quarta-feira, setembro 30, 2020
terça-feira, setembro 29, 2020
segunda-feira, setembro 28, 2020
o Evangelho contra o Corão - «Eurico o Presbítero» (14)
Continuar: «O mosteiro da Virgem Dolorosa estava situado numa encosta, no topo da extrema ramificação oriental das que a dilatada cordilheira dos Nervásios estende para o lado dos Campos Góticos.» Cap. XII, «O mosteiro» (pp. 120-154 da minha edição)
Hermengarda no fulcro, é um capítulo que não deixa esquecer a trama amorosa, mesmo que em tempo de guerra. A fuga para um mosteiro situados nas planícies entre a Estremadura e Leão, acolitada por um grupo de dez cavaleiros. É recebida de braços abertos ela abadessa, a Venerável Cremilde, terminando num banho de sangue, na sequência do assalto pelos mouros, capitaneados pelo "invencível" Abdulaziz.
A prosa de historiador com que se reveste a caracterização do mosteiro, fortificado como uma praça-forte: «Edifício sumptuoso, construído no tempo de Recaredo, as suas grossas muralhas de mármore pareciam, na verdade, quadrelas de castelo roqueiro; porque na arquitectura dos Godos a elegância romana era modificada pela solidez excessiva do edificar germânico [...] Os muros fortíssimos daquele vasto edifício, as suas portas tecidas de ferro e carvalho, as estreitas frestas, que apenas lhe deixavam penetrar no interior uma luz duvidosa, os tetos ameados e, finalmente, os fossos profundos que o circundavam, tudo o tornava acomodado para larga defensão.»
«Era ao anoitecer de um dia de novembro. Por entre o nevoeiro cerrado que, alevantando-se do vale vizinho, trepava pela encosta, deixando apenas livres as negras agulhas dos cerros, lá no viso da montanha divisavam-se a custo as ameias e as muralhas à luz baça do crepúsculo, refrangida em céu pardo e húmido. [...] // A esta hora duvidosa entre a claridade e as trevas, uma numerosa cavalgada atravessava o ribeiro no fundo do vale e encaminhavam-se para o mosteiro da Virgem Dolorosa.» Era a escolta de Hermengarda, presa apetecível pela alta dignidade que detinha. Herculano consegue aqui um efeito estilístico muito interessante ao salientar a altitude da abadia-fortaleza, ao lusco-fusco, contrastando com o grupo de cavaleiros que o leitor divisa em ponto pequeno, acentuando mais a sua condição fugitiva e precária.
O espírito de Eurico aparece-nos quando as monjas entoam um salmo composto pelo presbítero de Carteia, cantando «as asas da tua providência, ó Senhor», hino que culmina com a certeza do triunfo da Cruz.
Encontro de dois irmãos: Atanagildo, quingentário sitiado, que comandava a guarda de Hermengarda, e Suintila, sitiante, ao lado das forças invasoras, comandadas agora por Abdulaziz, evoca irresistivelmente o Cerco do Porto.
O capítulo termina com um episódio arrepiante: as monjas prostram-se diante da abadessa, para que esta as desfigure, ficando assim ao abrigo da violação ou do tráfico num mercado de escravas. Este confronto entre a sensualidade brutal e a imolação pelo martírio é vista pelo narrador como uma vitória da Cruz sobre o Corão:
«Entre as monjas e os Árabes bem curta distância medeia: e todavia, lá no mais pequeno recinto onde soam os gemidos de dores atrozes, onde só ri uma esperança a da morte, há paz íntima, há o céu: aqui, na vasta cripta, onde a ebriedade de fácil triunfo, a riqueza dos despojos, o futuro de uma larga existência de glória e deleites sorriem na mente dos infiéis, está o furor insensato, está o inferno. o Evangelho e o Alcorão estão frente a frente no resultado das suas doutrina. É sublime a vitória do livro do Nazareno!»
domingo, setembro 27, 2020
sábado, setembro 26, 2020
a arte de começar - Ferreira de Castro (1898-1974)
«A furgoneta deteve-se. Era nova, blindada, de um escuro brilhante, quase negro. A banda esquerda dir-se-ia feita de uma só placa, inteiramente lisa; na outra havia um ralo, pequeno e redondo, que filtrava o ar de todas as más tentações, como os crivos, nos fundos dos lavatórios, libertam a água suja de todos os elementos obstrutores.»
A Experiência (1954)
quinta-feira, setembro 24, 2020
a arte de começar - Eça de Queirós (1845-1900)
«O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.»
A Cidade e as Serras (póstumo, 1901)
quarta-feira, setembro 23, 2020
terça-feira, setembro 22, 2020
a arte de começar - Augusto Abelaira (1926-2003)
«Sentado, as pernas cruzadas, uma das mãos no bolso e a outra a brincar com o lápis, Giovanni Fazio observava os passos, para diante e para trás, dum casal de ingleses. Ele -- chamar-te-ás John, decidiu -- recuara dois ou três metros, e ela -- Mary -- dirigia-se devagar para os degraus do palácio, sob o olhar indiferente do David. Encostou-se ao pedestal da estátua, tirou o lenço da cabeça e olhou para o marido. Este baixou-se um pouco, apontou demoradamente a máquina e disparou por fim.»
A Cidade das Flores (1959)
segunda-feira, setembro 21, 2020
domingo, setembro 20, 2020
a arte de começar - Aquilino Ribeiro (1885-1963)
«O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora do seu decúbito, que se agitou molemente. Voltou a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se na cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!»
A Casa Grande de Romarigães (1957)
quinta-feira, setembro 17, 2020
a arte de começar - Coelho Neto (1864-1934)
terça-feira, setembro 15, 2020
Dia do Juízo - «Eurico o Presbítero» (13)
continuar: «A passagem de tão avultado número de Godos para os inimigos e o crepúsculo que descia obrigaram Roderico a fazer cessar o combate, enquanto a noite poisava tranquila sobre aquela campina povoada de aflições e dores.» -- início do capítulo XI, "Dies irae" (pp.104-119 da minha edição).
O derradeiro recontro, em que morre o último rei visigodo, Rodrigo: «Um ceptro sem dono em Toletum e mais um cadáver junto à margem do Críssus, eis o que restava do último rei dos Godos!» Um Dia do Juízo para a monarquia visigótica na Hispânia. Apenas o Cavaleiro Negro, um suicida tresloucado para os godos, um monstro infernal para os invasores, parecia não ter dado pela derrota.
segunda-feira, setembro 14, 2020
domingo, setembro 13, 2020
a arte de começar - Eça de Queirós (1845-1900)
sábado, setembro 12, 2020
o pequeno cabaz da feira
Feira do Livro espartana, varrida a cinco espécimes. Contentíssimo pelas escolhas e pela economia feita. Dois romances, um livro de crónicas, uma antologia poética e uma BD. Todos portugueses, mas isso foi um acaso.
As Mais Belas Líricas Portuguesas, selecção, prefácio e notas de José Régio, Portugália Editora, Lisboa, s.d.;
Jornadas em Portugal, de Antero de Figueiredo, Livraria Aillaud & Bertrand, Lisboa, 1918;
O Cónego, de A. M. Pires Cabral, 2.ª ed., Cotovia, Lisboa, 2015;
O Penteador, de Paulo J. Mendes, Escorpião Azul, s.l., 2020;
Terra de Nod, de Judith Navarro, Lisboa, Publicações Europa-América, 1961;
sexta-feira, setembro 11, 2020
quinta-feira, setembro 10, 2020
«Leitor de BD»
Peyo, João e Pirolito -- O Juramento dos Vikings
https://ionline.sapo.pt/artigo/708019/-da-velha-estante-o-juramento-dos-vikings?seccao=Mais_i
quarta-feira, setembro 09, 2020
Cruz e Crescente - Eurico o Presbítero (12)
Um capítulo notável pelo cheiro, pelo som, pela imagem do início da Batalha de Guadalete (31-VII-711). Duas massas humanas compactas no limiar do enfrentamento inevitável, questão de vida ou de morte: a terra treme sob «o peso daquela tempestade de homens»; os urros e a agonia, «um longo gemido, assonância horrenda de mil gemidos»; «o tinir do ferro no ferro e um concerto diabólico de blasfémias, de pragas, de injúrias em romano e em árabe»; brados desgarrados das vozes de comando…
terça-feira, setembro 08, 2020
Vicente Jorge Silva
segunda-feira, setembro 07, 2020
leve como um puro-sangue - «Eurico o Presbítero» (11)
«A esta gente bruta e indomável, cujo esforço vem das crenças da outra vida, se ajuntam os esquadrões de cavaleiros sarracenos que vagueiam pelas solidões da Arábia, pela planícies do Egito e pelos vales da Síria, e que, montados nas suas éguas ligeiras, podem rir-se do pesado franquisque dos Godos, acometendo e fugindo para acometerem de novo, rápidos como o pensamento, volteando ao redor dos seus inimigos, falsando-lhes as armas pela juntura das peças, cercando-lhes os membros desguarnecidos, quase sem serem vistos, e apesar da sua incrível destreza, pelejando, quando cumpre, frente a frente, descarregando tremendos golpes de espada, topando em cheio com a lança no riste, como os guerreiros da Europa, e assaz robustos para, muitas vezes, os fazerem voar da sela nestes recontros violentos: homens, enfim, que sem orgulho, se podem crer os primeiros do mundo num campo de batalha, pelo valor e pela ciência da guerra.»
Ainda no campo da História, não resisto a transcrever a passagem que alude aos velhos lusitanos. Lusitanos na Alta Idade Média? Pois não estiveram eles sempre aqui, desde a Idade dos Metais? Por muita romanização e germanização, não se está a ver como poderia ser doutra forma. A descrição é vivíssima, desenhando os contornos dos que quase mil anos atrás defrontaram Roma, com tanto desapontamento de Júlio César em face destes verdadeiros irredutíveis, comparados também aos bascos, ambos povos alpestres. As fontes são, certamente, os historiadores da Antiguidade:
«Como os Árabes, os Godos tinham no meio de si uma nuvem de peões armados, não menos bárbaros e ferozes que os filhos da Mauritânia. Os montanheses do Hermínio na Lusitânia, aborígenes, talvez, daquele país, os quais, na época das invasões germânicas, bem como já na da conquista romana, a custo haviam submetido o colo ao jugo de estranhos, e os Vascónios, habitadores selvagens das cordilheiras dos Pirenéus, constituíam com os servos um grosso de gente a que hoje chamaríamos a infantaria do exército. […] Requeimados pelos sol ardente do estio ou pelo vento gelado dos invernos rigorosos das serranias, incapazes de conhecerem a vantagem da ordem e da disciplina, estes homens rudes combatiam meios nus e desprezavam todas as precauções de guerra. O seu grito de acometer era um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes ouvia pedir compaixão; porque, vencedores, não havia a esperar deles misericórdia.»
Uma nota ainda de caracterização psicológica, a propósito r Juliano (ou Julião), conde de Ceuta, o tal que quis vingar a honra da filha Florinda (curioso nome, cheira a lenda...) desflorada pelo último rei visigodo, Rodrigo, chamando os árabes: após um conciliábulo com Tárique, de regresso ao seu acampamento:
«[...] via-se-lhe o rosto, não radiante de contentamento que ressumbra de um coração puro quando folga, mas como sulcado por um raio de alegria feroz do criminoso que vê chegar o momento do crime há muito meditado e previsto.»
a arte de começar - Eduardo Frias (1895-1975) e Ferreira de Castro (1898-1974)
domingo, setembro 06, 2020
orquestrais & concertantes: Barber, ADAGIO PARA CORDAS (1936)
Leonard Slatkin, Orquestra Sinfónica de Detroit
a arte de começar - Jorge Amado (1912-2001)
sexta-feira, setembro 04, 2020
quinta-feira, setembro 03, 2020
se pudesse, iria todos os anos e todos os dias à Festa do Avante!
Leitor de BD
Mathieu Lauffray, Raven, tomo 1 - Némesis
jornal i
https://ionline.sapo.pt/artigo/707611/os-parias-dos-mares?seccao=Mais_i
a arte de começar - Ferreira de Castro (1898-1974)
terça-feira, setembro 01, 2020
um amor assim recalcado - «Eurico o Presbítero» (10)
Teodomiro levará Eurico pela senda da evasão orgiástica, mas este porém era doutra têmpera: «A embriaguez dos banquetes era para Eurico tristonha; as carícias feminis, fàcilmente compradas e profundamente mentidas, atrás das quais correra loucamente outrora, tinham-se-lhe tornado odiosas; porque o amor, com toda a sua virgindade sublime, lhe convertera em podridão asquerosa os deleites grosseiros que o mundo oferece à sensualidade do homem.»
Diante do perigo -- «Os Árabes! -- [...] esta palavra maldita é como a peste quando passa: seguem-na o susto e o desacordo.» -- a cujo desembarque assistira na véspera, do refúgio, Eurico anuncia que voltará a empunhar a espada.
É sabido que o reino visigodo estava em guerra civil, e que as instituições políticas -- embora já com sofisticada legislação -- eram frágeis. Os árabes foram chamados por Julião, Conde de Ceuta, supostamente para vingar uma afronta do rei Rodrigo sobre a filha. Rodrigo, sobre quem há suspeitas do derrube do rei anterior,Vitiza, pelo que a causa dos dissídios poderão encontrar-se principalmente aí. A História perde-se na lenda e sustenta-se nas crónicas, fontes escritas e vestígios arqueológicos.
A resposta de Teodomiro é muito interessante, aceitando Eurico de braços abertos não deixando de fazer-lhe uma exprobação amarga de amizade ferida: «[...] aquele que te amou tanto; aquele que poria a vida para salvar a tua; que nunca teve contentamento ou mágoa que fosse para ti segredo, trataste-o com o mesmo desprezo com que tu, no teu nobre orgulho de desgraçado, trataste o resto do mundo [...].» Ao que Eurico retorquirá com a afirmação dum sentimento não compatível com as vulgares paixões: «Medes o meu espírito pelos afectos humanos»; a dor é incompatível com a vida, retomando o sentimento suicidário, que faz saber ao Duque de Córdova: «Sabes o que faz um amor imenso assim recalcado?» A resposta é terrivelmente soberba, notando o (aparente) alheamento divino daquele servo: «O Senhor não me escutou as preces: não me aceitou a resignação.»; e a assim, sem saída: «Que pode hoje embriagar-me, senão uma festa de sangue?»
O romance histórico não é historiografia, mesmo quando escrito por um historiador, num romance tudo é permitido, desde que o discurso seja verosímil, do anacronismo à projecção do sentimento ou da ideologia do autor nas personagens. E aqui -- terminada a Guerra Civil (1828-1834) havia apenas uma década --, Eurico volta a vestir-se de Herculano: «Dir-to-ei, Duque de Córdoba: também eu não amo Roderico subiu ao trono; porque a memória de Vítiza nunca morrerá no coração do seu antigo gardingo. [...] Mas não é a sua coroa que os filhos das Espanhas têm hoje que defender; é a liberdade da pátria; é a nossa crença [...].»