sexta-feira, julho 16, 2021

Cuba, notas breves, impasses vários

 Ando há dois dias à volta deste texto, com medo de precipitar-me; até porque sou um conhecedor superficial da realidade cubana. Ou seja, sei o que toda a gente sabe, ou só um bocadinho mais do que a generalidade dos cidadãos. No entanto, quero escrever algo, tentando algum equilíbrio, porque a realidade nunca é maniqueísta.

1. Que faria se fosse cubano? Quereria uma sociedade livre e justa; e portanto, se fosse um rapaz novo, estaria na rua, suponho; até porque dificilmente teria a noção de que a CIA também por lá anda, o que não serve de desculpa para o resto. Cuba não é uma sociedade livre, como toda a gente bem formada sabe; Cuba não pode ser uma sociedade justa. Onde há apparatchiks -- e são quase todos, é da natureza dos sistema --, há privilégios de casta. Onde há privilégios de casta, não há comunismo nenhum, mas apenas uma aldrabice, mais ou menos sofisticada.

2. Cuba antes da revolução: um bordel da máfia, uma cloaca para os dejectos norte-americanos, como a generalidade dos países da América Central, os tais shitty countries do falecido Donald Trump, donde promanou a expressão "república das bananas", e dos quais milhões de miseráveis partem todos os dias até à fronteira do México com os Estados Unidos, fugindo ao destino que está marcado aos filhos dos pobres, tráfico, banditismo, se rapaz, a prostituição, sendo rapariga. Ora, há que dizê-lo, alto e bom som, que destas maravilhas do mundo livre, passou Cuba a estar privada desde a revolução, o que não é pouca coisa, por muito que Biden e os antecessores queiram resgatar aquele povo que tanto amam da opressão.

3. Fidel Castro. Por muito que não se goste do estatismo burocrático pseudocomunista -- e eu detesto-o, como se viu --, há algo que ninguém tira a Fidel Castro e aos restantes companheiros da revolução cubana: a dignidade de pegar em armas e derrubar um pequeno pulha. E, já agora, o de transformar um estado latrina (como o são os países centro-americanos, com excepção da Costa Rica) numa outra coisa, que naquele continente os dedos de uma só mão sobram para que se encontre semelhante. Claro que o Castro instalou-se no poder, e o poder corrompe, não apenas os fracos.

(Parênteses: Castro não era comunista; foi a brutalidade arrogante dos americanos, que se combina com estupidez e cupidez em dose cavalar -- e que está na origem de boa parte dos conflitos em que eles se meteram (ler sempre O Americano Tranquilo do Graham Greene, deveras instrutivo) -- que empurraram Fidel, educado pelos jesuítas, para os braços da União Soviética, o melhor que ele fez, de resto, para a manutenção no poder.)

4. Claro que isto não serve de desculpa para os impasses daquela sociedade -- mesmo com o bloqueio americano --, porque o comunismo estatista é uma aberração, como aliás desde sempre avisaram os anarquistas. Não há "partidos" revolucionários e muito menos governos (um "governo revolucionário" é uma contradição nos termos, escreveu Kropótkin). Quanto a haver "estados revolucionários", só por piada se pode dizê-lo; piada amarga, para muitos que o sofrem. A táctica leninista de assalto ao estado alcandora o Partido ao poder. Dali brotaram chefes sanguinários impiedosos e sanguinários, Lénin, Tróstky, sátrapas como Stálin e Mao, alucinados tais Enver Hoxa ou Ceausecu, e até ditadores suaves, como o húngaro Kadár ou o croata Tito. Olhar para Brejnev e ver a traição a qualquer ideal revolucionário e a ausência de um pingo de vergonha na cara. Quem diz Brejnev diz os outros todos, ou quase. Um dos poucos verdadeiros revolucionários do antigo Bloco Leste foi o eslovaco Dúbcek, cujo nome deveria fazer corar qualquer defensor do burocratismo soviético. 

5. Revolucionários transformados em funcionários, um vício de base. A funcionalização da política: o carreirismo, o amiguismo, a incompetência, a mediocridade e quantas vezes a impunidade. É assim o funcionalismo, nem pode ser doutro modo. A natureza humana. O sovietismo aí está, longo cortejo de horror, arbitrariedade, não vale a pena virem com a costumeira língua de pau. Até já estou a ouvir: "e então os crimes do capitalismo?...", como se esses outros actos nefandos, feitos em nome de nada que não a cupidez e mentiras mal amanhadas (veja-se a criminosa invasão do Iraque), isentassem, desculpassem, suavizassem os crimes do outro lado. Pois para mim é precisamente o contrário: é mais grave a mentira do lado que proclama a emancipação humana e a trai; o capitalismo (os subprime, os bes, todo esse lixo) é aquilo mesmo, rapina, e como tal deve ser tratado, sem ilusões de bondade.

6. Economia de guerra e índices de desenvolvimento na saúde e na educação sem par naquelas bandas já não comovem uma geração que quer respirar, e que obviamente assiste ao nepotismo e impunidade de um regime de funcionários, que é nisso que se tornam os revolucionários quando se sentam nas cadeiras do poder, retrato expressionista da fraqueza humana ou caricatura de si próprios. Por essa razão, um revolucionário autêntico como o Che Guevara, pese os seus erros, se afastou para fazer a Revolução alhures. Alguém imagina o tédio (quando não o nojo) do Che no meio de funcionários, discutindo informes, tendo de gramar ora o sabujo, o puxa-saco (na maravilhosa expressão brasileira) ora o oportunista, carreiristas todos, ou quase? Cristo!... 

7. Não sou especialista em Estratégia para arriscar uma prospectiva, no entanto a situação do actual poder cubano parece desesperada. Os Estados Unidos vão fazer ali o que lhes apetecer (Biden não é Obama) e sem nenhum respeito, a partir do momento em que a Rússia deixou claro que a soberania dos vizinhos é limitada. Putin bem avisou, mas não o quiseram ouvir. Se tal vier acontecer, resta esperar que o alto índice de instrução da população cubana, uma das conquistas da sua revolução, e os exemplos de máxima degradação da vizinhança possam impeli-los a construir uma sociedade não apenas livre para todos os indivíduos, mas justa.

2 comentários:

CCF disse...

Se o maturou fez bem pois chegou, parece-me, a um texto justo e coerente.
~CC~

R. disse...

Espero que sim...
Obrigado.