domingo, outubro 31, 2010

Antologia Improvável #456 - Ademir Assunção

OS LEÕES ESTÃO BRINCANDO NO JARDIM


Dentes gelados, unhas à mostra

o leão arranha levemente

a pele de puro gesso: estátua branca

Peônias farfalham mudas

ante a imaginação selvagem e furiosa

vento vento vento

na tarde de abismos, constelações

de leões, centauros prontos para o bote,

o amor perigoso, atado ao tudo

ou nada: um par de olhos diante

de sua máscara de oxigênio






Na Virada do Século -- Poesia de Invenção no Brasil
(edição de Claudio Daniel e Federico Barbosa)

sexta-feira, outubro 29, 2010

boas maneiras

Albert Collins
foto - John Wooler

quarta-feira, outubro 27, 2010

execute-se

Administração, n. Em política, uma engenhosa abstracção, concebida para receber os pontapés e as estaladas que o Primeiro-Ministro e o Presidente deviam levar.
Ambrose Bierce, Dicionário do Diabo (trad. Rui Lopes)

David Mourão-Ferreira

5 poemas, aqui

terça-feira, outubro 26, 2010

a escandaleiras destas é que eu acho piada

É um verdadeiro escândalo o número de mulheres de Londres que flirteam em público com os próprios maridos. Parece mal; dá a impressão de que vêm lavar a roupa limpa diante dos olhos de todos. Oscar Wilde
Pensamentos e Paradoxos (ed. Almeida Paiva)

O Vale do Riff - The Notting Hillbillies, «Railroad Worksong»

segunda-feira, outubro 25, 2010

Antologia Improvável #455 - Ana Salomé

DIÁRIO

A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.












Resumo -- A Poesia em 2009
(escolha de José Tolentino Mendonça,
Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas)

domingo, outubro 24, 2010

sem título

Respondi há tempos ao convite da Ana Vidal, do Delito de Opinião.


Abaixo do baixo
desceste,
tanto quanto o
instinto te impôs.

Não esteve em ti,
não dependeu de
ti a salvação
que procuraste.

Veio de ti, porém;
e outro ficaste, sem
saberes como foi que
uma família te compôs.

O Vale do Riff - Bob Brookmeyer & The Schleswig-Hostein Big Band, feat. Clark Terry, «Birthday Suite 1»

acordes diurnos

quem pode censurar?

A um homem já idoso censurava-se que fizesse a corte a jovens donzelas. "É o único meio -- replicava ele -- de se rejuvenescer e isso qualquer pessoa o deseja."
Goethe, Máximas e Reflexões (trad. Afonso Teixeira da Mota)

sábado, outubro 23, 2010

estampa CLX

Cândido Portinari, Ícaro e Prometeu
Colecção particular, Rio de Janeiro
(daqui)

acordes diurnos

quinta-feira, outubro 21, 2010

ironia vs. sarcasmo

eu bem tento parecer um eça, mas resvalo quase sempre prò camilo...



Arte de Ser Português

de Teixeira de Pascoais (1915). Como poética, bom -- por vezes precioso: «desejar é querer e querer é esperar» (3.ª ed., Lx., Assírio & Alvim, 1998, p. 76); como história, como sociologia, como política -- e fundamentos delas, destinados «à mocidade» --, um disparate (v.g.: «Se a nossa grandeza morreu materialmente, foi para ressurgir em espírito. O Sebastianismo, sendo a expressão mítica da nossa dor, é já, em sombra nocturna, o futuro sol da Renascença.» -- p. 117). Disparates que, sem fazerem vencimento, larvaram em sectores do pensamento português desde então, em oposição ao racionalismo sergiano e sequentes.

quarta-feira, outubro 20, 2010

caracteres móveis


Os tolos admiram tudo num autor consagrado. Eu só leio para mim e só gosto daquilo que me dá prazer.
Voltaire, Cândido 

meudeus

Que chicotada, meudeus, que chicotada!...

Mikhail Mikhailovich Ippolitov-Ivanov

«Quadros Caucasianos». O encanto do academismo.


Alberto de Lacerda

Um dos maiores poetas portugueses da sua geração. Finíssimo. Contido. Os fragmentos de diário que o JL hoje publica, pela mão amiga de Luís Amorim de Sousa é revelador desse aristocratismo. Como ele fala dos Sitwell...; como ele fala de Almada Negreiros, em visita de ambos à Tate...; como fala da Lisboa soalheira em 59 e das almas soturnas que a habitam...; como fala do grande Manuel Bandeira... Que referência e que lição para este tempo de verborreia e gosto degenerado. 

O Vale do Riff - The Tangent, «Lost In London»

Sidónio Muralha

5 poemas, aqui.

terça-feira, outubro 19, 2010

Curvam-se ante esta desgraça os montes
Anna Akhmátova

segunda-feira, outubro 18, 2010

Antologia Improvável #454 - Maria Manuela Margarido

VÓS QUE OCUPAIS A NOSSA TERRA

É preciso não perder
de vista as crianças que brincam:
a cobra preta passeia fardada
à porta das nossas casas.
Derrubam as árvores fruta-pão
para que passemos fome
e vigiam as estradas
receando a fuga do cacau.
A tragédia já a conhecemos:
a cubata incendiada,
o telhado de andala flamejando
e o cheiro do fumo misturando-se
ao cheiro do andu
e ao cheiro da morte.
Nós nos conhecemos e sabemos,
tomamos chá do gabão,
arrancamos a casca do cajueiro.
E vós, apenas desbotadas
máscaras do homem,
apenas esvaziados fantasmas do homem?
Vós que ocupais a nossa terra?

in No Reino de Caliban II(edição de Manuel Ferreira)

O Vale do Riff - Kayak, «Merlin»

domingo, outubro 17, 2010

impacientava-se

Entrara na estalagem e pedira o caldo.
Contrariado, ainda não comprara o Mercúrio.
O rei agonizava. O jovem príncipe, um pequeno génio desinteressado dos assuntos de estado,  passava os dias no laboratório, classificando as espécies zoológicas e botânicas do reino, trocando com sábios de Uppsala e Cracóvia os resultados das suas experiências.
A rainha perdera a vergonha, dizia-se. O duque de Bruff não lhe bastara. Nem o leito. Comentava-se que rodava indecorosamente pelos palafreneiros da estrebaria real.
Sentia as pessoas inquietas. O exércitos imperiais movimentavam-se sem pudor na fronteira oriental.
Não tinha o Mercúrio para ler, e o caldo tardava.

gravura: Théophile Schuler

boas maneiras, porque sim























sexta-feira, outubro 15, 2010

só assim vale a pena morrer

É tarde já, vão sendo horas -- horas de quê? De nada. De existir. De olhar ainda a luz, a vida. De absorver em mim o universo e levá-lo comigo sem nada desperdiçar. De exercer o ouvido enquanto ouve, os olhos, o corpo inteiro, para que nada fique dele sem se cumprir. De encher os bolsos de tudo o que se me dá ou sonhar mesmo o que não me deram e não deixar perder nada por distracção. De dizer a palavra vida e tudo nela florir logo na sua existência para levar comigo essa vida inteira e tê-la comigo na morte. 
Vergílio Ferreira, Escrever  (edição de Helder Godinho)

quarta-feira, outubro 13, 2010

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, outubro 12, 2010

todos queriam, menos os santos

O que é [...] a classe dirigente?
Os que consomem, os que dirigem.
Porém, dirigir não é trabalho nenhum. É apenas uma ocupação. Nem isso. É comparável às caçadas organizadas pela nobreza, aos bailes que dá, às viagens que faz, e a outros prazeres de carácter secreto. August Strindberg
Breve Catequese para a Classe Oprimida (trad. Alexandre Pastor)

O Vale do Riff - Reigning Sound, «Bad Man»

segunda-feira, outubro 11, 2010

domingo, outubro 10, 2010

Antologia Improvável #453 - A. M. Pires Cabral

A ANDORINHA OU TUDO É RELATIVO

Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.

Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.



















Arado / Resumo -- A Poesia em 2009
(escolha de José Tolentino Mendonça)



O Vale do Riff - Frank Zappa, «Muffin Man»

sábado, outubro 09, 2010

sexta-feira, outubro 08, 2010

A Esquerda e o Prémio Nobel

O nunca por demais louvado Comité Nobel Norueguês premiou um dissidente. Um dissidente é, normalmente, alguém que comete o crime de pensar pela sua cabeça, um indivíduo extremamente subversivo.
Ao contrário do que tenho lido por aí, a direita não tem de ficar particularmente feliz pela atribuição do Nobel a Vargas Llosa e a Lu Xiabo. Porque raio, a direita?! Toda a esquerda libertária, todos os homens livres se devem congratular com estas excelentes notícias, pois a esquerda só pode ser incompatível com o totalitarismo. Defender o contrário, sobre ser estúpido é insultuoso. Além disso, pelas razões que já expus aqui, este galardão pode ser também uma óptima notícia para a China, mesmo que a classe dirigente não o possa admitir.
Adenda (12/10/2010): a reacção do PCP, tornada pública ontem, é a habitual: inenarrável. É bom lembrá-la, quando vieram com a lenga-lenga do costume.
Lu Xiaobo e sua mulher Liu Xia, há meia dúzia de anos
foto AFP

O Vale do Riff - Stevie Wonder, «Big Brother»

quinta-feira, outubro 07, 2010

eu também quero dizer qualquer coisa sobre o Mario Vargas Llosa

Um dos livros da minha vida é A Guerra do Fim do Mundo, do Mario Vargas Llosa. A propósito da história de António Conselheiro e das campanhas militares de Canudos, um dos episódios mais dramáticos, sangrentos, fantásticos e fanáticos da história do Brasil, o escritor peruano cometeu o feito de evocar (e, de alguma forma, emular) com sucesso essa obra-prima da literatura brasileira e da língua portuguesa que é Os Sertões, do Euclides da Cunha. Quer um quer outro, já passaram por aqui, e hão-de voltar.
Por razões obscuras, e apesar de ter gulosamente as Travessuras da Menina Má numa pilha prioritária, nunca li a outra ficção sua. Mas -- para além de ensaios dispersos -- recordo-me de às sextas-feiras, no DNA, creio, devorar-lhe as crónicas.
Neste dia em que lhe foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura, quero frisar que, do pensamento político e ético do autor de A Tia Júlia e o Escrevedor (vi o filme...), se extrai uma lucidez , uma argúcia e uma finura que é timbre dos grandes intelectuais: alguém que não se deixa encantar pelas utopias revolucionárias que, q.e.d. (URSS e Satélites; Fidel Castro a apodrecer no poder, em Cuba; capitalismo selvagem envergonhado de partido único, na China; a tirania mais grotesca e desprezível na Coreia do Norte), se perverteram; mas que, reconhecendo a até hoje inultrapassável superioridade dos sistemas demo-liberais, no que ao Ocidente (e não apenas) diz respeito, foi (e creio que continua a sê-lo, apesar de já não o ler com regularidade há muito tempo) crítico deste mercantilismo despudorado que nos trata a todos como potenciais consumidores de mercadorias, antes de nos considerar como pessoas.

quarta-feira, outubro 06, 2010

do politicamente correcto

Mascarar a natureza e disfarçá-la. Não é rei, papa, mas augusto monarca, etc. nada de Paris, mas capital do reino. Lugares há em que é preciso chamar paris a paris e outros onde se lhe deve chamar capital do reino. 
Pascal, Pensamentos

O Vale do Riff - Neil Young, «Harvest Moon»

terça-feira, outubro 05, 2010

figuras de estilo

O fogo celeste -- esse fogo que Prometeu, simbolicamente, quis roubar aos deuses -- só na mão dos deuses está em segurança. Se o houvessem para si, os homens em breve teriam feito dele o que fizeram a tanta outra dádiva divina -- tê-lo-iam, talvez, aproveitado para carburante de automóvel ou combustível de fogareiros de cozinha. É nas mãos dos deuses que ele deve estar, e os poetas que ousam, como Prometeu, subir até eles no seu despeitado desígnio, esses, e só esses, têm o direito de ser considerados grandes poetas. João Gaspar Simões, Crítica. II

acordes diurnos

...se me dão licença

Nos últimos 200 anos, há duas datas importantes para mim: a revolução liberal de 1820 e a Constituição de 22; a revolução democrática do 25 de Abril de 1974 e o fim da nódoa colonial. Para o 5 de Outubro, com os seus burgueses, os seus exaltados profissionais, os seus tribunos vazios que nos conduziram ao Salazar, estou-me nas tintas.

caracteres móveis

-- Ah! É preciso ser-se sensual para se ser humano? 
-- Certamente, Madame. A piedade está nas entranhas, Tal como a ternura está na pele
Anatole France, O Lírio Vermelho