Silêncio, o último de Scorsese -- desde sempre o meu realizador preferido --, é um filme muito inteligente na forma como aborda o choque cultural decorrente do proselitismo religioso, neste caso católico e cristão. Não li o livro de Shusako Endo, daí que não saiba em que medida esse mérito será mais ou menos repartido por romancista e cineasta.
Filme cheio de piedade pelos crentes na nova fé, perseguidos pelo Estado, mostra bem como o espalhar da fé nas terras de missão podendo ter um ímpeto individual de altruísmo, rapidamente degenerara em lutas com o poder, e pelo poder. Daí que a frase-chave do filme, para mim seja a que o inquisidor lança ao jesuíta Rodrigues: «O preço da vossa [dos missionários] glória é o seu [dos cristãos japoneses] sofrimento.» E o diálogo tenso entre o padre que apostatou e aquele que quisera ir ao Japão para o salvar, física e/ou espiritualmente, é o grande momento do filme.
Claro que, mesmo numa perspectiva histórica, não podemos esquecer que nessa mesma altura, deste lado do globo, os cristãos infligiam tormentos semelhantes aos cristãos-novos, sempre suspeitos de judaizarem secretamente.
Claro que, mesmo numa perspectiva histórica, não podemos esquecer que nessa mesma altura, deste lado do globo, os cristãos infligiam tormentos semelhantes aos cristãos-novos, sempre suspeitos de judaizarem secretamente.
6 comentários:
A glória do Cristianismo alcança-se sempre através do sacrifício e do sofrimento, à luz do suplício do seu fundador. Por isso, aquilo que é visto como uma crítica, na verdade não é mais do que a constatação de um facto...
A Igreja já encara o diálogo com outras religiões de forma radicalmente diferente -- pelo menos à superfície, porque também a isso foi forçada.
Não creio que o Scorsese quisesse fazer uma crítica; acho que ele quis tentar perceber.
Não é a frase do próprio livro (não o li)? Mas refiro-me à crítica feita do ponto de vista da personagem que diz essa frase. Como não era Cristão, não percebeu que o martírio deve ser o bem mais almejado pelo crente, que leva diretamente à Santidade. Mas seja do autor do livro ou de Scorcese, é uma bela reflexão... Scorcese é um católico amargurado e a sua 'Tentação de Cristo' é outra tentativa, mesmo que falhada, de perceber o Cristianismo (o aspeto mais forte do filme não são as tentações e sim o caráter colaboracionista do Jesus inicial, que fabrica cruzes para os Romanos)...
Tenho de revê-lo.
A frase, de facto muito boa, é algo anacrónica. Não estou a ver um japonês do séc. XVII,por mais perspicaz, com essa capacidade de análise racional tão objectiva e distanciada.
Os livros ou os filmes escrevem-se para os públicos desta era, até porque é muito difícil imaginarmos sequer como um europeu do sec. XVII pensaria, quanto mais um japonês. Conhecemos os seus textos, mas há todo um conjunto de conceitos, como os direitos do homem ou a ideia de Liberdade que nem sequer existiam então e que permeiam a nossa maneira de pensar. Ou melhor, existiam talvez na cabeça de um Locke ou de um Montesquieu...
Isso é óbvio. O Endo, apesar de japonês e cristão, é deste tempo. Por isso, se o filme for, neste particular, fiel ao livro, a voz do inquisidor será, em princípio, uma voz autoral.
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