quarta-feira, julho 03, 2024

caracteres móveis 3 - OS MAIAS

«Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas.» Eça de QueirósOs Maias (1888)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«Debaixo do ponto de vista utilitário, poetar não goza nada foros de actividade apresentável. Assim, presumo que se não encontraria um burguês, bom burguês, que deixasse casar a filha com um homem apenas porque fosse poeta, ou fizesse exame de poeta, ficando aprovado com vinte valores, como não haveria quem lhe tomasse semelhante título em consideração para efeito de ir ocupar um lugar num Banco ou na gerência duma Sociedade. Para dizer tudo, o ofício não recomenda o oficial.
Ora, se hoje é assim, não passando de fumo, reflexo, sombra fátua do que foi, que halo envolvia no século XVI a pessoa dum poeta? Decerto que esta prenda, versejar, viera com os trovadores. Enquanto se confinara à cantiga de amor ou de maldizer, breve e oportuna como um gracejo ou chufa, era missanga do Paço. Desde que entrou para a categoria de arte mesteiral, irradiou para o vulgo. Com isso, o poeta teria ficado mais perto do aedo grego, que andava de terra em terra cantando os feitos de guerra e os amores dos heróis, do que do senhor de cabeleira já tratada, unhas brunidas ao polidor, que se senta à mesa do Círculo Eça de Queirós para fazer coro ao luminar estrangeiro das letras, hóspede de António Ferro. De verdade, que este é o poeta oficial, forma que não existia no século XVI. No século XVI o que existia, de aproximado calibre, eram os rimadores cortesãos. Mas estes cultivavam as musas tão mecanicamente como aprendiam a montar a cavalo ou a dançar. Sem obedecer a nenhum outro mandato superior. E estavam tão longe do poeta livre, do poeta sem coleira, do poeta que canta por inspiração de Deus, se bem que tirando daí o seu pão, como a noite do dia.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões-Fabuloso*Verdadeiro. "Introdução". Ensaio (1950)