domingo, dezembro 08, 2019

um parágrafo de António Lobo Antunes

«Usava um treçolho perpétuo e cheirava não a noite como toda a casa mas já a hora do jantar e a cansaço sob a bata de sarja. Cheirava a depois da sobremesa, quando levantava os pratos, ligava a máquina e desaparecia no seu cubículo, sem se lavar, a espalhar em redor um odor melancólico de cabra. Cheirava ao que cheira hoje em dia, quase dez anos depois, em que me trata por tu, se afoga em colares de pechisbeque, e se instala ao meu lado nos assentos forrados de pele de vitela do carro, segurando a mãos ambas o guiador de verniz da carteira. Mas no tempo de que falo, no tempo deste livro, afastei a compota, recusei a torrada, provei o café a que faltava açúcar. O relógio da cozinha marcava vinte e cinco para as nove. A criada ergueu o braço, para puxar a lata de bolachas de baunilha de uma prateleira alta, e os seus aromas aumentaram: Um biscoito para o caminho, senhor doutor. As árvores da embaixada da Bolívia despiam-se de sombras. Obrigado, disse eu enquanto os cotovelos se retraíam como os leques se fecham, ofendidos: se tiver fome há uma pastelaria mesmo em frente ao consultório, não vale a pena maçar-se.» Auto dos Danados (1985)

2 comentários:

sincera-mente disse...

Melhor este Lobo Antunes do que o dos últimos livros. Para mim, claro!

R. disse...

Confesso que não o tenho lido ultimamente, apenas por falta de ocasião, contudo, tenho alguns à espreita, na estante.