sábado, outubro 28, 2017

o enxovalho

Se Portugal defende o direito à auto-determinação dos povos, princípio basilar do direito democrático e da carta das Nações Unidas, não podia nem devia assobiar para o lado quando esse princípio está posto em causa, e há mil e uma maneira de fazê-lo diplomaticamente. Pelo contrário, a forma como os líderes políticos se têm referido ao assunto, para agradar a Madrid, é indecente e indigna. Indecente, porque dão a imagem de um país de rabo alçado; indigna, porque se fossem políticos com princípios, tinham obrigação de nutrir alguma empatia pela vontade de autodeterminação dos catalães, sabendo-se pôr no seu lugar. Porque, se 1640 tivesse corrido mal, como correu aos catalães, poderíamos estar em situação semelhante: depois de séculos de domínio e repressão, prisão e morte dos líderes independentistas, proibição da língua, teríamos hoje de ouvir um primeiro-ministro a dirigir-se-nos em castelhano, a partir de Madrid, a insultar-nos e ameaçar-nos, e toda uma classe política, dum franquista prático como o líder do Ciudadanos a uma nulidade como o secretário-geral do PSOE, a perorar sobre a nossa aspiração à liberdade. Pior: poderíamos estar agora, na eventualidade de a Catalunha, bem sucedida então na guerra de independência, aparecer com líderes simétricos aos nossos, com comentários acintosos, como os vergonhosos proferidos pelo ministro Santos Silva, pessoa que até agora me merecia respeito intelectual.
Neste momento, já nem é vergonha o que sinto pela atitude do governo  e do PR; sinto-me enxovalhado por, em nome de Portugal -- também em meu nome, portanto -- se apressarem a dar a Madrid uma solidariedade de que ela não é credora.
Se a situação vier a evoluir no sentido correcto, o da autodeterminação, graças à coragem e perseverança dos catalães, com eles estará a razão da ética e da História (aliás, estará sempre, mesmo em caso de derrota); e quanto a nós ficará a nódoa, que poderá ser remediada ou esquecida, mas nunca apagada.

4 comentários:

Jaime Santos disse...

Imagino que se deverá concluir que a França e a Alemanha também estão de rabo alçado porque disseram o mesmo. Se é assim, estamos bem acompanhados. Ou será que para si o facto de isto se passar com a Espanha, o nosso vizinho maior e mais poderoso, é obrigatoriamente sinal de que se não somos rebeldes, somos subservientes?

Eu cá acho que como teremos que continuar a viver com eles (Castela é aqui mesmo ao lado), vale bem a pena ser-se cauteloso... Preferiria antes que o Governo Português fosse mais assertivo em questões que nos dizem respeito, como Almaraz ou os rios...

Meu caro, a sua opinião pode ser diferente da minha e da do Governo Português, mas o seu argumento não ganha nada com esse tipo de considerações. Pode dizer que os argumentos legalistas ou os tratados não valem o papel em que estão escritos, mas são eles que de determinam as relações entre os Estados, à boa maneira de Vestefália.

E não vale a pena dizer que noutras ocasiões tal não foi observado. A Alemanha e o Vaticano fizeram mal em reconhecer a partição da Jugoslávia e nem vale a pena falarmos do que se passou no Kosovo. Aqui é exatamente a mesma coisa, está-se a abrir uma caixa de serpentes...

Pelo menos deixou de insistir que tínhamos uma qualquer dívida à Catalunha, para reconhecer apenas que aquilo lhes correu mal (apesar de se terem colocado sob a proteção da França, se não estou em erro).

Estou certo que se se tornarem independentes, as relações entre a Catalunha e Portugal serão excelentes, determinadas pelo direito internacional e pelos interesses comerciais mútuos. Isto se sobrar alguma Economia à Catalunha por onde começar, claro está... As escolhas verdadeiras afinal nunca se fazem sem consequências (afirmar o contrário é demagogia) e espero que não venham depois acusar os investidores e os capitalistas de serem uns traidores porque se limitam a defender os seus interesses... Mas talvez a CUP tenha a oportunidade de experimentar o seu modelo económico alternativo...

R. disse...

Não, estamos mal acompanhados; prefiro a companhia da Bélgica e da Eslovénia.
Quanto à questão da rebelião, não se põe, como é óbvio, pois não temos questões com a Espanha, salvo ali para o Alentejo.

Sempre defendi o melhor entendimento com os Espanhóis, o que não significa andarmos de cu para o ar.

Não ganham nada, os argumentos... Então diga lá porquê.
Há princípios ou somos farsantes?
Ou só podemos zurzir no juiz tosco, no Sócrates ou no Gentil Martins, e quando o estado português defende o indefensável por cálculo e cobardia, mais do que lhe era necessário, já é inconveniente verberar essa atitude?

Engana-se quanto à Iugoslávia: a sua desintegração foi promovida pelas potências exteriores, exactamente o contrário do que se está a passar com a Catalunha. O país nasceu da vontade, forjada durante o século XIX, das elites sérvias, croatas e eslovenas que pretenderam congregar-se numa federação de eslavos a sul, antes dominados por otomanos e austro-húngaros. Daí o nome inicial do país: Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, constituído com o fim da Grande Guerra. A Catalunha espanhola é fruto dum consórcio real combinado no século XV, em que uma das partes foi perdendo poder para a outra, em especial a partir da centralização do poder régio em Madrid. O statu quo desde então só é mantido pela força. Se a força servia para o século XVII, não serve para o século XXI. Só há, portanto, um meio de solucionar o problema de forma democrática: ouvir os catalães, democraticamente. Não o permitir é ilegítimo. O estado português associar-se a essa farsa é deplorável, por muito que nos dê jeito.

De resto não há "caixa de serpentes" nenhuma por duas razões: em primeiro lugar, a vontade colectiva é persistente, e nem com o genocídio se trava. A liberdade da Catalunha, com reconhecimento internacional, é uma questão de tempo. Por quanto tempo? Ninguém sabe; até porque -- e esta é a segunda razão -- ninguém comunidade ou estado pode aspirar à imutabilidade da História; esta é dinâmica, e funciona como os sismos; não se sabe quando vêm os grande abalos, mas todos os dias eles se manifestam. A União Soviética, cuja revolução inaugural o centenário se assinala este ano, tal como o seu fim, insuspeitado e vertiginoso, é disso o melhor exemplo.

Ó meu caro, que me lembre, nunca falei em 'dívida'. Quem usa a palavra é você. O que não impede, como digo neste último post, que devêssemos ter, enquanto estado, que passou pela ocupação espanhola, algum decoro, ou, se quiser, vergonha na cara, que foi o que os líderes políticos do país que se pronunciaram demonstraram não ter.

O seu último parágrafo é um bom exemplo da forma enviesada, para dizer o mínimo, como alguns encaram a questão da Catalunha: uma maçada que não devia acontecer porque nos pode incomodar. Até porque você sabe quanto vale a CUP eleitoralmente -- menos do que o Bloco de Esquerda. Podemos debater o tema sem demagogia ou não?...

victor sousa disse...

de vez em quando, muito de vez em quando, sempre encontramos algo que valha a pena ouvir ou ler. O que aqui se passou é um desses bcasos. Gente conhecedora falando de política.
E deixando pelo caminho aqueles afectados, que usam este para esconder as suas limitações, como esse pedante do Santos Silva. Um idiota.

R. disse...

Há os que o são, e os que se fazem. Receio que neste episódio sejam mais os voluntariamente desentendidos.