II andamento do Concerto para Orquestra (1943) de Béla Bartók. Eugene Ormandy com a Orquestra de Filadélfia (1964). Para o fim dos tempos.
segunda-feira, junho 30, 2014
o mascar metálico da máquina
«Apenas se ouvia o chiar monótono de algum carro de bois que atravessava o povoado vizinho. Qualquer ave que cortava para o canavial, pardal ou tordo, desaparecia num lento sossego de asas. Caíra sobre a terra essa soberana quietude que é prenúncio dos grandes recolhimentos. Ainda não era tudo crepúsculo e, apesar disso, o dia deixara já de existir. Unicamente o Vilarinho, sentado à máquina, que não cessava no seu mascar metálico, dava exemplo de vida em incessante labutar no seu mester de alfaiatar.»
Guedes de Amorim, Aldeia das Águias (1939)
Etiquetas:
Guedes de Amorim
domingo, junho 29, 2014
sábado, junho 28, 2014
speed
Art Blakey |
O tema é de Miles, que sola primeiro; segue-se Julian Cannonball, depois em diálogo, sempre sustentados impecavelmente pela secção rítmica, Jones, Jones & Blakey. O solo de Hank é exquisite; e é dos diabos o speed de Art Blakey nos pratos, pelo minuto 3'58"...
Etiquetas:
Art Blakey,
Cannonball Adderley,
Hank Jones,
Miles Davis,
Sam Jones
restaurar na velhice a adolescência
«O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.»
Machado de Assis, Dom Casmurro (1899)
sexta-feira, junho 27, 2014
da infância
Reminiscência intensa da infância, do dia-a-dia familiar metodicamente organizado com pulso matriarcal. A casa era das mulheres, da mãe, das criadas; pai e filho tinham de haver-se com aquele despotismo funcional, desse por onde desse, pelo alheamento ou deserção do lar, no caso do progenitor; pela revolta do filho através da indisciplina, raiz do comportamento futuro do narrador. Até que doença grave da criança leva a boa da mãe a deixar para trás a rigidez dos planos domésticos, aos quais todos se submetiam, para velar e zelar pelo filho, em perigo de vida. Era o tempo da II Guerra, dos noticiários da BBC. Coincidente com a paz, dá-se a cura do petiz, originando novo reequilíbrio naquele microcosmos.
O incipit: «Eram terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração.»
um parágrafo: «De certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço constantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.»
Manuel Alegre, «A grande subversão», O Homem do País Azul [1989], 7.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 49-56.
quinta-feira, junho 26, 2014
cantigas do êxodo
Canção de partida, nesse ano de 1973 -- o mesmo em que Assis Esperança publicou o romance Fronteiras --, ano ainda de emigração, do êxodo da miséria. O tema é lindíssimo, com um soberbo arranjo de metais. Do álbum Venham Mais Cinco.
Etiquetas:
Assis Esperança,
José Afonso
a andar para trás
A criação de Astérix foi um achado. Gauleses irredutíveis ao ímpeto marcial do Império Romano, auxiliados nessa atitude de resistência por uma misteriosa poção mágica que atribui a quem a toma uma força sobre-humana. Criação servida pela inteligência de Goscinny, permitindo vários níveis de leitura, possibilitando que crianças e adultos a fruíssem de acordo com a informação que tivessem. As próprias alusões à realidade francesa do momento eram torneadas sem dificuldade pelos leitores de outras nações.
Etiquetas:
Albert Uderzo,
Didier Conrad,
Jean-Luc Ferri,
René Goscinny
quarta-feira, junho 25, 2014
como era grande
«Ficaram olhando. Como era grande a casa do coronel... E morava tão pouca gente ali. O coronel, a mulher, a filha e o filho, estudante, que nas férias aparecia elegante, estúpido, tratando os trabalhadores como escravos. E olharam as suas casas, as casas onde dormiam. Estendiam-se pela estrada. Umas vinte casas de barro, cobertas, pela palha, alagadas pela chuva.»
Jorge Amado, Cacau (1933)
terça-feira, junho 24, 2014
garçons urgentes
«O proletariado negro se expandia, comemorando o Natal. Satisfeito, o alemão do bar se multiplicava em chopes, expedindo, para aqui e para ali, garçons urgentes.»
Cyro dos Anjos, O Amanuenese Belmiro (1937)
segunda-feira, junho 23, 2014
reciclagem
«Logo a seguir à revolução, em Abril do ano anterior, civis barbudos e soldados de cabelo comprido e camuflado em tiras vigiavam as estradas, revistavam automóveis, ou desfilavam lá em baixo, em bando, nas pracetas, comandados por um desses microfones incompreensíveis de sorteio de cegos que o marxismo-leninismo-maoismo reciclara.»
António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)
Etiquetas:
António Lobo Antunes
de Castela não se vê o mar
Etiquetas:
Azorín,
Juan Ramón Jimenez
passeatas de blogger
Antologia do Esquecimento: Mary Shelley;
Delito de Opinião: Uma nova definição de futebol;
Medievalists.net: Medieval Drinking Horns;
Robert Wyatt and Stuff: Håkon Kornstad Tenor Battle at Nattjazz 2014.
Delito de Opinião: Uma nova definição de futebol;
Medievalists.net: Medieval Drinking Horns;
Robert Wyatt and Stuff: Håkon Kornstad Tenor Battle at Nattjazz 2014.
Etiquetas:
blogosfera,
Håkon Kornstad Tenor Battle,
Mary Shelley
domingo, junho 22, 2014
muita experiência e muita pimenta
«Vicente Morosa, primo daquele Antunes Melgaço que morreu na defesa de Diu, propôs que contássemos, enquanto a noite passava, alguma coisa do muito que tínhamos visto pelo mundo, e Pedro Costa, um homem de muita experiência e muita pimenta e que se preparava para regressar a Portugal, onde nunca chegaria por não ter sido essa a vontade de Deus, disse que Gil Cabreira, pelo que já lhe ouvira, era o homem indicado para começar.»
Augusto Abelaira, O Bosque Harmonioso [1982]
sábado, junho 21, 2014
outros tempos
Tema directo e inspirado a abrir um dos mais fantásticos discos dos Beatles, o so called duplo White Album, que tem tudo: do rock'n'roll ao experimentalismo. O grande McCartney, que compôs, canta, toca guitarra, o piano e uma parte da bateria... brinca na Guerra Fria (estamos em 1968) e pisca os olhos à música americana (Chuck Berry, The Beach Boys, Hoagy Carmichael, está tudo aqui), enquanto clama pelas miúdas russas e ucranianas (outros tempos...).
Em baixo, Macca em Moscovo, já neste século, Putin a assistir.
Etiquetas:
Chuck Berry,
Hoagy Carmichael,
Paul McCartney,
The Beach Boys,
The Beatles,
Vladimir Putin
sexta-feira, junho 20, 2014
de Assis Esperança
[bíblico]
«Sem gávea para perscrutar o horizonte, nem mastro alto a que trepar, se Noé patriarca abrira, muita vez, o luzeiro da janela para soltar as duas aves, arriscou-se, numa tarde, a escancarar a porta da sua arca, para melhor observar o movimento das águas. E então viu quanto fora exemplar o castigo de Deus.»
do prefácio a O Dilúvio (1932)
quinta-feira, junho 19, 2014
monarquia & república
Em Espanha, foi a monarquia que lhe trouxe a democracia; em Portugal, pelo contrário, a República deu-nos a ditadura.
Não sendo monárquico, não sou republicano. Isto é: estou-me nas tintas para a questão do regime. Importa-me que seja uma democracia liberal, isso sim. Um rei constitucional é um símbolo, uma bandeira. O que queremos, enquanto comunidade, fazer dos nossos símbolos, será uma boa discussão. O resto é folclore, mais ou menos fracturante.
De Rosinski & Van Hamme
Na névoa e na neve, um homem impele outro, manietado, em direcção a um rochedo à beira-mar, o anel dos crucificados, cujas argolas prendem os infelizes ali aferrolhados, condenando-os à morte por afogamento, com a subida da maré.
O carrasco é Gandalf, o Louco e a vítima Thorgal Aegirsson. Ambos se invectivam até que Gandalf, reagindo ao insulto, fere Thorgal no rosto.
No drakkar de Gandalf, uma jovem e bela mulher está amarrada ao mastro. É loira, é linda, é filha do Louco (na prancha seguinte saberemos o seu nome, Aaricia).
Trata-se do álbum de estreia (1980) de uma das grandes criações do belga Van Hamme e do polaco Rosinski, uma promessa que passados todos estes anos foi muito bem cumprida.
Rosinski & Van Hamme, Thorgal -- A Feiticeira Traída, trad. Marília Alves, Lisboa, Livraria Bertrand, 1983, pranchas 1-2.
O carrasco é Gandalf, o Louco e a vítima Thorgal Aegirsson. Ambos se invectivam até que Gandalf, reagindo ao insulto, fere Thorgal no rosto.
No drakkar de Gandalf, uma jovem e bela mulher está amarrada ao mastro. É loira, é linda, é filha do Louco (na prancha seguinte saberemos o seu nome, Aaricia).
Trata-se do álbum de estreia (1980) de uma das grandes criações do belga Van Hamme e do polaco Rosinski, uma promessa que passados todos estes anos foi muito bem cumprida.
Rosinski & Van Hamme, Thorgal -- A Feiticeira Traída, trad. Marília Alves, Lisboa, Livraria Bertrand, 1983, pranchas 1-2.
Etiquetas:
Grzegorz Rosinski,
Jean Van Hamme
lérias
«A história que o homem contava nada tinha de comum com a verdade. Era pura invenção de traz-no-bolso, lérias de almanaque recreativo para uso dos comboios no Minho.»
Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
quarta-feira, junho 18, 2014
do refocilar
Um monólogo que nos apresenta a figura grotesca do Teles, um ex-magistrado destituído de funções por corrupção, tal foi o resultado do vício do jogo. Oriundo de boas famílias, a mulher morre-lhe de desgosto e uma das duas filhas, da tísica, enquanto a outra se torna prostituta ("Desgraça acarreta desgraça.") Mas é na degradação que o Teles se encontra, é aí que ele se confronta com a sua verdade mais íntima. Fantasista, sonha-se rei absoluto, elocubrando vinganças sobre todos com quanto se cruzou na via para a desgraça; lúcido, apercebe-se de que os códigos legislativos nunca poderão fazer justiça à alma de um homem.
início: «No calabouço do Governo Civil.»
excerto: «Que distância há entre o homem e o homem? entre o homem correcto, o homem e todos os dias e o homem capaz de praticar um crime?... Que mixórdia! e que canalha eu sou quando deparo com o fundo de mim mesmo!... Mas não me julguem infeliz. Não sou infeliz. Devo confessar que depois que sou desgraçado é que me sinto mais feliz. Encontrei-me.»
Raul Brandão, «O rei imaginário», Teatro [1923], estudo introdutório de Luiz Francisco Rebello, Lisboa, Editorial Comunicação, 1986, pp. 119-123.
terça-feira, junho 17, 2014
A LÃ E A NEVE
O fio da narrativa expõe-se numa penada: Horácio pastor de Manteigas, abrira os olhos para outras realidades que não a vida elementar que transcorria entre as faldas da Estrela e os redis nas aldeias, na sequência do serviço militar cumprido nos arredores de Lisboa, mais precisamente em Cascais. Decide, então, adiar o casamento com Idalina, previsto para ser celebrado após a tropa -- e mudar de vida. Quer tornar-se operário têxtil, ali mesmo, em Manteigas, ou na Covilhã, centro mais importante, única possibilidade que vê para fugir à pobreza que confina aquelas existências.
Após percalços vários, que tornam a narrativa coerente, segue-se a entrada num mundo diferente, em que a consciência de pertença a uma classe socialmente bem delimitada, o proletariado, irá mudar, paulatina mas radicalmente, a forma como o protagonista se vê a si próprio no mundo.
Publicado em 1947, A Lã e a Neve levanta múltiplas questões no âmbito histórico-cultural, das quais só enumero algumas, e brevemente.
1. A circunstância de A Lã e a Neve ser um romance neo-realista heterodoxo: Ferreira de Castro, visceralmente libertário, anarquista por formação, convicção e coração, não acolhe a doutrinação canónica marxista-leninista, largamente teorizada a partir de meados da década de 1930. A vanguarda da classe operária aqui não tem ligações ao Partido [Comunista Português]; antes é protagonizada por abencerragens do sindicalismo anarquista e revolucionário que caracterizou o movimento proletário organizado durante a I República: o "Marreta" -- esperantista e vegetariano -- e os que lhe estão próximos.
2. Apesar de referenciado como livro subversivo, A Lã e a Neve é um romance fortemente político, de oposição, que não foi apreendido nem o seu autor ao que se saiba incomodado. Já por várias vezes me referi à particular circunstância política de 1947, de suavização da ditadura em face da vitória aliada na II Guerra Mundial. Por outro lado, o reconhecimento grande que Castro tinha no estrangeiro, muito em especial em França, terá sido, de certo modo dissuasor de medidas repressivas, dado o contorno de escândalo de que se revestiria. Finalmente, e escrevo isto pela primeira vez, não posso deixar de especular (embora a pertinência deste alvitre esteja por demonstrar), o caso curioso de a editora de Ferreira de Castro, a filha de Delfim Guimarães, Maria Leonor da Cunha Leão, ser casada com Francisco da Cunha Leão, um intelectual conotado com o regime e seu funcionário superior.
3. Deixando a história político-cultural, sublinho os recursos estilísticos do escritor, as suas poderosas descrições e a mestria ficcional, que confirmam as dos romances anteriores, e de que o episódio da tempestade de neve será, possivelmente, uma das mais extraordinárias aflorações em todo o romance. Acresce a espesssura psicológica das personagens -- também sem surpresa para quanto já estavam familiarizados com os seus romances.
Poderia soltar mais uns milhares de caracteres a propósito deste livro. Para não abusar, direi apenas que um romance como A Lã e a Neve pertence à categoria daquelas obras de arte que nos definem como cultura e civilização, como portugueses; e que Ferreira de Castro é membro, um dos mais brilhantes e representativos, daquela família de escritores que tem no seio espíritos como os de Júlio Dinis e Eça de Queirós até Alves Redol, Manuel da Fonseca ou José Saramago, passando por Aquilino Ribeiro e Raul Brandão.
1. A circunstância de A Lã e a Neve ser um romance neo-realista heterodoxo: Ferreira de Castro, visceralmente libertário, anarquista por formação, convicção e coração, não acolhe a doutrinação canónica marxista-leninista, largamente teorizada a partir de meados da década de 1930. A vanguarda da classe operária aqui não tem ligações ao Partido [Comunista Português]; antes é protagonizada por abencerragens do sindicalismo anarquista e revolucionário que caracterizou o movimento proletário organizado durante a I República: o "Marreta" -- esperantista e vegetariano -- e os que lhe estão próximos.
2. Apesar de referenciado como livro subversivo, A Lã e a Neve é um romance fortemente político, de oposição, que não foi apreendido nem o seu autor ao que se saiba incomodado. Já por várias vezes me referi à particular circunstância política de 1947, de suavização da ditadura em face da vitória aliada na II Guerra Mundial. Por outro lado, o reconhecimento grande que Castro tinha no estrangeiro, muito em especial em França, terá sido, de certo modo dissuasor de medidas repressivas, dado o contorno de escândalo de que se revestiria. Finalmente, e escrevo isto pela primeira vez, não posso deixar de especular (embora a pertinência deste alvitre esteja por demonstrar), o caso curioso de a editora de Ferreira de Castro, a filha de Delfim Guimarães, Maria Leonor da Cunha Leão, ser casada com Francisco da Cunha Leão, um intelectual conotado com o regime e seu funcionário superior.
3. Deixando a história político-cultural, sublinho os recursos estilísticos do escritor, as suas poderosas descrições e a mestria ficcional, que confirmam as dos romances anteriores, e de que o episódio da tempestade de neve será, possivelmente, uma das mais extraordinárias aflorações em todo o romance. Acresce a espesssura psicológica das personagens -- também sem surpresa para quanto já estavam familiarizados com os seus romances.
Poderia soltar mais uns milhares de caracteres a propósito deste livro. Para não abusar, direi apenas que um romance como A Lã e a Neve pertence à categoria daquelas obras de arte que nos definem como cultura e civilização, como portugueses; e que Ferreira de Castro é membro, um dos mais brilhantes e representativos, daquela família de escritores que tem no seio espíritos como os de Júlio Dinis e Eça de Queirós até Alves Redol, Manuel da Fonseca ou José Saramago, passando por Aquilino Ribeiro e Raul Brandão.
segunda-feira, junho 16, 2014
A tonga da mironga do kabuletê, ou mandar os ditadores à mãe
Álbum gravado ao vivo no "Trova", de Buenos Aires. Tonga da mironga do kabuletê, parece que não quer dizer nada, são vocábulos de origem africana que sugestionaram Vinicius pela sua musicalidade, sendo, também uma forma divertida de mandar os militares, que então governavam o Brasil, para as mães deles. O diálogo em baixo com Toquinho, num registo também efectuado na Argentina, indicia-o. É uma alegria de música, e a bateria de Enrique Rosner tem um beat que não nos dá sossego.
Depois, vídeo da RAI, canta-se em italiano.
Etiquetas:
Enrique Rosner,
Toquinho,
Vinicius de Moraes
domingo, junho 15, 2014
música familiar
James Bond, os filmes, as músicas, trazem-me inúmeras recordações. Sou capaz de lembrar-me em que circunstâncias vi determinado filme, em que cinema e com quem. As músicas são esplêndidas ,na sua maioria, e têm o dedo de John Barry, na autoria ou na orquestração, como sucede com este tema de Monty Norman, do inicial «Dr. No», incrível de força e, ao mesmo tempo, subtileza. O vibrafone e os trombones em crescendo com a perturbante guitarra, até à explosão estrepitosa dos sopros com a bateria, para retomar o tema inicial e finalizar à Bond, James Bond...
Em baixo, a Orquestra da BBC, dirigida por Keith Lokhart, em 2011
Etiquetas:
John Barry,
Keith Lockhart,
Monty Norman
o nada não me serve
Nas livrarias, passo sempre ao largo da secção "espiritualidades". No livro em apreço, singelas florinhas debruadas em tons suaves, numa colecção chamada "Talismã", fazem logo recear o pior.
Porque li, então, o Jiddu? Porque nas páginas da Renovação -- revista da década de 1920, publicada pela anarco-sindicalista Confederação Geral do Trabalho (CGT), Ferreira de Castro escreveu sobre este para-guru, dando nota da perspectiva crítica que era a sua. Peguei, então, neste livrinho (podia ter sido outro qualquer); e embora não fosse tão mau quanto temia, percebi bem as razões das reservas do futuro autor de A Selva.
Porque li, então, o Jiddu? Porque nas páginas da Renovação -- revista da década de 1920, publicada pela anarco-sindicalista Confederação Geral do Trabalho (CGT), Ferreira de Castro escreveu sobre este para-guru, dando nota da perspectiva crítica que era a sua. Peguei, então, neste livrinho (podia ter sido outro qualquer); e embora não fosse tão mau quanto temia, percebi bem as razões das reservas do futuro autor de A Selva.
Krishnamurti recomenda a impassibilidade, o nada -- nada querer, a nada aspirar -- como forma de chegar à felicidade. Ora isto é profundamente problemático em sociedades radicalmente desiguais, como o são a generalidade das modernas comunidades humanas, a começar pela indiana, de onde o autor era originário, embora desde muito cedo se radicasse no Ocidente). O efeito prático das ideias de J.K., embora aliciantes em abstracto (quem não aspira a nada está receptivo a acolher tudo o que de bom ou substancial a vida pode dar...), acaba por ter um efeito perverso: quando o fraco não reage ao forte, agrupando-se, unindo forças, não passará da condição de capacho. É uma evidência que nenhuma fé na remissão por alegadas vidas futuras ou recompensas espirituais presentes poderá contrariar. Ferreira de Castro não podia, pois, caucionar estes conceitos de pura desistência e amorfismo -- pelo menos, na aparência.
O que extraio deste livrinho é, basicamente, isto: segundo Krishnamurti, o homem deverá forjar para si uma outra realidade, paralela à existente e por esta intocável. É evidente que o despojamento, numa sociedade de consumo, é uma atitude benéfica e inteligente; o combate ao egocentrismo, idem; o mesmo para a comunhão íntima com a Natureza. Castro subscreveu estas ideias ao longo da sua obra, mas a diferença fundamental é que ele sabe que nada é concedido e que a dignidade deve ser (re)conquistada -- pela força, se necessário, embora o seu idealismo almeje por uma mudança de mentalidades. Para Krishnamurti, a mudança interior auto-impõe-se, voluntariamente, portanto; mas ao recusar o conflito, em vez de criar um paraíso terrestre, está a arregimentar legiões de escravos, de dependentes -- é impossível ser de outro modo.
"Feliz é o homem que é nada." -- acaba por ser a declaração que melhor ilustra o pensamento do autor. Ideia inaceitável. Inaceitável num mundo em que pontifica o bicho-homem; e também porque do nada nunca a humanidade teria usufruído de um Beethoven, por exemplo.
Jiddu Krishnamurti, Cartas a uma Jovem Amiga.
"Feliz é o homem que é nada." -- acaba por ser a declaração que melhor ilustra o pensamento do autor. Ideia inaceitável. Inaceitável num mundo em que pontifica o bicho-homem; e também porque do nada nunca a humanidade teria usufruído de um Beethoven, por exemplo.
Jiddu Krishnamurti, Cartas a uma Jovem Amiga.
Etiquetas:
Ferreira de Castro,
Jiddu Krishnamurti,
Ludwig van Beethoven
sexta-feira, junho 13, 2014
desenhar o nada
A vinheta inicial de O Embaixador das Sombras, de Mézières e Christin mostra-nos um recuado "nada". Desde os tempos imemoriais em que o Universo não conhecia vida, até ao "Ponto Central", o âmago das encruzilhadas do espaço, corolário duma aspiração comum a todos os seres vivos inteligentes: explorar os céus.
Nunca fui adepto da ficção científica, demasiado gelada para mim. Excepção feita ao nobre agente espácio-temporal Valérian e a sua nada fria companheira, Lauréline.
Jean-Claude Mézières & Pierre Christin, O Embaixador das Sombras [1975], tradutor não identificado, Lisboa, Meribérica, s.d., pranchas 1-2.
Etiquetas:
Jean-Claude Mézières,
Pierre Christin
passeatas de blogger
Uma boa reflexão sobre o nosso passado, no Pimenta e Ouro.
Um magnífico poema de Ana Hatherly, enquadrado com Monet, no Vício da Poesia
«O que há de mais selvagem em minha vida», um belo poema de Ladyce West, também ele devidamente enquadrado, no Peregrina Cultural.
Henrique Manuel Bento Fialho sobre os Air, no Antologia do Esquecimento.
Henrique Manuel Bento Fialho sobre os Air, no Antologia do Esquecimento.
Etiquetas:
Air,
Ana Hatherly,
blogosfera,
Claude Monet,
Henrique Manuel Bento Fialho,
Ladyce West
quinta-feira, junho 12, 2014
sobrevivência da memória
O narrador depara-se com uma sombra azulácea deambulando pelas ruas da cidade, sem o corpo correspondente. Segue-a, e testemunha a abordagem daquela a uma jovem com quem se cruza. Percebendo a perturbação da rapariga, seguindo a sombra o seu caminho, estabelece diálogo com ela, e confirma: não apenas viram ambos a sombra, como esta pertence(u) a uma pessoa querida da transeunte, o seu noivo, morto na guerra por uma carga de obus. O narrador esforça-se por continuar no encalço daquele espectro singular; quando este pára sobre um canteiro de flores, como que aspirando o perfume que exalavam, repara no seu perseguidor, estabelecendo com ele uma muda comunicação, que acabará no cemitério, à beira do túmulo do corpo que lhe pertencera. O remate final do conto faz uma optimista profissão de fé: a morte não mata a memória de nós nos outros...
O que sucede quando estes outros, por sua vez, deixam o mundo dos vivos, isso já não coube nessas linhas.
o incipit: «Era um pouco antes do meio-dia.»
um parágrafo: «Recuei de imediato com medo de pisá-la. Receava fazer-lhe mal. Sentia uma piedade imensa pelo abandono. Mas, de repente, num acto de correspondência inexplicável, pareceu-me que ela me dava a entender que era feliz, e que os seus soluços outra coisa não eram que soluços de ventura, que havia nela uma vida imortal que lhe permitia sobreviver ao corpo desaparecido e enlear-se em tudo o que este havia acarinhado. A felicidade dessa sombra era feita da sua presença nesses locais que havia frequentado.»
Guillaume Apollinaire, «O passeio da sombra», O Rei Lua [1916], tradução de Luís Alves da Costa, Lisboa, Vega, s.d., pp. 67-71.
Etiquetas:
Guillaume Apollinaire
quarta-feira, junho 11, 2014
Oliveira Martins a Luciano Cordeiro: "vibrei"
Meu querido Luciano
Vibrei, certamente, vibrei todo o dia ontem, lendo a sua primorosa obra. V. fez um milagre. Não queria escrever-lhe agradecendo-lhe o seu livro antes de o ler, e não o fiz logo porque o tinha emprestado ao Moniz Barreto para ele escrever o artigo que lhe pedi e V. já leu, decerto.
O Repórter cumpriu o seu dever.
O livro das Cartas que V. fez é verdadeiramente definitivo, não há nada mais a dizer.
V. esgotou a erudição e a crítica: não há que rebuscar nem que observar mais.
Está definido o caso patológico (?) e determinado o concurso de circunstâncias que se deu.
Receba pois V., meu querido Luciano, os meus mais cordiais parabéns e creia-me sempre -- Seu velho amigo, de uma amizade sempre moça.
O Repórter cumpriu o seu dever.
O livro das Cartas que V. fez é verdadeiramente definitivo, não há nada mais a dizer.
V. esgotou a erudição e a crítica: não há que rebuscar nem que observar mais.
Está definido o caso patológico (?) e determinado o concurso de circunstâncias que se deu.
Receba pois V., meu querido Luciano, os meus mais cordiais parabéns e creia-me sempre -- Seu velho amigo, de uma amizade sempre moça.
Oliveira Martins
[actualizei a ortografia]
in Soror Mariana Alcoforado, Cartas de Amor -- Ao Cavaleiro de Chamilly, Porto, Editora Ausência, 2002.
editor: Luciano Cordeiro
Etiquetas:
Luciano Cordeiro,
Mariana Alcoforado,
Moniz Barreto,
Oliveira Martins
a curva da estrada
Chegar aos 50 será
Boa surpresa sem
Que fizesse grande
Coisa por isso o desleixo
Apazigua mas que pague
Duvido.
Boa surpresa sem
Que fizesse grande
Coisa por isso o desleixo
Apazigua mas que pague
Duvido.
terça-feira, junho 10, 2014
música incidental
Não tenho grandes dúvidas de que Out Of Africa tem assegurado um destino equivalente ao de Casablanca. E se Bogart e Bergman contribuíram para isso decisivamente, o momento angular do filme é "As Time Goes By", entoada por um constrangido Dooley Wilson. O filme de Pollack tem outra parelha histórica (Streep e Redford) e também um conflito triangular. Mas a banda sonora de Barry -- um nome imprescindível da música incidental -- é poderosíssima e alimenta-lhe a mística pelos tempos afora (inesquecível a cena do voo, o enleamento de ambos, os planos de Pollack e os sons de "Flying Over Africa"...) Aqui é o tema de abertura, dirigindo o próprio compositor uma orquestra não identificada (!).
Bach também era um pândego.
Nem tudo é religião, em Bach, mas tudo pode ser divino -- inclusivamente as cantatas profanas, de que a bem humorada Cantata do Café é exemplo. Nesta ária, um pai preocupado assiste ao desvario com que a filha se deixa impregnar por esta excitante e viciante bebida, cada vez menos exótica no século XVIII.
A minha gravação é a de Helmuth Rilling com o Stuttgart Bach-Collegium, aqui com Christine Schafer. segunda-feira, junho 09, 2014
ocasional
O inesperado que me faz viver habitualmente
A surpresa do habitual quotidiano.
da boa malícia
De Meus Caros Amigos (1976). Composto para o filme de Bruno Barreto, Dona Flor e Seus Dois Maridos. A película, nunca a vi; mas li o livro de Jorge Amado, de 1966, história pícara e fantástica que decorre na Bahia da década de 1940. Dona Flor é uma deliciosa e seriíssima mulher e esposa respeitada e respeitadora, com mão de musa para a culinária. Viúva do primeiro marido, Vadinho, um vadio safado, jogador e grande amante, que se finou num cortejo carnavalesco, consorcia-se em segundas núpcias com o Dr. Teodoro, farmacêutico austero, distinto e honrado, amador de música, executante compenetrado de fagote e incapaz de faltar ao respeito à sua Flor. Tudo se complica quando o fantasma de Vadinho começa a visitar Flor, que, muito mal tratadinha no leito do himeneu, no meio de grande luta consigo própria, vai cedendo às investidas do lúbrico espectro, e também vai gostando.
A letra de Chico Buarque é espantosa, traduzindo simultaneamente a saborosa malícia amadiana e a cor das vielas e dos botecos desse enorme painel que o escritor recriou. O dueto com Milton Nascimento é perfeito (ou não fossem, um e outro, autores do mais alto coturno.
Em baixo, filmagem da época na TV Bandeirantes.
Etiquetas:
Bruno Barreto,
Chico Buarque,
Jorge Amado,
Milton Nascimento
neo-realismo do melhor
Barranco de Cegos (1961) conta o fim de um tempo, entre o Ultimato inglês (1890) e o pós-5 de Outubro de 1910, e revela-nos uma família de grandes lavradores ribatejanos, cujo chefe é uma personagem inesquecível: Diogo Relvas, homem excessivo, cruel e reaccionário, fiel a uma tradição agrária que vê na terra as virtudes ancestrais duma nação, e no desenvolvimento industrial a condenação da pátria, motivada pela cupidez e pela ambição de poder de uma elite cega -- cegos conduzindo cegos, uns e outros na iminência de caírem num barranco, de onde dificilmente se sairá. Relvas carrega consigo o peso dos antepassados, regendo-se por uma ética abstracta, inflexível quanto ao essencial -- a manutenção do poder: simbólico, através dos cerimoniais do mando, e de facto, pela posse efectiva do agro; inflexível no essencial, moderadamente maleável quanto a questões mais prosaicas. As restantes personagens, em especial os filhos, órfãos de mãe, débeis, volúveis -- um deles esmagado pelo peso excessivo do progenitor --, as duas filhas, Milai e Maria do Pilar, fortes e marcadas, complexas no lidar com o patriarca, dão profundidade ao romance. Outras personagens secundárias, em especial as populares, são também fundamentais; mas esta é uma história de senhores, homens senhores doutros homens.
No prefácio que escreveu em 1964, Mário Dionísio, que não era de elogio fácil e se afastara já do PCP, não hesita em classificar o livro como "um dos grandes romances de toda a nossa história literária".
Barranco de Cegos é, com efeito, literatura da boa, da que conta, da que interessa, da que constrói identidade, da que dá substrato à comunidade de que emana -- e também da que experimenta, da que burila, da que arrisca. Para além de todas as classificações que cada vez fazem menos sentido, a não ser numa abordagem historiográfica, trata-se de neo-realismo, e do melhor -- isto é: não evidenciando a vulgata que simplifica e sectariza, é suficientemente amplo para ser subscrito por todos quanto comungam de preocupações afins, sem que com isso o autor traia (e se traia) o escopo ideológico que lhe subjaz. O final do romance, magistral, traz-nos uma atmosfera que dir-se-ia paralela à do realismo mágico, que o recém-falecido Gabriel García Márquez consagraria anos mais tarde.
No prefácio que escreveu em 1964, Mário Dionísio, que não era de elogio fácil e se afastara já do PCP, não hesita em classificar o livro como "um dos grandes romances de toda a nossa história literária".
Barranco de Cegos é, com efeito, literatura da boa, da que conta, da que interessa, da que constrói identidade, da que dá substrato à comunidade de que emana -- e também da que experimenta, da que burila, da que arrisca. Para além de todas as classificações que cada vez fazem menos sentido, a não ser numa abordagem historiográfica, trata-se de neo-realismo, e do melhor -- isto é: não evidenciando a vulgata que simplifica e sectariza, é suficientemente amplo para ser subscrito por todos quanto comungam de preocupações afins, sem que com isso o autor traia (e se traia) o escopo ideológico que lhe subjaz. O final do romance, magistral, traz-nos uma atmosfera que dir-se-ia paralela à do realismo mágico, que o recém-falecido Gabriel García Márquez consagraria anos mais tarde.
Redol é, sempre foi -- mesmo no inaugural Gaibéus (1939) -- um romancista de raça, um criador de mundos, de atmosferas, de personagens de carne e osso. Barranco de Cegos evidencia-o de tal forma que -- para desgosto de alguns cadáveres -- se inscreve duradouramente no nosso cânone literário.
Etiquetas:
Alves Redol,
Gabriel García Márquez,
Mário Dionísio
domingo, junho 08, 2014
sempre a abrir
Do álbum homónimo (1964, o meu ano). Sempre a abrir, dos acordes iniciais às teclas de George Martin. Ouçam Ringo, a quem se deve a originalidade do título (jornada de trabalho nocturna cansa...) -- ouçam a destreza daquele pulsar das baquetas... O tema é de Lennon, voz principal.
Etiquetas:
George Martin,
John Lennon,
Ringo Starr,
The Beatles
sexta-feira, junho 06, 2014
6.VI.1944
foto: Wikipedia |
Etiquetas:
da história,
da humanidade,
foto
quinta-feira, junho 05, 2014
inevitabilidade e solidão
A interpretação de João Afonso, altíssima, ao nível da lírica de José Afonso, seu tio, uma angústia de inevitabilidade e solidão. João Lucas, a quem pertence o arranjo, exímio (o solo é maravilhoso), dá ossatura a este tema superlativo.
Em baixo, o original, de Cantos Velhos, Rumo Novo (1969).
Etiquetas:
João Afonso,
João Lucas,
José Afonso
o velho Bob morane
A minha geração foi das últimas destinatárias de um certo tipo de produtos (para)literários juvenis assentes na aventura pura e dura, sem grandes pedagogismos à mistura. Havia uma designação que caravterizava muito bem esse segmento editorial: as "bibliotecas para rapazes". A Editorial Íbis, que publicou em álbum Astérix, Lucky Luke, Strapontam, tinha uma mais direccionada "Colecção Pilote", com as sagas de Bob Morane, Barba Ruiva, Tenente Blueberry (Fort Navajo) e Tanguy & Laverdure, ou seja: aventura e ficção científica; piratas; western; guerra, espionagem e aviação.
Embora o meu Bob Morane seja o de William Vance, A Espada do Paladino, história desenhada por Forton (com argumento de Vernes) foi uma das que marcou a minha infância. Começa no castelo que Morane tem na Dordonha, numa noite de bátega, em que, na companhia de Bill Ballantine, é surpreendido pela visita do seu conhecido Professor Hunter. Este, incapaz, devido a um acidente recente, de testar uma máquina do tempo de que é inventor, convida o herói para testá-la, com os riscos inerentes; convite aceite sem mais aquelas por Morane, para desespero de Ballantine, na última vinheta da segunda prancha (e que a abrir a narrativa se queixara de estarem ambos a enferrujar, pela inacção a que se tinham votado). Rapidez estonteante (na mesma prancha, o Prof. Hunter é recebido e o desafio aceite...). E tinha de ser mesmo assim, porque os rapazes que nós éramos, devoravam a revista ou o álbum (relidos muitas e muitas vezes nos anos que se seguiriam), para pegarem na bicicleta, dar toques na bola, descer uma rua num carrinho de rolamentos, dar um mergulho na praia (os que a tinham por perto) ou, até, jogar à pedrada... Os rapazes tinham pressa, e os mestres que escreviam, desenhavam e publicavam estes universos de sonho, sabiam-no.
Vernes & Forton, A Espada do Paladino, Venda Nova, Editorial Íbis, 1970, pranchas 1-2.
Etiquetas:
Gérald Forton,
Henri Vernes,
William Vance
"Era isto que querias, Alfred?"
A entrada inspiradíssima do piano de Hank Jones, trompete e sax alto a par até ao arranque a plenos pulmões de Julian Adderley; depois, Miles Davis, cheio de coolness; o balanço contínuo da secção rítmica. Terceiro solo, o piano a desenvolver o fraseado inicial. Imparáveis, novos solos de Julian, Miles e Hank, para terminar com os riffs com que os sopros abriram, Miles perguntando a Alfred Lion, o produtor: "Era isto que querias, Alfred?..." O tema é de Nat Adderley.
Etiquetas:
Alfred Lion,
Cannonball Adderley,
Hank Jones,
Miles Davis,
Nat Adderley
vitória, vitória...
Primeiro de 24 quadros do quotidiano alemão sob domínio nazi, nos anos pré-guerra. Na noite de 30 de Janeiro de 1933, dois oficiais ss, embriagados, festejam a vitória de Hitler, aquele que vai proceder ao renascimento do povo alemão. Perdem-se no caminho, entrando num bairro suspeito, provavelmente desafecto.; em tempos haviam surpreendido num sítio daqueles "um ninho de marxistas". Temerosos, ouvem um ruído. Abre-se uma janela, um velho em pijama pergunta em voz baixa "És tu, Ema?"... Panicam os ss, desatam aos tiros, e de súbito um grito de alguém atingido por uma bala, irrompe na noite.
duas falas:
«O PRIMEIRO - Numa destas esquinas caçámos um ninho de marxistas. E os tipos depois a dizerem que eram uma associação católica. Mentiras! Nenhum deles tinha colarinho branco!
O SEGUNDO - Achas que ele vai conseguir pôr de pé a grande comunidade nacional?»
Bertolt Brecht, O Terror e a Miséria n o Terceiro Reich [1938], tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, Lisboa, Portugália Editora, s.d., pp. 9-11.
Etiquetas:
Bertolt Brecht,
Fiama Hasse Pais Brandão
asfalto
Seca-te a garganta
A poeira que não sabes de onde vem
É o pó do deserto a entranhar-se
Nos teus canais tu que passas
A vida a inspirar fumo dos escapes
Pois o asfalto foi a tua única aspiração.
A poeira que não sabes de onde vem
É o pó do deserto a entranhar-se
Nos teus canais tu que passas
A vida a inspirar fumo dos escapes
Pois o asfalto foi a tua única aspiração.
quarta-feira, junho 04, 2014
GESTO ANTIGO
Fechar das portadas quando
A noite vinha um acto
Provincial nesse estoril à parte
Do tempo e fora do mundo
Português de então como se
Avós e bisavós mãe eu nós
Quiséssemos preservar o interior
Da casa um ovo protector
"Estão livres de perigo os homens fáceis"
Um inédito primoroso de José Afonso. Não encontrei no YouTube, mas, em contrapartida, posto a primeira versão de um disco anterior, Outra Vida (2006). "Estão livres de perigo os homens fáceis"...
Etiquetas:
João Afonso,
João Lucas,
José Afonso
da amargura
Um póstumo de Zweig, livro negro, como negra foi a fase final da sua vida. Judeu austríaco autoexilado em 1934 (Adolfo, o Hitler, conquistara o poder na vizinha Alemanha no ano anterior...), empreendeu um calvário inimaginável para quem não o viveu. Não que tivesse problemas materiais; mas Zweig era uma figura da cultura europeia, um escritor celebrado e cosmopolita, e ver-se impedido de regressar, posto na condição de apátrida (naturalizou-se inglês, mais tarde), era uma degradação que abalaria qualquer espírito requintado. O duplo suicídio de Petrópolis será um desenlace lógico para esse desespero.
Escrito em dois momentos bem distintos (1930 e c. 1938) -- e publicado apenas em 1982 -- A Embriaguez da Metamorfose conta-nos a história de Christine, uma modesta funcionária dos correios austríacos, vivendo na província no pós-I Guerra, no rescaldo da derrota e desmembramento do Império Austro-Húngaro. A convite de uns tios ricos, há longos anos emigrados nos Estados Unidos, onde fizeram fortuna, passou uma curta temporada de nove dias numa estância de luxo suíça.
Os vestidos caros, o arranjo de beleza que a tia lhe proporciona, realçaram o seu aspecto exterior, tornando-a alvo da atenção da beautiful people em vilegiatura. Ao fim da primeira noite, Christine já era tu-cá-tu-lá com todos os espécimes da alta sociedade que pululavam no hotel, num mimetismo irreal que demora mais de uma semana a ser desvelado -- para mim o maior senão: Zweig força à corência do tempo narrativo uma metamorfose súbita de insustentável verosimilhança. Quando cai em si, quando fazem com que caia em si, Christine abandona abruptamente a estância, foge -- pois que a própria tia, temerosa que viesse à tona um duvidoso passado vienense, se mostra desconfortável --, regressando à vida de funcionária dos correios na província austríaca, depois de ter provado o mel dum mundo de aparente facilidade e prazer.
É quando conhece Ferdinand, em casa da irmã em Viena, que a sua vida mudará, no sentido da libertação. Ferdinand é um despojo de guerra, em todos os sentidos, combatente e posteriormente prisioneiro dos russos, semi-inutilizado para o trabalho, devido a um ferimento que lhe incapacitou um mão, desprovido do património fundiário familiar com o rearranjo das fronteiras europeias, que criou estados onde antes havia impérios, é um inadaptado que sacrificou a flor da juventude aos caprichos do estado imperial áustro-húngaro, carne para canhão jogada fora quando deixou de ser precisa.
A libertação de ambos da vida de pobreza mesquinha e sem sentido que levam só poderá fazer-se de duas maneiras: pela marginalidade, pelo suicídio. A mestria de Stefan Zweig revela-se aqui eloquentemente, e Christine e Ferdinad são dois inesquecíveis pares trágicos da história da literatura (a cena do bordel é antológica).
Análise de uma frustração, recusa da insignificância, A Embriaguez da Metamorfose é, repetindo-me, um livro amargo; mas livro de mestre.
É quando conhece Ferdinand, em casa da irmã em Viena, que a sua vida mudará, no sentido da libertação. Ferdinand é um despojo de guerra, em todos os sentidos, combatente e posteriormente prisioneiro dos russos, semi-inutilizado para o trabalho, devido a um ferimento que lhe incapacitou um mão, desprovido do património fundiário familiar com o rearranjo das fronteiras europeias, que criou estados onde antes havia impérios, é um inadaptado que sacrificou a flor da juventude aos caprichos do estado imperial áustro-húngaro, carne para canhão jogada fora quando deixou de ser precisa.
A libertação de ambos da vida de pobreza mesquinha e sem sentido que levam só poderá fazer-se de duas maneiras: pela marginalidade, pelo suicídio. A mestria de Stefan Zweig revela-se aqui eloquentemente, e Christine e Ferdinad são dois inesquecíveis pares trágicos da história da literatura (a cena do bordel é antológica).
Análise de uma frustração, recusa da insignificância, A Embriaguez da Metamorfose é, repetindo-me, um livro amargo; mas livro de mestre.
Etiquetas:
Adolph Hitler,
Stefan Zweig
todos solam
Atlanta Blues (Make me A Pallet On Your Floor). Versão de W. C. Handy de um standard de autoria desconhecida, remontando ao século XIX. Satchmo dialoga consigo mesmo, trompete e scat, todos solam. Arvell Shaw, no contrabaixo -- anota George Avakian no texto de contracapa --, brinca com Pops, que não era propriamente um fã de Charlie Parker, citando Ornithology...
Em baixo, a canadiana Bria Skonberg, excelente.
Etiquetas:
Arvell Shaw,
Bria Skonberg,
Charlie Parker,
George Avakian,
Louis Armstrong,
W. C. Handy
do dispensável
Tinha alguma expectativa em relação a este livro. Nunca lera nada do autor -- à parte alguns artigos ou contos dispersos --, é talvez o único título seu que não caiu em esquecimento completo, mercê do Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências que lhe foi atribuído em 1939, ano da edição. Andava com ele há anos na cabeça: Aldeia das Águias, título sugestivo, evocando com a literalidade que nome e capa impunham -- e que veio a verificar-se --, uma narrativa situada numa área semi-isolada, em faldas e escarpas duma província nortenha.
À medida que ia avançando, a desilusão era crescente. Uma oposição cidade-campo já então com barbas, Júlio Dinis entrado pelo século XX adentro, sem o talento, o humor e a mestria do autor d'A Morgadinha dos Canaviais. As personagens são esquemáticas, previsíveis quase caricaturas: irmão mau e irmão bom -- um, velhaco, vaidoso, desprezível, quase psicopata; honrado, generoso e abnegado, o outro; um amigo de infância do primeiro, de estrato social muito abaixo, personagem sacrificial da narrativa, quase um santo, mais do que a criada desonrada pelo "menino", que arrostou com a fúria paterna, vindo, obviamente, mais tarde a ser redimida pelo irmão bom... As cenas de cidade -- Porto -- são pobres e a linguagem é confrangedora e insuportavelmente banal e magazinesca.
Há algumas boas páginas -- melhor fora --, em especial as que são centradas na aldeia de Sedielos (Régua), terra-natal do autor: o quadro de caça às águias, predadoras dos rebanhos, que ciclicamente a aldeia em peso promove, é do melhor que o livro tem. E nem falta o maluquinho de aldeia, o Taranta, a dar a tonalidade trágica de acento camiliano, que narrativas deste género exigiam.
Poderia ser um bom romance em mãos de mestre. Mesmo que em 1939, Ferreira de Castro e José Régio, cada um a seu modo, houvessem já transformado o romance português -- este com o Jogo da Cabra Cega (1934); aquele, a partir de Emigrantes (1928) -- não se seguia forçosamente que um romance mais académico tivesse de ser por força dispensável (quem desdenha, por exemplo de Rachmaninov por antes dele ter havido Schönberg ou Debussy ou Stravinski? Só um pateta); nem seria preciso que o autor tentasse equiparar-se a Aquilino Ribeiro -- de quem está a anos-luz. Bastaria não ter sido tão acomodatício, previsível, superficial; ou, estilisticamente, afastar-se da vulgaridade da escrita postiça, no seu dar-se ares modernaços, para que pudesse ser algo que se lesse a contento, 75 anos depois. Mas não, já era irrelevante quando saiu dos prelos.
À medida que ia avançando, a desilusão era crescente. Uma oposição cidade-campo já então com barbas, Júlio Dinis entrado pelo século XX adentro, sem o talento, o humor e a mestria do autor d'A Morgadinha dos Canaviais. As personagens são esquemáticas, previsíveis quase caricaturas: irmão mau e irmão bom -- um, velhaco, vaidoso, desprezível, quase psicopata; honrado, generoso e abnegado, o outro; um amigo de infância do primeiro, de estrato social muito abaixo, personagem sacrificial da narrativa, quase um santo, mais do que a criada desonrada pelo "menino", que arrostou com a fúria paterna, vindo, obviamente, mais tarde a ser redimida pelo irmão bom... As cenas de cidade -- Porto -- são pobres e a linguagem é confrangedora e insuportavelmente banal e magazinesca.
Há algumas boas páginas -- melhor fora --, em especial as que são centradas na aldeia de Sedielos (Régua), terra-natal do autor: o quadro de caça às águias, predadoras dos rebanhos, que ciclicamente a aldeia em peso promove, é do melhor que o livro tem. E nem falta o maluquinho de aldeia, o Taranta, a dar a tonalidade trágica de acento camiliano, que narrativas deste género exigiam.
Poderia ser um bom romance em mãos de mestre. Mesmo que em 1939, Ferreira de Castro e José Régio, cada um a seu modo, houvessem já transformado o romance português -- este com o Jogo da Cabra Cega (1934); aquele, a partir de Emigrantes (1928) -- não se seguia forçosamente que um romance mais académico tivesse de ser por força dispensável (quem desdenha, por exemplo de Rachmaninov por antes dele ter havido Schönberg ou Debussy ou Stravinski? Só um pateta); nem seria preciso que o autor tentasse equiparar-se a Aquilino Ribeiro -- de quem está a anos-luz. Bastaria não ter sido tão acomodatício, previsível, superficial; ou, estilisticamente, afastar-se da vulgaridade da escrita postiça, no seu dar-se ares modernaços, para que pudesse ser algo que se lesse a contento, 75 anos depois. Mas não, já era irrelevante quando saiu dos prelos.
terça-feira, junho 03, 2014
por caridade
«Retrato de Mónica». Retrato desapiedado duma mulher fútil que vive, não para os outros, mas que se alimenta dos outros, do que consegue extrair dos outros em benefício próprio, o que é muito pouco cristão -- ou nada cristão. A história integra os Contos Exemplares (1962), a primeira incursão de Sophia na ficção adulta, prefaciada pelo célebre bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e está impregnada de ética cristã, de catolicismo social e inconformista.
Para Mónica, tudo está bem como está, cada coisa no seu lugar -- e ela voga no statu quo, serve-se dele para brilhar, para ofuscar na sociedade de ouro falso dos interesses, das convenções, dos negócios. E, por isso, tudo (lhe) serve: do casamento (espécie de sociedade) à caridade, que lhe amplifica a bondade, passando pela cumplicidade com o "Príncipe deste Mundo", numa nada velada alusão a Salazar, "um homem austero e casto".
O início: «Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultâneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.»
Um parágrafo: «É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.»
Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares, 3.ª edição, Lisboa, Portugália, 1970, pp. 113-120.
Anna de la Cerna e outras personagens
Um romance curto e dois contos esboçados nos primórdios da vida literária, e reescritos na década de 1980, sempre com a grande erudição de Yourcenar, que contudo, não deixa ofuscar a artista que ela é. Lembro-me muitas vezes, da Agustina a propósito; não quanto à quebra dos interditos sexuais, muito mais evidente por parte da belga, como, à partida, me parece mais natural.
«Anna, soror...», o primeiro conto, magnífico, sobre um delicado amor incestuoso, nunca consumado, entre irmão e irmã, passado na Itália espanhola dos sécs. XV-XVI, e na Flandres, então também do Habsburgos. Morto o irmão ainda jovem, ela alimenta esse amor ainda para além da morte, apesar do casamento imposto, da maternidade e da viuvez de Anna de La Cerna, depois sóror...
«Anna, soror...», o primeiro conto, magnífico, sobre um delicado amor incestuoso, nunca consumado, entre irmão e irmã, passado na Itália espanhola dos sécs. XV-XVI, e na Flandres, então também do Habsburgos. Morto o irmão ainda jovem, ela alimenta esse amor ainda para além da morte, apesar do casamento imposto, da maternidade e da viuvez de Anna de La Cerna, depois sóror...
«Um homem obscuro» que anda ao sabor da vida no século XVII, pela Inglaterra, o além-mar e, principalmente, as Províncias Unidas (Holanda). Natanael, filho dum operário holandês da construção naval, radicado no sul da Inglaterra, embarcado, náufrago, empregado numa encadernadora de um tio, em Amesterdão, amancebado com uma ladra e prostituta, Sarai, de quem tem um filho, empregado em casa de um burguês, com uma bela, melancólica e cultivada filha, a Senhora d'Ailly. A saúde débil faz com que o patrão o envie como guarda duma propriedade na costa duma ilha quase desabitada, onde espera um regresso (a Senhora d'Ailly...), mas o estado deteriora-se e o desengano sobrevém, resignadamente, como a água que corre...
«Uma bela manhã» revela Lázaro, filho de Natanael e Sarai, órfã e a viver com a avó numa estalagem por onde passa, certo dia uma troupe de actores a caminho das cortes da Escandinávia, onde as consorte inglesas apreciam assistir ao teatro do seu país. Fala-se num certo Shakespeare... Ao contrário dos textos anteriores, parece-me que Yourcenar não foi tão feliz aqui, tendo, talvez, fechado a narrativa quando ela teria mais para dar.
Etiquetas:
Agustina Bessa Luís,
Marguerite Yourcenar,
William Shakespeare
o ataque concertado ao Tribunal Constitucional
O desbragamento do Governo para com o Tribunal Constitucional, ultrapassa tudo o que é admissível num relacionamento institucional. Não que o Tribunal não possa ser criticado, era o que faltava!, mas o tom de ataque concertado justifica uma intervenção do Presidente da República, para que ponha pimenta na língua destes meninos.
Até porque todos percebemos a fúria (mesmo os menos atentos, ajudados pelo Prof. Marcelo): com este chumbo do TC, lá se foram as flores para 2015, os rebuçados distribuídos à populaça. Ou então, o Governo irá aos mercados endividar-se mais, a agradáveis taxas de juro, para suprir o fundo de maneio que os juízes lhe retiraram.
Estes indivíduos são perigosos, mentirosos contumazes e não recuam diante de nada, como se sabe, desde 2011.
Etiquetas:
da pólis,
Marcelo Rebelo de Sousa
Subscrever:
Mensagens (Atom)