terça-feira, setembro 01, 2020

um amor assim recalcado - «Eurico o Presbítero» (10)

continuar: «DO PRESBÍTERO DE CARTEIA AO DUQUE DE CÓRDUBA»

Três missivas entre Eurico e Teodomiro, Duque de Córdova. Herculano fê-los camaradas de armas nas campanhas vitoriosas de submissão dos bascos, aliados aos francos. Na primeira carta, o herói relembra não só esses momentos de glória como a desventura subsequente à rejeição do pedido da mão de Hermengarda ao pai, o Duque de Fávila, progenitor também de Pelágio, o primeiro rei das Astúrias, último reduto cristão após 711, a partir do qual de processará a Reconquista cristã -- termo que já ele próprio é posto em questão, suponho, pelos talibãs do costume, os mesmos certamente das quatro espécies de académicos (os activistas, os sectários, os analfabetos e os idiotas úteis) que pretendem impugnar o termo Descobrimentos.
Teodomiro levará Eurico pela senda da evasão orgiástica, mas este porém era doutra têmpera: «A embriaguez dos banquetes era para Eurico tristonha; as carícias feminis, fàcilmente compradas e profundamente mentidas, atrás das quais correra loucamente outrora, tinham-se-lhe tornado odiosas; porque o amor, com toda a sua virgindade sublime, lhe convertera em podridão asquerosa os deleites grosseiros que o mundo oferece à sensualidade do homem.»
Diante do perigo -- «Os Árabes! -- [...] esta palavra maldita é como a peste quando passa: seguem-na o susto e o desacordo.» -- a cujo desembarque assistira na véspera, do refúgio, Eurico anuncia que voltará a empunhar a espada.
É sabido que o reino visigodo estava em guerra civil, e que as instituições políticas -- embora já com sofisticada legislação -- eram frágeis. Os árabes foram chamados por Julião, Conde de Ceuta, supostamente para vingar uma afronta do rei Rodrigo sobre a filha.  Rodrigo, sobre quem há suspeitas do derrube do rei anterior,Vitiza, pelo que a causa dos dissídios poderão encontrar-se principalmente aí.  A História perde-se na lenda e sustenta-se nas crónicas, fontes escritas e vestígios arqueológicos.
A resposta de Teodomiro é muito interessante, aceitando Eurico de braços abertos não deixando de fazer-lhe uma exprobação amarga de amizade ferida: «[...] aquele que te amou tanto; aquele que poria a vida para salvar a tua; que nunca teve contentamento ou mágoa que fosse para ti segredo, trataste-o com o mesmo desprezo com que tu, no teu nobre orgulho de desgraçado, trataste o resto do mundo [...].» Ao que Eurico retorquirá com a afirmação dum sentimento não compatível com as vulgares paixões: «Medes o meu espírito pelos afectos humanos»; a dor é incompatível com a vida, retomando o sentimento suicidário, que faz saber ao Duque de Córdova: «Sabes o que faz um amor imenso assim recalcado?»  A resposta é terrivelmente soberba, notando o (aparente) alheamento divino daquele servo: «O Senhor não me escutou as preces: não me aceitou a resignação.»; e a assim, sem saída: «Que pode hoje embriagar-me, senão uma festa de sangue?»
O romance histórico não é historiografia, mesmo quando escrito por um historiador, num romance tudo é permitido, desde que o discurso seja verosímil, do anacronismo à projecção do sentimento ou da ideologia do autor nas personagens. E aqui -- terminada a Guerra Civil (1828-1834) havia apenas uma década --, Eurico volta a vestir-se de Herculano: «Dir-to-ei, Duque de Córdoba: também eu não amo Roderico subiu ao trono; porque a memória de Vítiza nunca morrerá no coração do seu antigo gardingo. [...] Mas não é a sua coroa que os filhos das Espanhas têm hoje que defender; é a liberdade da pátria; é a nossa crença [...].»

Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844), Cap. VII, «O desembarque», pp. 52-73 


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