (1839-1871), Eça de Queirós (1845-1900), Oliveira Martins (1845-1894), Antero de Quental (1848-1891),Gomes Leal (1848-1921), Cesário Verde (1855-1886), António Nobre (1867-1900).
Apraz-me ver João de Deus e Júlio Dinis neste rol. Há trinta anos teriam sido varridos, certamente ainda se faria sentir sobre ambos o labéu da "ingenuidade", quando não, no caso do romancista d'A Morgadinha dos Canaviais, o de escritor cor-de-rosa. Há porém uma ausência que não compreendo, e ela é a de Fialho de Almeida (1857-1911). Nunca ninguém escrevera como ele e eventuais epígonos não atingem o seu nível, nem por vezes no mal-estar que provoca. Trata-se de uma falta significativa. Quanto ao resto, há um nome cuja não inclusão me levanta as maiores dúvidas, o de Ramalho Ortigão (1836-1915). Então e As Farpas?, deitam-se fora? Imitando a parcimónia: tenho também dúvidas de que o Guerra Junqueiro (1850-1923) seja arredado de ânimo leve, mas, dos três, é aquele cuja ausência menos me choca. E, já agora, lanço um nome para ponderação, o do exímio contista que foi o Conde de Ficalho (1837-1903). Não me parece que lá ficasse mal, mas precisaria de relê-lo para ter uma ideia mais segura.

segunda-feira, outubro 19, 2020

"islamofobia" -- problema mal posto, como de costume

Foi preciso um professor de História ser decapitado numa rua dos subúrbios de Paris por um radical islâmico, aliás bem estimulado em família, para que o estado francês pareça reagir. Vai ter que ser à bruta. enquanto se trata de um governo democrático e liberal. Quando deixar de sê-lo, a reacção será pior, com atropelos à lei, aproveitando para a pura limpeza étnica que a extrema-direita está ansiosa por fazer.

Chegou-se aqui por laxismo, menorização de um problema, tacticismo e oportunismo político e cedência à espessa idiotia do politicamente correcto.

Não há muitos anos,  os imãs radicais defecavam as suas mensagens de ódio nas mesquitas perante a indiferença geral.

Os partidos políticos apoiavam logística e financeiramente supostas associações "culturais" através das autarquias para lhes captarem o voto. Associações essas que faziam um proselitismo agressivo desestabilizando obviamente o instável subúrbio muçulmano, vítimas, como diria Miguel Tiago do PCP no Facebook em post que parece ter apagado, das "políticas de direita" (eu percebi o que ele quis dizer e tinha toda a razão. Mas o recurso constante à língua de pau perde-os muitas vezes). Os caciques locais queriam os votinhos custasse lá o que custasse, e portanto toca de emprestar o autocarro da câmara municipal para uma deslocação a Paris, à manifestação contra a proibição de símbolos religiosos em edifícios públicos (claro que o que estava em causa eram as islamices, cada vez mais agressivas, impertinentes e evasivas; a igreja católica, extremamente reacionária em França movia-se nas alfurjas neo-fascistas, como cá, mas eram relativamente inofensivos, ainda assim menos do que por aqui; as outras religiões minoritárias, coitadas, foram apanhadas no vendaval laicista, para que não se dissesse que o estado não era imparcial…) 

Não me esqueço da câmara socialista de Lille, que construiu piscinas públicas para homens e mulheres, a fim de fazer respeitar islamices numa sociedade laica, em que muitos estrénuos defensores de uma suposta tolerância e apologetas das políticas de género não só condescendem com o radicalismo islâmico, não se lembrando (ou não se preocupando, pois o perigo mora longe) que se os recipientes da sua condescendência tosca tomassem o poder seriam dos primeiros a ser atirados do alto dos prédios, como fazia o Daesh quando apanhava um homossexual a jeito. 

Em Londres, o que não fosse crime era (ou é ainda) decidido nos tribunais ingleses, mas numa sala à parte, por um juiz muçulmano, de acordo com o direito corânico ou lá o que é. Isto numa mesma cidade em que a esquizofrenia do politicamente correcto introduziu a abolição da separação entre os sexos das casas de banho públicas (por mim nada a opor, antes pelo contrário, desde que o saguão seja amplo e os espelhos abundantes). 

A estupidez é tanta, que há semanas vi numa página belga dum grupelho que se dizia anarquista tomadas de posição pela liberdade de as mulheres islâmicas usarem véu, não percebendo aqueles cretinos que esse mesmo véu, para não falar do resto, é uma imposição masculina, e que nem tem nada que ver com a religião islâmica. -- E que tivesse: as religiões são todas para desrespeitar quando põem as patas de fora, até porque elas respeitam-se todas umas às outras, como aconteceu no Vaticano, a tapar pirilaus das estátuas (parece que é gourmet por lá), não fossem os aiatolas ficar mal dispostos.

As boas notícias é que as autoridades francesas estão a começar a chegar-lhes a roupa ao pelo. Deus nosso senhor queira, mas foi preciso decapitarem um professor de História num subúrbio de Paris.

É verdade, trata-se de uma guerra que ou é travada agora, não ficando pedra sobre pedra, ou a Frente Nacional vai tratar disso, da pior maneira. E infelizmente haverá muita violência, que é o que os islamistas querem, pois o monstro cresceu. O meu receio é que doa também às pessoas pacíficas, que querem viver a sua fé em paz. Só que as pessoas não podem deixar-se chacinar como gado em nome de belíssimos princípios que só servem os inimigos da liberdade e da democracia. E inimigos tratam-se como tal. E ou é já, ou os amigos da Le Pen mostrarão como se faz, com apoio popular...

domingo, outubro 18, 2020

"O Cânone" de quem? -- do que falta numa lista (2)

(Continuação do comentário à lista de O Cânone, edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen)

São-nos servidos cinquenta autores, por ordem alfabética. Mais uma vez, o título peca por abusivo, para ser suave. Se a intenção fosse a de estabelecer o cânone só por coincidência chegaríamos a um nome redondo, cinquenta. O cânone será o que será, 47 ou 114. No entanto,  cinquenta nomes para novecentos anos de país parece-me modesto, por muito restritivo que se seja.

O cânone, cronologicamente, começa com Fernão Lopes e termina com uma única autora viva -- escritora extraordinária, aliás, Maria Teresa Horta (1937), arrolada nas "Três Marias". Vou seccionar os cinquenta nomes em três grupos: até ao século XVIII, séculos XIX e XX.

Escritores nascidos até ao século XVIII, são onze, ou seja, 22% do total: Fernão Lopes (c.1380-c.1460), D. Duarte (1391-1438), Gil Vicente (c.1465-c.1536), Sá de Miranda (c.1481-1558), Bernardim Ribeiro (c.1482-c.1552), Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583), Luís de Camões (c.1524- c.1580), Frei Luís de Sousa (1555-1632), o Pe. António Vieira (1608-1697), António José da Silva (dito O Judeu, 1705-1739) e Bocage (1765-1805). 

Comecemos por notar a estranha ausência da poesia trovadoresca, o que sem dúvida estará justificado. O problema, mais uma vez: uma obra que se define como O Cânone não poderia deixá-la de fora, porque mais canónico que o trovadorismo não há. Fica a curiosidade pela justificação. Quanto ao resto, nada a dizer quanto às presenças, a não ser registar a boa surpresa de ver o rei eloquente, D. Duarte, que talvez não estivesse mal acompanhado do seu irmão, o infante D. Pedro (1392-1449),  príncipe das sete partidas, aliás um dos grandes portugueses destes quase 900 anos.

Sendo também restritivo, e sem querer alardear erudição que me fique curta nas mangas, a grande perplexidade é a ausência do Pe. Manuel Bernardes (1644-1710), prosador onde bebem Camilo e Aquilino. Não pertence ao cânone o Bernardes? Outra perplexidade, Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622), não apenas o poeta, mas também o prosador de A Corte na Aldeia (1619); também não?... 

Fico-me por estes dois, mas poderia lançar o António Ferreira (1528-1569) de A Castro (póstumo, 1587), o ascetismo bucólico do Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), os sermões do Frei António das Chagas (1621-1692).

Também a literatura dos Descobrimentos e da Expansão me parece subrepresentada, a não ser indirectamente, dos cronistas aos autores de relatos, o Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) ou o Pero Vaz de Caminha (1450-1500). O meu conhecimento dos autores deste período, é relativamente superficial, mas não me parece que o cânone literário português os possa deixar de fora.



50 discos: 15. MOONDANCE (1970) - #8 «Brand New Day»




sábado, outubro 17, 2020

"O Cânone" de quem? -- do que falta numa lista (1)

Acabo de ver a lista de cinquenta nomes assinalados como o cânone literário português, na opinião de três académicos: António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen. Lista bastante defendida no anúncio da editora como nas declarações ao Obervador.* Antecipando-se à discussão que aí virá, espera-se.

As escolhas são sempre louváveis, desde que honestas e justificadas, porque representam (ou podem representar…) a coragem de escolher como a de excluir. O título, porém, é de menos, pois mesmo sem me pronunciar sobre o que ainda não li, já o posso fazer sobre as ausências. E há ausências de peso, que absolutamente não poderiam verificar-se numa obra que se arroga a pretensão de estabelecer o dito cânone, se o título é para levar a sério. Aliás, o mesmo Observador, com  desenvoltura jornalística, anunciara que o cânone viria aí, perguntando(-se): "Quem são os grandes escritores que formam o cânone da literatura portuguesa?"

Ora, enquanto leitor não totalmente destituído ou desinformado, considero que é um jogo de apostas avançar com nomes que tenham publicado há menos de cinquenta anos; mas o que me parece temerário é trazer para o cânone autores que tenham entrado por este século adentro. Diria até que todos quantos iniciaram a publicação da totalidade ou da parte mais importante das respectivas obras depois do 25 de Abril de 1974 deveriam estar ausentes duma obra que se arroga a pretensão com que se intitula.

Claro que podemos sempre arriscar nomes, percepções (eu tenho algumas, que apenas têm o valor dessa intuição, mais ou menos alicerçada nas minhas próprias qualidades de leitor, satisfatórias ou medíocres, para o caso é irrelevante). E, no fundo, é mesmo disso que se trata, com excepção para o século XIX, o único período que me parece (quase) incontroverso. Talvez, por isso, mais apropriado -- embora menos comercial e cintilante -- fora reconhecer isso mesmo com um título mais singelo, umas Propostas para a Fixação de um Cânone [Literário Português], ou coisa que o valha. Tenho pena porque demasiada presunção ou falta de humildade envenenam-me a leitura; e tanto faz que venham agora dizer que se trata de uma mera lista como outras possíveis, o que se vê à vista desarmada. 

Começo por subscrever no texto da página da editores, certamente da autoria de um dos coordenadores: «Os grandes escritores não são escolhidos por consenso ou por votação popular, mas por terem sempre leitores, mesmo que poucos, ao longo do tempo.» Certamente que o livro desenvolverá o conceito. Eu acrescentaria  que Os grandes escritores de uma língua e de uma comunidade são aqueles que inauguram um modo de expressão cuja voz continua a fazer-se ouvir nas vozes de outros que lhe sucederam, tendo inscritos um conjunto de tópicos reveladores da pertença a uma nação e/ou a um território.

O mesmo texto informa que não se trata de “um guia neutro para a literatura portuguesa”. Se a neutralidade absoluta é impossível, não deve deixar de ser perseguida num trabalho desta natureza, sob pena de o irremediavelmente o comprometer não digo na sua credibilidade, mas na utilidade que pode ter para quem não esteja muito interessado nas opiniões dos autores e respectivos colaboradores. 

Parece que o livro tem artigos sobre movimentos e revistas literárias (cuja dimensão desconheço), o que, à partida, tornará híbrida a natureza da obra, oscilando entre o ensaísmo e a historiografia cultural. Quanto a isso, talvez ainda não se fizesse melhor do que a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, pese embora as suas (poucas) omissões quanto a escritores relevantes: se a memória não me atraiçoa, lembro-me dos nomes do romancista, ensaísta e poeta Francisco Costa (1900-1988) e do poeta presencista Fausto José (1903-1975), mas haverá outros.

Uma nota marginal, incrédula e possivelmente preconceituosa sobre a inclusão numa obra deste teor de artigos sobre literatura feita por mulheres e por homossexuais: não são temasd, mas não vejo grande utilidade numa obra que pretende definir o cânone. É o espírito do tempo que levará, em obras futuras, a escrever-se sobre escritores vegetarianos, por exemplo. Que interesse tem isso para o Cânone, a não ser marginalmente? Não vejo.


* a notícia do Observador inclui o vídeo do lançamento do livro, que ainda não vi.

sexta-feira, outubro 16, 2020

quinta-feira, outubro 15, 2020

perseguição - «Eurico o Presbítero» (17)

Continuar: «Os socorros dados imediatamente a Abdulaziz tinham-lhe restituído o sentimento da vida.» Cap. XV, «Ao luar», pp. 200-218 da minha edição.


A perseguição nocturna pelo planalto que vai de Segisamon às Astúrias. O Cavaleiro Negro e os outros afrouxam o galope para retardarem os mouros, enquanto Hermengarda, escoltado por Astrimiro e Gudesteu se dirige para o reduto inexpugnável daquelas montanhas setentrionais.

O estilo de Alexandre Herculano é vívido, ao contrário do que se diz -- e até certo ponto acertado para a sua poesia, brônzea, reza o lugar-comum --, como segue neste parágrafo tão rico de movimento e som: «Na extensa chapada, tanto a fuga como a perseguição eram um frenesi, um delírio. Cristãos e Muçulmanos desapareciam por entre as sarças cobertas de orvalho, e o ar, dividido violentamente, zumbia-lhes em roda, como um gemido contínuo. Cristãos e Muçulmanos punham o extremo da diligência nesta última tentativa. Além da planura, os alcantis e as selvas gigantes eram a esperança de uns, o desalento de outros. Ali, os precipícios cortavam subitamente os caminhos abertos pelas feras nas balsas, e ao cabo de vale fundo os rochedos fechavam imprevistamente a saída: aqui, a senda tortuosa ia morrer na torrente; lá, a torrente em catadupa. Os Godos afeitos àqueles desvios alpestres, sabiam-no; os Árabes adivinhavam-no ao descortinarem o espectáculo que tinham ante si, essa espécie de caos nascido das grandes convulsões do globo na sua vida de muitos séculos, que a baça claridade da noite tornava ainda mais fantástico.»


50 discos: 18. ATÉ AO PESCOÇO (1972) #8 «Tango dos Pequenos Burgueses»




quarta-feira, outubro 14, 2020

a arte de começar

«Que horas são, a manhã vem já aí. Ardem-me os olhos de vigília, o corpo cansado. À porta da capela, fica num alto junto ao mar. À porta da capela, olho à volta o horizonte nocturno, olho o céu cheio de estrelas. Está uma noite tranquila de inocência, como a paz que me invade. Poderia achar razões que me turbassem a paz. Não encontro. Tudo aconteceu fora do meu alcance, não encontro. Um pouco de sono talvez, de fadiga, que horas são? Há em todo o céu lá em cima um pouco de claridade que não é das estrelas. E há uma certa agitação invisível, um profundo estremecer do mundo que vai acordar. E sempre o ressoar das águas, mas tenho de prestar atenção. Longe, no limite do mar, pequenas luzes de barcos na pesca. Estremecem devagar como se cintilassem na sua luz mortal. É um cintilar já breve na claridade que vem aí. Estou parado à porta da capela, há um terreno à frente e depois a queda a pique para as águas. Passei a noite sozinho, fui homem. Quero dizer fui perfeito. Não é que eu tivesse muito a conversar com o meu filho, que dorme ali no caixão. Mas o que houvesse a dizer era só entre os dois.»

                                                                   Vergílio Ferreira (1916-1996), Até ao Fim (1987)

terça-feira, outubro 13, 2020

criador & criatura



William Vance e Bruce J. Hawker


 

domingo, outubro 11, 2020

a arte de começar

 «O que ameaçava ser uma longa noite de Inverno já caía sobre Lisboa e ainda Luís Henriques e eu buscávamos a Rua da Mãe d'Água e uma taberna que lhe tinham recomendado, mas apenas se lembrava de ter a emblemática designação de Chafariz do Vinho. No intento de adquirirmos mais uma garrafa no restaurante onde tínhamos gastado a maior parte daquele extenso dia, horas antes havíamos renunciado a um quase confortável banco de madeira sob uma majestosa amendoeira do Jardim Botânico onde cavaqueámos pachorrentamente sentados, apenas para nos vergarmos à decepção de deparar com as suas portas já trancadas e protegidas por um enorme e imperturbável cadeado.»

Germano Almeida (1945), Eva (2006)

«Sound Of The Ska»

sábado, outubro 10, 2020

sexta-feira, outubro 09, 2020

a arte de começar

«Arcóbriga e Meríbriga são cidades mortas desde que os habitantes foram obrigados a descer para o vale. Abandonadas no alto dos seus outeiros, elas dominam ainda a vasta planície ondulada, mas aqui, no santuário, o deus fica-lhes sobranceiro porque este monte, que é a sua morada terrena, ultrapassa em altura todos os morros vizinhos.»

João Aguiar (1943-2010), A Voz dos Deuses (1984)  

quinta-feira, outubro 08, 2020

50 discos: 3. AHMAD'S BLUES (1958) #8 «Secret Love»




balbúrdia no acampamento mouro - «Eurico o Presbítero» (16)

continuar: «Era o cair do dia.» Cap. XIV, «A noite do amir», pp. 175-199 da minha ediçãoO acampamento de Abdalaziz Ibn Muça assentara nos arredores de Segisamon (a actual Sasamón, no município de Burgos, ao norte de Castela-Leão, já no limiar das Astúrias). O espectáculo da povoação a arder, o banquete dos vitoriosos, muçulmanos e cristãos "renegados", vinho e mulheres, será palco de uma acção de resgate que Holywood não desdenharia. Hermengarda, ainda sem revelar a identidade, é conduzida à tenda do emir, que após prometer mundos e fundos, inclusivamente avultados privilégios a Pelágio, quando aquele revelou serem irmãos, não demoveu a altiva dama. O que era exercício de sedução passa, com a recusa, a prelúdio de vioação, não fora «uma figura negra» cujo vulto fora visto a passar na direcção da tenda do emir, e confundido com um guerreiro do Sudão, irrompe silenciosamente pela tenda de Abdalzize, à maneiro do Batman: «à entrada principal da tenda uma figura humana se estampou negra sobre o chão brilhante da tapeçaria.» Como se não soubéssemos, era o Cavaleiro Negro ou seja, Eurico -- o que ainda ninguém sabe -- que com os cúmplices larga o acampamento, após ferir o emir, deixando mais do que em polvorosa, em chamas. Esta acção suscita a Herculano uma dezena de linhas cheias algazarra, de tumulto: «Por entre as chamas, ferido e semi-morto, a custo puderam salvá-lo. Pouco a pouco, o tumulto alongou-se pelo arraial: os xeques árabes e os capitães de Juliano acorriam para o lugar onde brilhava o incêndio, e, dentro em pouco, as vozes desentoadas, o tocar das trombetas, o rufar dos tambores, o tropear dos cavalos naquela vasta planície, fariam crer a quem olhasse para ali dos montes vizinhos que no arraial se pelejava uma batalha nocturna.» Em fuga, quando se vislumbram os cumes da Astúrias, dois guerreiros escoltarão Hermengarda até Covadonga, para os braços do irmão, enquanto que o Cavaleiro Negro e os restantes se preparam para enfrentar os perseguidores.

terça-feira, outubro 06, 2020

«Leitor de BD»

 

Tito Faraci& Enrique Brescia, Tex -- Capitan Jack
e também aqui

a arte de começar mais depressa

«Deus ex machina». «O Inverno de 1890 foi dos mais ásperos que flagelaram a Europa durante o século findo, e na Holanda, então -- onde eu o passei quase todo --, país relativamente temperado e malìssimamente preparado para as baixas temperaturas, morria-se de frio.»

«A cigana (Carta a António Patrício)». «Hammamet, Dezembro, 1930. / Meu caro amigo: / Com aquela mesma mulher cuja presença, anos depois de nos separarmos para sempre, adivinhei, "senti", num recinto imerso em profundas trevas e cheio de gente; e logo, porque fugi para a não ver, me sugeriu a explicação do mito de Orfeu e Eurídice; com essa mesma mulher, durante os nossos longos e atormentados amores, deu-se um caso de telepatia tão raro, que merece realmente ser arquivado.»

«Margareta». «Em matéria de viagens fui sempre, por instinto e reflexão, refractário a programas; contudo, na minha primeira ida a Itália, reconhecendo a necessidade de visitar com certo método país tão incomparável e infinitamente variado na paisagem e na arte, delineei um plano que me tolhesse as turbulências juvenis, sopeando-me a irrebatível mania das digressões, e executei-o sem repugnância nem arrependimento.»

«Cordélia». «As minhas relações com gente da Catalunha datam da infância, graças a uns negociantes de cortiça, de S. Feliú de Guixols, que se estabeleceram na minha terra e de que ainda hoje lá existe descendência.»

«?». «O meu quarto na hospedaria Fra Giaccomo, em Smirna, era uma gaiola de vidro suspensa sobre o mar, e isso concorreu muito para que eu aí me demorasse mais do que projectara.»

«O sítio da mulher morta». «Já totalmente impossibilitados de trabalhar, os Elisiários, meus velhos caseiros dos Pegos Verdes, tinham abandonado a propriedade recolhendo-se a um casebre que possuíam na povoação vizinha, a Figueira.»

M. Teixeira-Gomes (1860-1941), Novelas Eróticas (1935)


uma gruta nos Picos da Europa - «Eurico o Presbítero (15)

1. Continuar:  «A vitória do Críssus assegurara aos Árabes a conquista da Espanha inteira, porque o desalento entrara em todos os corações, e o terror quebrara todos os brios.» Cap. XIII - «Covadonga», pp. 155-176 da minha edição).


2. 
O recuo de Pelágio com os seus soldados até aos inóspitos e inacessíveis Picos da Europa, levando uma prática de guerrilha e rapina. E Covadonga era «Uma caverna [que] servia de paço ao jovem reia das montanhas e de templo ao Crucificado.» Não assim Teodomiro, que apesar de vencido era demasiado poderoso para deixar-se manietar totalmente, estabelecendo um pacto com Abdalazize Ibn Muça, o primeiro váli do Andaluz, o que lhe permitiu gozar de alguma autonomia nos seus domínio. Algo que foi radicalmente rejeitado pelo Cavaleiro Negro: «Paz com o infiel? Ao cristão só cabe fazê-la quando dormir ao lado dele sono perpétuo no campo da batalha.» A única alternativa é juntar-se no Norte a Pelágio, que lhe aparece sem de início se identificar enquanto tal.

3. Eurico é um homem dilacerado, um espectro, um homem que desafia a morte. E assim continua, mesmo quando chega à caverna de Covadonga a notícia de que Hermengarda foi aprisionada, e que possivelmente aguarda-a a última degradação de ver-se vendida como escrava, é ele quem impede Pelágio de avançar, com o argumento de que o irmão de Hermengarda é precioso para a luta dos Godos, a sobrevivência da pátria -- anacronismo proibido ao historiador mas aceite ao romancista. Eurico, o Cavaleiro Negro, embora ninguém saiba a causa da sua ocultação e da dor funda que sente, reclama-se como um «desterrado no meio do género humano», cuja vida a ninguém importa, a começar pelo próprio. Com ele seguirão doze guerreiros.

4. Herculano faz aparecer um lusitano -- como já antes, na batalha de Guadalete, um homenzarrão guarda da caverna, que dá pelo simpático nome de Gutislo... «Velho lobo do Hermínio», chamou-lhe Pelágio...

5. E o estilo de Herculano, esplêndido, cheio de recursos visuais, como nete parágrafo: «Tarde, já bem tarde, uma luz baça e duvidosa bruxuleava sem brilho adiante dos cavaleiros, que haviam rodado as montanhas, fazendo um largo semi-círculo. Naquele momento transpunham uma garganta medonha. Pelo contrário de outros lugares que tinham atravessado, aqui as serras erguia-se quase a prumo de uma e de outra parte da estreita passagem. Por meio dela sentia-se o ruído da torrente caudal, que parecia vir da banda da luz que se via em distância, e o nevoeiro, cada vez mais cerrado, pendurava-se em orvalho na barba espessa dos guerreiros e nos cabelos que lhes ondeavam pelos ombros, saindo de sobre os elmos.»

domingo, outubro 04, 2020

a arte de começar

«Desde o inverno que Jaime andava a falar na visita do seu sobrinho Luís. Viria pelas férias, vencido o segundo ano de Medicina. Maria Antónia esperava sem impaciência a vinda do intruso, que depois de quatro anos de casada vinha alterar os hábitos do seu lar. Sabia que essa visita daria prazer a Jaime, e só por isso sentia ânimo para receber um senhor que ela sabia exigente e até um pouco malcriado. Lembrava-se vagamente de ter visto, pelo seu casamento, um rosto comprido de menino obstinado, onde brilhavam uns olhos escuros e zombeteiros e se desenhavam uns lábios talvez demasiado grossos  de expressão desdenhosa. Depois disso só o vira em fotografia. Os traços tinham-se-lhe adensado; deixara de ser o menino birrento para ser um homenzinho que parecia esperar muito da vida. Conservava os espessos lábios desdenhosos sobre um queixo voluntarioso, que teria no rosto o lugar principal, tanto se erguia altivo e sobranceiro, se não foram os olhos de extraordinária expressão, agora um pouco mais sérios, mas sempre vivíssimos e perfurantes, como se exigissem das pessoas ou das coisas sobre que pousavam a revelação dos segredos mais íntimos.»

João Pedro de Andrade (1902-1974), A Hora Secreta (1942)

«Vicious»

sábado, outubro 03, 2020

sexta-feira, outubro 02, 2020

Inducação para a cidadania, alguns tópicos

1. Algo está profundamente errado quando o Ministério Público é compelido a devassar uma família funcional e integrada na sociedade, porque essa família decide viver de acordo com os seus valores conservadores e a moral religiosa que professa, neste caso a católica. Que se saiba, digo eu, que sou ateu praticante e não ando a papar missas nem acredito em parvoíces, como os católicos envergonhados com a hierarquia --, ainda se pode ser conservador neste país, sem que o Estado se imiscua na esfera privada e familiar. 

2. Algo está profundamente errado quando o Estado procura exercer represálias sobre crianças (é disso que estamos a falar), de resto comprovadamente excelentes alunos e escolhidos pelos colegas para delegados de turma, pretendendo não só bloquear-lhes a passagem de ano como obrigá-los a regredir dois anos. É uma monstruosidade, que não deve passar em claro.

3. Algo está profundamente errado quando um secretário de Estado vem com ar pimpão para os media dizer que assim será, sem ter a noção da sua insignificância e de como mais depressa ele irá borda fora do governo a que pertence, por indecente e má figura, do que as crianças, em relação às quais mostrou estar-se nas tintas -- por muito que agora venham dizer o contrário, tentando disfarçar a nódoa da prepotência pimpona e totalitária.

4. Decorre na sociedade portuguesa um clima de guerra civil ideológica que a cada dia se exacerba. A educação para a cidadania deve ser neutra, ou seja, não pode pretender impor uma mundividência de uma parte da população contra outra. Há um vasto campo comum entre a esquerda e a direita, entre liberais e conservadores que permitem que a escola transmita valores que estão consensualizados na sociedade --  os Direitos Humanos, para usar duas palavras que resumem tudo.

5. A questão é simples. Neste momento está a haver um intolerável cerco do Estado a uma família e, mais concretamente, há duas crianças que estão a ser sujeitas a um abuso por parte do poder transitório que governa. Eu apostaria, dobrado contra singelo, que não lhes vai acontecer nada do que o lamentável secretário de Estado pimponou. Há um Presidente da República, que eu saiba, e que não pode tolerar uma ignomínia destas. E ainda há força e massa crítica no país que o impeça.

6. Técnicas de intimidação: quem pensa o contrário é catalogado como sendo de extrema-direita ou até protofascista. Além de insidiosa é estúpida: objectivamente, estes entusiastas da fluidez de género e outras parvoíces que tontinhos militantes e burocratas de améns tiveram a ousadia de tornar em "disciplina" obrigatória, são os melhores aliados deste Ventura e dos venturas por vir. Ninguém os trava. Ou melhor, travam-nos o bom senso, que o PR já mostrou em várias ocasiões, e os democratas que não se deixam intimidar.

7. Argumentos intelectualmente desonestos: "ah, eu não concordo com o programa de Português, de História, de Filosofia, portanto os meus filhos não frequentam". É só esta aldrabice que têm para argumentar?

8. Leis estúpidas e iníquas, ou mal feitas, alteram-se, combatem-se, incumprem-se. Vou por isso assinar os abaixo-assinados todos. Ou pelo menos, este. É impressionante como esta criatura ainda é membro do Governo.

quinta-feira, outubro 01, 2020

50 discos: 20. SELLING ENGLAND BY THE POUND (1973) - #8 «Aisle Of Plenty»




a arte de começar

 Luanda, Maio de 1868 / Minha querida madrinha, / Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. Atirado para a praia, molhado e humilhado, logo ali me assaltou o pensamento inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo. Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, como o de um corpo em decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África.»

José Eduardo Agualusa (1960), Nação Crioula (1997)