Quando eu nasci, em 1964, um observador ainda jovem, cosmopolita e informado, poderia torcer o nariz aos manuais da Porto Editora. Pôr meninas em tarefas domésticas, enquanto os rapazes surgiam em contexto de ar livre, quase aventura, já podia dar a ideia do traço dominante da situação dos géneros no país. Mas pronto, foi há 53 anos, e não eram muitos -- não só cá pela pátria egrégia, como, presumo, na generalidade dos países industrializados -- os que teriam essa visão que hoje nos parece comezinha. A circunstância de, em 2017, uma chancela com as responsabilidades da Porto Editora editar um produto com a conformação mental mediana de 1964, revela um despreparo inaceitável. Ganham muitos milhões para continuarem a ser tão provincianos. Portanto, concordo com a supressão dos livros do circuito pré-escolar, não por qualquer espécie de censura, mas por manifesta desadequação pedagógica.
Outra coisa -- outra coisa, é a histeria imbecil dos idiotas do costume, como a questão das cores, ou com a aversão aos 'piratas' e às 'princesas' (faço ideia dos miasmas saídos das alfurjas do facebook...)
Eu, que tenho quatro filhos, três raparigas e um rapaz, confesso que a este nunca ofereci uma
barbie -- se houver algum pai que tenha oferecido ao filho uma boneca com vestidinhos para brincar, que se acuse, pois pode ser um caso para a Comissão de Protecção de Menores.
A todos, porém, dei carrinhos, e com uma delas, particularmente entusiasta (de resto, uma miúda giríssima, desportista federada internacional, aluna do quadro de mérito) recuei muitas vezes várias décadas com o que restava dos meus Matchbox, Corgi Toys, Solido ou Majorette, em longas corridas pelo corredor da casa ou no terraço do jardim.
Se calhar, devia ter-lhe chamado Gustavo... Mas vou redimir-me, e será o nome que darei a uma eventual próxima filha; ao contrário, se for rapaz, vai chamar-se Maria de Lourdes. Finalmente, para fugir ao estereotipo nefando do azul e do cor-de-rosa, só vestirá lilás.
P.S. Talvez esteja a exagerar. Optarei antes por Gustova, ou Mário de Lourdes -- assim mesmo, em neutral equilíbrio, para não traumatizar.
P.S. 2, e agora a sério: sei que são assuntos diferentes, mas para os inquisidores apressados do costume, e para quem não me conhece, faço questão de dizer que achei notabilíssima a forma digna e elevada como a secretária de Estado Graça Fonseca resolveu dar conhecimento público da sua condição homossexual, exercendo uma pedagogia cívica pelo exemplo. Com pessoas e atitudes destas, a causa justa da não discriminação credibiliza-se.