Não conheço outra obra romanesca portuguesa do século XIX (e até, provavelmente, do XX) que tenha o halo terrivelmente encantatório de tragédia como sucede com o Amor de Perdição (1862). Comparável, só mudando de género literário -- e aí temos outra realização ímpar, a peça de Garrett, Frei Luís de Sousa (1843), também ela contendo no cerne impossíveis triangulações, como se diria em painel de bola... Mas o que torna único o Amor de Perdição não é, apenas, o drama de Simão, Mariana e Teresa; é também o modo como a narrativa é construída, o seu tempo perfeito, em que Camilo reduz ao mínimo (se a memória não me falha, mas hei-de verificar) as digressões, os apartes e o espicaçar maldoso do leitor (ou, muitas das vezes, da leitora).
Camilo, que era simultaneamente um génio e um bandido, não tinha grandes escrúpulos em servir-se da obra, de onde lhe vinha a subsistência. Daí a dedicatória louvaminheira a Fontes Pereira de Melo, datada da Cadeia da Relação do Porto, em 24 de Setembro de 1861. Camilo serve-se do seu trabalho literário e põe-no ao serviço dos seus interesses e necessidades imediatos. Não terá sido, certamente, a primeira vez que o fez, nem seria a última. Poderia ter sido pior, apesar de tudo, se Amor de Perdição, em vez de dedicado a(o António Maria de) Fontes Pereira de Melo (outro pináculo oitocentista, neste caso da res publica), o fora a qualquer relvático que estivesse em posição melhorada para tirá-lo de apuros. Assim, dedicante e dedicatário acabaram por equivaler-se na grandeza do lugar em que cada um acabou por ser acolhido no cartapácios de história pátria.
Ficando-me pelo paratexto, no «Prefácio da quinta edição» (1879), o autor de Eusébio Macário, que tinha os realistas da nova escola na mira, não resiste a ser mordaz com Eça de Queirós (que então já publicara O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, expressamente mencionados), doravante e para sempre rivais a vários níveis de recepção. Ironizando, Camilo diz que este seu livro já não resistirá «à luz eléctrica do criticismo moderno»; se quando vira a luz, o Amor de Perdição fizera verter «lágrimas românticas», agora, alarvemente, o público iria «barrufa[r-se] com frouxos de riso realista»... Doutro tempo era o autor, que advertia (aqui ficando uma pequena amostra de como ele não era para cócegas nem flor que se cheirasse): «Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas.»
Mas isto é anedota e pequena história -- suculenta, decerto -- que nada acrescenta ou diminui Amor de Perdição. O que importa , como é óbvio, é o livro em si, servido que foi pelo que, em 1863, no «Prefácio da segunda edição», Camilo reputava como elemento essencial para a perenidade de uma obra literária: «a pureza do dizer.»