quarta-feira, outubro 29, 2025

o que está a acontecer

«Ficara sentada à mesa a ler o "Diário de Notícias". Roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soustache, com largos botões de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras: com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis e rubis miudinhos davam cintilações escarlates.» Eça de Queirós, O Primo Basílio (1878)

«Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes os seu exercício.» Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas (1972) 

«Havia certa imponência no seu jeito de segurar com os dedos claros, de unhas roídas, uma pasta acorcodilada e sempre pletórica. O andar, cuja morosidade provinha de infidelidades ao pedicuro, convertia-o ele numa altiva pachorra ao singrar entre mesas a caminho do seu cenáculo, como lanchão bojudo coleando no porto em demanda do cais.» Tomás Ribeiro Colaço, A Calçada da Glória (1947)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«Igualmente pode reportar-se 'à la petite patrie', Lisboa, como se entrevê em cima quanto a Alenquer. Os dois versos seguintes:
"Que veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre e mana"
dão-nos a chave do problema.
Aganipe é a fonte -- não se esqueceu de no-lo dizer Padre Manuel Correia, cura da Mouraria, nos doutos 'Comentários' -- cuja linfa torna poetas quem a beba. A mesma virtude terá o mundo de reconhecer em Lisboa, de que Tejo na estrofe em questão é metonímia manifesta, pois ali está ele, Luís de Camões, a proclamá-lo, por nascença e criação, com sua inspirada lira.
Semelhantes versos são conclusivos quanto a determinar qual seja a terra que se deva considerar seu berço.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões - Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)