quarta-feira, janeiro 31, 2007

Figuras de estilo - José Régio

[...] desde menino que tenho o gosto da vida monástica e muitas vezes me refugio na solidão. Viagens, não consigo fazê-las senão em pequena área: Agarro-me à casa, à rua, à terra em que vivo; e mudar exige-me um doloroso esforço!

Confissão dum Homem Religioso

Régio

O Vale do Riff - Paul McCartney & Eric Clapton, «Something»

terça-feira, janeiro 30, 2007

Uma leitura da «presença» #14 e final


«Diálogos inúteis» de João Gaspar Simões, em que o crítico pôs a nu a iniquidade política do momento, a mortandade em nome da Razão («Na Europa actual há homens que usam a lei da selva sem esquecerem as vantagens que podem colher empunhando a bandeira da Razão.» (46)); diálogos eivados dum pessimismo e duma desistência («O erro da humanidade presente quando se lhe põe o problema da felicidade é sempre o mesmo: confunde o espírito com a matéria. A felicidade é um factor moral, não uma exigência da carne.» (47)); enfim dum derrotismo que aparecia como inaceitável aos olhos de Casais Monteiro, conforme desabafa ao seu cunhado Alfredo Pereira Gomes:
«[...] o Régio e o Simões estão de há muito de "pé atrás" contra o "perigo político" para ela [presença]. E não querem ver que a atitude de independência anticonformista da "Presença" só podia manter-se na medida em que compreendessem que essa independência e esse inconformismo, NESTE MOMENTO HISTÓRICO, não podem ser qualquer objectividade (aliás irrealizável humanamente) pairando por cima dos... problemas da vida. Eles querem uma atitude de alheamento e de "supervisão" que é impossível em épocas como a nossa. [...] Foi o que se passou, por exemplo, com o Simões, escevendo o «Diálogo» sobre a felicidade: querendo pôr-se acima, querendo voar lá pelas alturas da pura ideia, acabou afinal por "fazer o frete" a todos quantos têm interesse em convencer os homens de que não vale a pena fazer nada, já que a felicidade... está no espírito! Como poderás calcular, esta é uma das causas visíveis da catástrofe [...].» (48)
Ao iniciar o novo e breve fôlego de 1939-40, Régio, em editorial não assinado, mostrava-se -- não obstante os futuros reparos de Casais -- ciente desse «terrível momento histórico de múltiplas tentativas de humilhação do espírito» e apresentava a revista como uma «fortaleza espiritual.» (49) Feitas as resenhas históricas da presença pelos dois directores então em conflito, ambos viriam a considerar que o ambiente político da época, cada vez mais extremado, não era propício à continuação da revista (50); o que, aliado ao cansaço de Régio (51), não deixava outra alternativa senão o fim dessa aventura intelectual de treze anos, que se dabatera entre dois fogos: o da (quantas vezes) calculada estetização da política, encorajada, quando não impulsionada pelo Estado Novo através do Secretariado da Propaganda Nacional; e o da vertigem da politização da arte, em que uma não menor frieza enquadrava os generosos entusiasmos juvenis de escritores e artistas neo-realistas. (52)
(46) João Gaspar SIMÕES, «Diálogos inúteis», presença, série II, n. 1, Lisboa, Novembro de 1939, p. 57.
(47) Idem, ibidem, n.º 2, Lisboa, Fevereiro de 1940, p. 128.
(48) Carta a Alfredo Pereira Gomes, já citada.
(49) [José RÉGIO], «presença reaparece», presença, série II, n. 1, Lisboa, Novembro de 1939, p. 3.
(50) Ver Adolfo Casais MONTEIRO, «A poesia da Presença» [1972], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, p. 142; João Gaspar SIMÕES, José Régio e a História do Movimento da «presença», p. 195.
(51) Ver carta datada de Portalegre, em 5 de Julho de 1940, ibidem, pp. 307-309.
(52) Sobre a aplicação dos conceitos benjaminianos de «estetização da política», ver Mário Vieira de CARVALHO, Razão e Sentimento na Comunicação Musical, Lisboa, Relógio d'Água, 1999, pp. 320-321, n. 57; exemplo da prática de estetização levada a cabo pelo SPN/SNI, ver Vera Marques ALVES, «Os etnógrafos locais e o Secretariado da Propaganda Nacional. Um estudo de caso», Etnográfica, vol. I, n.º 2, Lisboa, Centro de Estudos de Antropologia Social, 1997, pp. 237-257; sobre o enquadramento dos neo-realistas por parte do PCP, ver João MADEIRA, Os Engenheiros de Almas -- O Partido Comunista e os Intelectuais, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, p. 122 e passim.
Agosto-Setembro de 2000

O Vale do Riff - Bob Dylan & Bruce Spingsteen, «Forever Young»

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Antologia Improvável #197 - Joaquim Manuel Pinto Serra

A BIOGRAFIA

corria-nos a vida ao sabor daquelas pequenas coisas
que põem a vida a correr. uma graça no olhar. dois
dedos a afagar. junto às rugas dos teus olhos. bem
perto dos teus segredos. como uma toalha de linho
desenhada a ponto de cruz. escondida e solitária nas arcas
da nossa memória. onde os desenhos sobravam.
onde os anos de tão curtos ficavam apenas voando nas
virtuosas verdades. aguardando a serenidade
de passarem para a outra margem.

Pelas Margens da Serenidade

O Vale do Riff - The Doors, «Light My Fire»

Antero







João Abel Manta

Correspondências #77 - Antero de Quental a Oliveira Martins

16-5-[18]71
[Lisboa] Rua dos Prazeres, nº 63, 1º [23 de Maio de 1871]
Meu caro O. Martins
Quanto nos alegrou a sua excellente carta! e como sentimos não o termos cá ao pé de nós! Entre muitos a sua falta é das q. se sentem: immagine, entre poucos, como será lembrado e desejado... Digo isto em geral, por q. pensamos em si a proposito de todas as coisas interiores e organicas do nosso phalansterio espiritual: e digo-o mais particularmente a respeito das Conferências, por que com a sua ausencia nos fica desguarnecido um grande lado da nossa frente de batalha. Ainda assim, a sua adhesão a distancia é valiosa para o publico, e preciosa para os nossos corações de amigos, visto q. está com nosco em espirito. Nem nós pediamos mais: sabemos o pouco que ha a esperar d'estas coisas, n'esta nossa terra, e nem por sombras nos lembravamos de propor a alguém q. preterisse deveres naturaes, e em tudo sagrados, por uma tentativa, q. sendo m.to boa em si, nos resultados finaes pouco pode valer, a não ser p.ª o socego das nossas consciencias. Convidamo-lo exactamente p.ª aquillo q. V. aceitou: a dar o seu nome, e uma esperança: nada mais. Alguma vez ha-de vir a Lisboa: pois nas vesperas da viagem, pense n'um assumpto e deixe-se ouvir, em cá chegando.
Junto vai o programma que publicámos: um nome lhe causará surpreza provavelmente, o do Soromenho. Com a maior simplicidade fez aquilo que outros entendem q. precisa m.ta bulha p.ª não fazerem: verbi-gratia , o Jayme Moniz, q. actualmente lastima com phrases m.to sinceras (e m.to longas) a nossa imprudencia, mostrando um caridozo pesar por ver q. estamos cavando a ruina do nosso futuro, q. cortamos as nossas carreiras etc. Que lhe parece?
Foi hontem à noite a conferencia de inauguração, sendo eu o encarregado de levantar o commum pendão, e de fazer soletrar ao publico as palavras fatidicas n'elle inscritas. Assim o fiz, sem lhes ocultar com q. letras se escreve Revolução, Livre pensamento, Democracia e (oh horror!) Socialismo. Contra toda a espectativa, o publico -- perto de 300 pessoas -- não só se não offendeu, mas até mostrou uma certa simpathia, verdade é q. mais dirigida ao pensamento das Conf. em si e ás pessoas dos conferentes, do que ás ideas expostas. Fui á saida abraçado por juízes de direito... e até generaes! Isto é um paiz unico! Quando o conhecemos nós finalmente?Por q. imagine q. esperavamos protestos, e assuadas, e tal houve q. foi p.ª lá munido de casse-tete...
Ainda não vi os jornaes, não sei o q. dizem: você recebe ahi uns dois, e por elles verá.
A respeito do seu Camões, digo-lhe somente que a impaciencia q. sinto pelo ver terminado e pelo ler, só é igualada pela confiança q. tenho no seu espirito critico e no seu gosto poetico. Adeus; recomende-me á lembrança de sua mulher e creia-me
seu do C.
Anthero
Novas Cartas Inéditas de Antero de Quental
(edição de Lúcio Craveiro da Silva)

Oliveira Martins












António Duarte

domingo, janeiro 28, 2007

estampa XCIII

William Hogarth, Entretenimento Eleitoral
Museu John Soane, Londres

Uma leitura da «presença» #13

Nesse mesmo ano [1936], o futuro Biógrafo de Eça e Pessoa faria a distinção escritor-artista / escritor-outro:
«[...] a finalidade do escritor-artista, isto é, daquele que não se serve da pena para divulgar ideias, não pode ser outra senão servir-se da pena senão na intenção gratuita de a si mesmo se revelar.
Sei que o momento é pouco oportuno para afirmações desta natureza. Começa-se agora em Portugal a adoptar um ponto de vista precisamente contrário a este. [...] cá dentro principia-se a ter a modernidade de reclamar que o artista e a cultura cuidem sobretudo dos interesses colectivos.» (44)
Posições contrárias a esta já haviam servido de mal alinhavado pretexto a Torga, que fomentara a dissidência de 1930, com Branquinho e Edmundo de Bettencourt (45); e culminariam com a séria desinteligência entre Simões e Casais, a propósito de uns pouco oportunos e quase insolentes «Diálogos Inúteis».
(44) João Gaspar SIMÕES, «Do progresso, da missão e da essência da arte», Novos Temas, p. 51.
(45) Como, aliás, é assumida a principal responsabilidade da cisão na «Vanguarda» (ver Miguel TORGA, A Criação do Mundo, p. 232). Sobre a crise, ver Adolfo casais MONTEIRO, «A poesia da Presença» [1972], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, pp. 137-138; João Gaspar SIMÕES, José Régio e a História do Movimento da «presença», pp. 178-189 e passim; e Eugénio LISBOA, O Segundo Modernismo em Portugal, pp. 56-57. Crise que tem sido interpretada como um problema de despeito ou sensibilidade exacerbada na sua origem (conforme a benevolência de quem analisa), aparecen do Régio como alegado motivo da atitude tomada pelo poeta de Orfeu Rebelde. Se essa interpretação parece ser, até agora, a mais correcta, está por explicar a posição de Branquinho (director) e Bettencourt (fundador que dera o nome à publicação); não é crível imaginá-los como títeres do iracundo Adolfo Rocha. Já em 1936, pretendendo o concurso do futuro autor de O Barão para um novo periódico -- depois de com ele ter dirigido o número único de Sinal (1930) --, Torga informará: «A revista será dirigida pelo [Albano] Nogueira e por mim. O seu nome é Manifesto, e não será um sacrário da arte pura.» Carta de Miguel TORGA a Branquinho da Fonseca, s.d., Boca do Inferno, n.º 4, Cascais, Câmara Municipal, 1999, p. 142.
(continua)

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Korolenko

Caracteres móveis - Vladimir Korolenko

Aquela mulher tinha sofrido muito. Terríveis desgostos haviam envenenado toda a sua existência. Acostumada à dor, tinha-se tornado insensível aos sofrimentos alheios. Trazia um mundo de trevas consigo e não concebia nada para além daquela rígida e impenetrável esfera. Julgava os homens como inúteis bonecos que apareciam às vezes no seu caminho impelidos por uma força a eles muito superior. Concentrada sempre com os seus amargos pensamentos, olhava por cima do ombro a multidão imbecil, tão estranha e tão desconhecedora do drama que era toda a sua vida.
«A Voz do Vento»
(tradução anónima)

O Vale do Riff - Art Tatum, feat. Jimmy & Tommy Dorsey, «Art's Blues»

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Antologia Improvável #196 - Jorge Gomes Miranda

BREVÍSSIMO RETRATO

Uma reserva humilde nos gestos,
um resguardo nas palavras,
o oferecimento das mãos
onde os outros, muitas vezes,
depunham pedras.

Requiem

Jorge Gomes Miranda

O Vale do Riff - Ella Fitzgerald, «Angel Eyes»

terça-feira, janeiro 23, 2007

Pelo não e pelo sim, em debate no Tonel de Diógenes. A acompanhar.

Uma leitura da «presença» #12

Álvaro Cunhal
Explica-se por isso o ataque que desde finais da década de trinta a revista passou a sofrer por parte de sectores neo-realistas alinhados com o PCP. Está adquirido que o labéu redutor da «arte pela arte» imputado à presença e objurgatórias do género da «torre de marfim» e do «umbilicalismo», que alegadamente procuravam denunciar uma atitude estética de alheamento dos homens e dos seus problemas mais ingentes -- denúncia que continha em si uma reprovação ética --, não foi mais do que um pretexto para fustigar o fervoroso apoliticismo artístico de Régio e Simões (que não de Casais) e separar as águas entre duas formas de conceber a arte. (42) Numa missiva dirigida a Simões, o futuro autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos notava a divergência assumida por um aguerrido sector de novos escritores em oposição à presença: «Uma geração começa a mexer-se contra nós, é certo -- mas contra o que em nós é melhor só pode mexer-se pelo que nela é pior.» (43)
(42) Sobre a polémica entre Álvaro Cunhal e José Régio, num contexto histórico-cultural, ver José Pacheco PEREIRA, Álvaro Cunhal -- Uma Biografia Política, vol. I, Lisboa, Temas e Debates, 1999, pp. 358 e segs.; José Augusto SEABRA, «Cunhal versus Régio ou o Ideólogo contra o Poeta», Boletim, n.º 4-5, Vila do Conde, Câmara Municipal / Centro de Estudos Regianos, 1999, pp. 101-110.
(43) Carta de 21 de Março de 1936, in Eugénio LISBOA, O Segundo Modernismo em Portugal, p. 59.
(continua)

O Vale do Riff - Joan Baez, «Diamonds and Rust»

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Elena Muriel

Na morte de Elena Muriel

Morreu ontem Elena Muriel Ferreira de Castro. Foi das mulheres mais bonitas que conheci. Viúva de Ferreira de Castro, conhecera-o há 70 anos, no Estoril, ela com a sua família refugiando-se em 1936 da borrasca que se anunciava no país vizinho que era o seu; ele refugiado do tumulto do Chiado dos cafés e da conversa fiada, numa pequena casa que arrendara para escrever.
O seu encontro deu-se no atelier de Guilherme Filipe, nas Arcadas do Parque. O pintor desafiara Castro a posar para a jovem pintora espanhola, e este acedeu de imediato, fascinado pela beleza e frescura daquela jovem encantadora.
Ela tinha 23 anos e era filha-família; ele, 38, e era escritor, um autor em plena explosão das suas capacidades efabulatórias: em 1928 reeinventara(-se) com Emigrantes, diferente de tudo quanto imprimira até então, e também de tudo o que o romance português até lá apresentara aos leitores; A Selva, de 1930, fora a poderosa confirmação da veia iniciada com o livro anterior: nunca se escrevera nada como aquilo sobre a Amazónia, e hoje persiste como uma das grandes narrativas em língua portuguesa; Eternidade (1933), uma interrogação à morte, motivada pelo falecimento da sua primeira companheira, Diana de Liz, com quem vivera entre 1927 e 1930; é um livro da insurgência do homem contra o seu destino finito, mas também de rejeição do atavismo social que originava o lumpen operário e camponês, livro libertário por excelência, devorado, como os anteriores e os seguintes, pelos jovens futuros neo-realistas; em 1934, Terra Fria, análise do microcosmo quase proto-medeival do Barroso, valeu-lhe o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências.
Castro estava, pois, em grande: vivia dos seus livros e para os seus livros, que entretanto começavam a ser traduzidos. Não o suficiente, porém, para convencerem os pais de Elena a permitirem qualquer espécie de relacionamento, forçando-a a viajar para a Argentina, suficientemente longe de um artista, talvez boémio, que outro modo de vida não tinha.
Elena Muriel, contra tudo e todos, arrostou com a ira familiar, pais e irmã mais velha, e sozinha embarca para Paris, onde se encontra com Castro, aí casando em 1938. Os laços familiares só se reatam após o nascimento da filha de ambos, em 1945.
Juntos deram a volta ao mundo, em 1939. Ao contrário do que acima foi descrito, o percurso literário de Castro, que parecia ser luminoso, rapidamente se transformou num pesadelo, em face da Censura, irredutível quanto aos temas que ele desejara tratar. Um romance tendo a Revolta da Andaluzia (1931) como pano de fundo -- O Intervalo -- ficou na gaveta até 74; uma peça encomendada por Robles Monteiro para o Teatro Nacional, o problema da pena de morte como tema central, é censurada nas vésperas da representação; romances iniciados e que não passavam dos primeiros capítulos, por nem sequer valer a pena insisitir mais, ficaram na gaveta. Foi isto que levou Castro a escrever relatos de viagens. Elena acompanhou-o, e está muito presente na narrativa, e nas fotografias que fez, e nos motivos que pintou. A sua pintura de cromatismo suave, viveu largos anos na sombra do grande escritor; além disso, uma intoxicação provocada pelas tintas obrigou-a a suspender por um longo período o trabalho artístico, que retomará, episodicamente, já após a morte do seu marido, e ainda em homenagem a este, como podemos ver no Museu Ferreira de Castro, em Sintra, e na Biblioteca de Ossela (Oliveira de Azeméis).
Bati-lhe à porta em 199o/91. Preparava o meu primeiro trabalho de algum fôlego sobre ele. Nunca me esquecerei de quanto isso era importante para ela, apesar de uma injusta noção de segundo plano em que muitos a tiveram na vida do escritor. É certo que Diana de Liz foi uma intensíssima e breve relação de três anos, terminada tragicamente, deixando Ferreira de Castro à beira da loucura e do suicídio; mas os quase 40 anos de vida em comum que José Maria e Elena partilharam, tiveram esse grande horizonte da madurez do romancista pleno de A e a Neve, A Curva da Estrada, A Missão, O Instinto Supremo, do artista de referência na difícil oposição ao salazarismo, na consagração nacional e internacional da sua obra, e no súbito apagamento mediático que se dá com a sua morte, dois meses após o 25 de Abril. Ela que se habituara com ele às luzes da ribalta, faria o resto de caminho como que perplexa por esse desinteresse. Desinteresse que é só aparente e mediático -- por isso, superficial --, provam-no as reedições sucessivas, os filmes, os colóquios, as «obras completas» que do Círculo de Leitores à Planeta Agostini o foram pedestalizando. Mas Castro era já um autor póstumo, en fase de reavaliação e redescoberta; e foi com essa posteridade, umas vezes demasiado distraída, outras analítica porventura em excesso, que ela teve de viver os últimos trinta anos da sua vida, como se ela própria vivesse um tempo que já não era o seu.
De Elena Muriel, guardo o sorriso de uma senhora de idade, a quem, a certa altura, a vida correspondera e gratificara pela beleza que emprestara a quem a via; e guardo a certeza do grande amor pelo seu marido e pela obra que nos legou. Nunca a esquecerei.

estampa XCII - Elena Muriel, «O Túmulo de Ferreira de Castro na Serra de Sintra», Museu Ferreira de Castro, Sintra

O Vale do Riff - Elvis Costello, «Shipbuilding»

domingo, janeiro 21, 2007

Agustina

Correspondências #76 - Agustina Bessa Luís a Marcelo Caetano

Ex.mo Senhor Presidente do Conselho
Professor Doutor Marcello Caetano:
Tenho ao meu cuidado a perspectiva de dirigir um jornal nascido no Porto e que persistiu em tantas vicissitudes, que o público o tomou como infeliz cartaz da cidade. De tudo quanto se colhe de estudo que nos sirva ao procedimento, às vezes há que escutar o senso popular como a melhor maneira de prever o futuro. O nome de Diário do Norte devia ser mudado, isto como satisfação que estimula muitos, e medida que não chega a desaprovar ninguém. Trata-se de um jornal de que o Porto está pronto a orgulhar-se, logo que lhe evitem o pretexto de o ter de receber mal. É sabido que, para conhecer os homens, não basta desprezá-los. Quando uma animosidade se manifesta na massa, é certo que esta obedece à praxe da discórdia, mas quase sempre tem também alguma base de porfia num estado de equilíbrio. Pois há uma ordem de interesses que é sentida por todos igualmente.
Eu peço a V. Ex.ª que, se os altos problemas a que preside o permitirem, se digne conceder uma observação a este assunto que, por ser modesto, requer paciência, e de cuja conveniência e oportunidade só V. Ex.ª poderá decidir.
Isto de jornais, melindre fácil na ciência da produção, depende muito de que nos antecipemos ao capricho das gentes, com uma dose de inactualidade, que é compreender, mais do que definir.
Com os meus respeitosos cumprimentos
de V. Ex.ª admiradora e grata
Agustina Bessa Luís
23 de Agosto de 1971
Cartas Particulares a Marcello Caetano
(edição de José Freire Antunes)

Caetano

estampa XCI

Paul Signac, O Pequeno-Almoço
Rijskmuseum Kröller-Müller, Oterlo

sábado, janeiro 20, 2007

Fiama Hasse Pais Brandão

Acabo de ler no Insónia que morreu a Fiama Hasse Pais Brandão. Morreu, portanto, um dos maiores poetas da segunda metade do século XX. Não assinalei o falecimento do Cesariny, embora devesse tê-lo feito -- mais que não fosse por tê-lo aqui, esplendoroso, na «Antologia Improvável» --, porque o coro dos lamentos era já ensurdecedor. Suspeito que com Fiama tudo se passará com mais discrição. Para além da sua poesia apreciei também essa seriedade. Uma seriedade partilhada com as duas grandes vozes poéticas vivas ainda entre nós, esperemos que por longos anos: Alberto de Lacerda e Herberto Helder.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Uma leitura da «presença» #11

Fernando Pessoa
Esta a diferença essencial que os separava do reaccionarismo pessoano e de outros afins. (39). Transcreva-se, a propósito, parte de uma carta de Régio enviada a Gaspar Simões, em 1935:
«Diga o que disser em contrário, o Almada é político. Embora seja um grande artista, é estreito e fosco de opinião quando se trata de julgar os que são diferentes dele. Tem o ódio dos judeus, o desprezo do pederasta António Botto, e, lá no fundo, a convicção de que sendo a presença uma revista politicamente avançada (ele assim a supõe... e talvez com razão, que diabo! Pois se não pode respirar hoje sem ser avançado!) não era mau que fosse substituída por outra cousa.» (40)
Mais do que a publicação da abundante colaboração de Pessoa, ortónimo e heterónimo (de Autopsicografia e Eros e Psique a Aniversário e Tabacaria), Almada, Saa e os póstumos (Sá-Carneiro e Ângelo de Lima); não obstante a sanção (como já Pessoa sancionara) da poesia de Botto e a sua inclusão nas páginas da folha; independentemente do acolhimento dado à iconoclastia do profeta Henoch e de A Virgem-Besta (encimando um página ímpar...) (41); mais audaz do que a impressão dessas transgressões à estética, à moral e aos bons costumes, o que de facto era subversivo, passados os anos e assente a poeira, era a ética da defesa intransigente da liberdade nesse período de 1927-40. Um extremo bom senso aliava-se a um extremo bom gosto. Da mesma forma que os primeiros modernistas se opunham a esse demo-liberalismo burguês e nivelador, os homens da presença, partilhando com aqueles antiacademismo e anticonvencionalismo, rejeitavam tanto o blochevismo como o fascismo e o nazismo.
(39) Tenho consciência de que classificar Pessoa como um reaccionário é simplificador. Parece-me mais operativa a figura do conservador «pré-revolucionário e anti-revolucionário» (à Edmund Burke) proposta por Raul MORODO, Fernando Pessoa e as «Revoluções Nacionais» Europeias, Lisboa, Editorial Caminho, 1997, p. 65.
(40) Portalegre, 12 de Outubro de 1935, apud João Gaspar SIMÕES, José Régio e a História do Movimento da «presença», p. 297.
(41) Raul LEAL (HENOCH), «A Virgem-Besta», presença, n.º 31-32, Coimbra, Março-Junho de 1931, p. 25, apresenta Cristo como fruto da prostituição de Maria com um centurião romano. Na narrativa autobiográfica de Miguel TORGA, A Criação do Mundo (2.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p. 196) é referido o escândalo suscitado pelo texto, com a devolução de praticamente toda a tiragem da Vanguarda (o título fictício da presença), e episódios decorrentes. O mais curioso é tudo se ter passado já na ausência de Adolfo Rocha (nome civil de Torga), com papel de algum relevo na cisão de 1930, a que me referirei adiante.
(continua)

O Vale do Riff - Chet Atkins, «Blue Mountain Rag»

quinta-feira, janeiro 18, 2007

uma vinheta de Alex Alice
O Terceiro Testamento -- IV -- João ou o Dia do Corvo
(texto de Xavier Dorrison)

Antologia Improvável #195 - Alexandre O'Neill (5)

SOBRE UMA FOTOGRAFIA DE AUGUSTO CABRITA

Enxúndias ensacadas no cotim da farda,
papel de cartucho que quase se rasgava,
repressor-burocrata, descansavas à porta
do teu posto de escrita e de porrada.

No coldre, a pistola; na pança, a feijoada;
na perna, a polaina; no cérebro, o corrimento
que é mais que sensação, menos que pensamento.

E sob o teu rabo, a cadeira gemia
ao compasso da nalga que se descolava
do suor que sobre o tampo produzia.

Nos campos, a manada trabalhava.

Quem te fotografava, de longe é que o fazia.
Estava de passagem para uma outra vida.

A Saca de Orelhas / Poesias Completas

O Vale do Riff - Jo Jones (feat. Coleman Hawkins), «Caravan»

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Mais «Grandes Portugueses»...

O momento da noite da apresentação dos chamados «defensores» dos 10+ foi quando Hélder Macedo disse a uma transbordante Ana Gomes que o Vasco da Gama era uma personagem do Camões.

Caracteres móveis - Jaime Brasil

O nacionalismo dos Hebreus é [...] a única mancha no quadro de cores sedutoras que se esboça na Terra de Israel. Certo, os Judeus têm direito a uma pátria onde possam viver e trabalhar, sem a ameaça constante dos pogromes e dos campos de concentração. Demasiado têm sofrido durante a longa dispersão, essa Diáspora, que parece ser um castigo a pesar sobre o povo que se considera eleito de Jeová. Deveria, contudo, bastar-lhes a obra prodigiosa que estão realizando na Palestina. As suas conquistas e vitórias são essas, sobre a terra árida e ingrata, que estão transformando num vergel. Para quê traçar cartas fantásticas que encorporam a Transjordânia na Palestina? Terão esquecido que também Hitler traçou a carta da Grande Alemanha, a qual, em 1946, deveria abracar quase toda a Europa, e que essa Grande Alemanha é, hoje, retalhada, empobrecida, vexada, menos do que era antes da instauração do Primeiro Reich?
Chalom!... Chalom!... -- Uma Reportagem na Palestina

O Vale do Riff - Bill Evans, «Re: Person I Knew»

terça-feira, janeiro 16, 2007

Uma leitura da «presença» #10

Branquinho
da Fonseca

Em 1927, a presença já tem a distância suficiente para verificar que a Grande Guerra, com os seus milhões de mortos, não havia tornado o mundo nem mais regenerado nem mais higiénico, como, em 1909, estética e politicamente pretendera o futuro fascista Marinetti; e a vida moderna fazia suficientemente parte do quotidiano para que suscitasse comparações histéricas entre o automóvel e a Vitória de Samotrácia (aliás, a revista fazia o prosaico réclame à «Garagem Simões», da Figueira da Foz...), ou provocasse entusiasmos como os de Maiakovski, que perdera o interesse pela natureza desde que vira a luz eléctrica. Não tinha cabimento um epigonismo -- aqui sim -- como o que claramente se verifica nos manifestos de Almada, ou as influências patentes em Álvaro de Campos (37), em especial no Portugal Futurista, exemplos de um contexto ideológico de revolta contra as ideias que atravessaram o «estúpido século XIX» -- como lhe chamou Léon Daudet, um dos executores morais de Dreyfus --, um século, apesar de tudo, do triunfo do liberalismo político, de que os mais importantes presencistas foram inteligentes e notáveis partidários. (38)
(37) Influências pelo menos quanto ao «assunto». Ver Fernando J. B. MARTINHO, Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa -- Do «Orpheu» a 1960, pp. 24-25.
(38) Notabilidade que se prende, para além da lucidez, com o risco com que essa afirmação liberal era feita. Régio, com um pensamento social-democratizante (ver Eugénio LISBOA, José Régio ou a Confissão Relutante, p. 22), bem patente nos textos doutrinários e em páginas do seu Diário Íntimo, funcionário público e público apoiante de Norton de Matos em 1949, tornado numa das bandeiras da frente comum de oposição ao Estado Novo (ver Fernando LOPES-GRAÇA, «Um discurso» [1949], Um Artista Intervém -- Cartas com Alguma Moral, Lisboa, Edições Cosmos, 1974, p. 144); Casais, entre todos o mais combativo opositor de Salazar, a quem dirigiu a célebre frase «A arte é, não serve.», carapuça enfiada por alguns neo-realistas (ver Adolfo Casais MONTEIRO, O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, p. 19), como tal sofrendo o banimento do seu nome na imprensa, a prisão e o exílio, socialista que com António Pedro, António Sérgio e o dissidente comunista José de Sousa, integrou, em finais dos anos quarenta, um núcleo constitutivo de uma formação política (ver Mário SOARES, «Um intelectual coerente», JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 25 de Janeiro de 1994, p. 5); Branquinho, também ele funcionário público e conservador do Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães, um dos «principais organizadores» do MUD no concelho de Cascais (José Magalhães GODINHO, Pela Liberdade, Lisboa, Publicações Alfa, 1990, p. 46)
(continua)

O Vale do Riff - Yes, «The Gates Of Delirium»

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Ainda os "Grandes Portugueses"

Se daqui a umas dezenas de anos voltarem a fazer um concurso idêntico, não creio que o Salazar, o Cunhal ou até o Sousa Mendes venham a estar nos 10+. Já o mesmo não digo quanto ao Pessoa.

Antologia Improvável #194 - Maria Augusta Silva

IMBONDEIROS

Andamos com um arco e uma flor
à roda
dos imbondeiros. Descalços
porque
queremos estar descalços.
Sobe
ao arco a alegria com muitas
cores
dependuradas dos nossos cabelos.
Nada
disto se dissolve em metafísica.
Temos
um arco e uma flor. E isso é que é
divino

Dança de Matisse

O Vale do Riff - Kate Bush, «Moving»

Os Grandes Portugueses

E não é que, apesar de tudo, o público foi mais avisado do que os organizadores deste concurso? Quatro figuras ligadas aos Descobrimentos (dois mentores -- Infante e D. João II --, um agente -- Vasco da Gama -- e o cantor deles -- Camões, simultaneamente soldado do Império); o fundador, Afonso Henriques; Pombal, o estadista que com as suas grandezas e misérias subsiste enquanto tal no imaginário da nação. Quatro figuras da contemporaneidade: os incontornáveis Salazar e Cunhal, assim votados pelo ímpeto sectário, fenómeno compreensível e explicável. A presença de Pessoa reconforta-nos pelo modo como a sensibilidade colectiva continua, de alguma maneira, a manifestar um pendor lírico, uma necessidade estética. Aristides de Sousa Mendes, o Homem que de tudo abdicou em nome da sua consciência e da Humanidade é a boa surpresa disto tudo. Não votei na primeira volta, não tenciono votar agora; mas se o fizer fá-lo-ei no amor imenso, até ao sacrifício, que Aristides de Sousa Mendes representa.

domingo, janeiro 14, 2007

C D A

Correspondências #75 - Carlos Drummond de Andrade a Sérgio Telles

Rio de Janeiro,
24 de Agôsto de 1971.
Meu caro Sergio Telles:
Encontro está sempre em minha mesa, deixando-se folhear e despertando encantamento, como obra de arte que realmente é. Se o texto apresenta muitas páginas de alta qualidade, que dizer das reproduções de quadros e desenhos que o ornam, e que fazem do seu livro mais do que um livro, uma admirável galeria portátil? Nem sei mesmo a quem deva louvar de preferência: o realizador do "encontro" espiritual de escritores brasileiros e portuguêses, em nível tão diverso do convencional, ou o criador dessas paisagens e figuras luminosas, que com tanta sensibilidade forrada de técnica faz desfilar diante da gente a vera imagem de Portugal povo/cultura? A verdade é que os dois se fundem num só realizador, a quem vai o meu abraço muito reconhecido por me haver ofertado essa jóia gráfica -- e logo a mim, que não me animei a participar do encontro, e aqui estou, encabulado, comovido e grato...
O abraço amigo de
Carlos Drummond de Andrade
In Portugal na Obra de Sérgio Telles

Sérgio Telles










auto-retrato

sábado, janeiro 13, 2007

onde estarei eu hoje em pequeno?
Ruy Belo

Uma leitura da «presença» #9

Os parâmetros desta continuidade [Orpheu-presença] têm sido motivo de controvérsia fecunda desde que Eduardo Lourenço, no início da década de sessenta, propôs para a presença a qualidade de agente da «contra-revolução do modernismo», notando, em autores referenciais da revista, «uma religação ao fluir tradicional da poesia portuguesa.» (33)
Ao reclamar o magistério de Pessoa, Almada, Raul Leal e outros, promovendo-os, divulgando-os, retirando-os do gueto em que se encontravam e dando-lhes outra respeitabilidade, a presença acabava por ser -- numa perspectiva cultural e sociológica --, consequentemente, mais subversiva. O ensaio de Lourenço remete para aspectos literários; só que dissociá-los da repercussão amplificada que os primeiros modernistas passaram a ter junto dum público mais vasto (34) é, quanto a mim, insatisfatoriamente restritivo.
Este é, sem dúvida, um tema movediço, pois ao reclamar-se uma continuidade de modernismos -- como Simões explicitamente fez, Régio de forma implícita e Casais de alguma maneira praticando-o enquanto poeta (35) --, há que ter em conta uma personalidade forte como a do autor de Jacob e o Anjo, demasiado singular para limitar-se a um como que epigonismo dos antecessores, e que gozava dum claro ascendente sobre os jovens (ainda mais jovens do que ele) Gaspar Simões e Casais Monteiro. (36)
(33) Eduardo LOURENÇO, «"Presença" ou a contra-revolução do modernismo português?», Tempo e Poesia, 2.ª ed., Lisboa, Relógio d'Água [1987], p. 162. Para além da rejeição veemente desta tese por Gaspar Simões e da aceitação, com algumas reservas, por Casais Monteiro, as ondas de choque que provocou chegaram até hoje. (É de notar que o ponto de interrogação não figura no título do artigo na primeira edição.) Se para David MOURÃO-FERREIRA, («Revisita à poesia da "Presença"», Os Ócios do Ofício, Lisboa, Guimarães Editores, 1989, p. 224), a presença susteve «o niilista processo de desagregação para que tendiam» os de Orpheu, para Eugénio LISBOA (O Segundo Modernismo em Portugal, 2.ª ed., Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1984, p. 42), o objectivo dos seus autores foi o de «resistir e durar»; desaceleração que é, de todo o modo, avaliado de forma diferente pelos dois ensaístas: o que constitui ao mesmo tempo um mérito e uma limitação para o primeiro (ibidem), para Eugénio LISBOA (José Régio ou a Confissão Relutante, p. 25) tratou-se de um processo «de reflexão e consolidação» do caminho iniciado por Pessoa e companheiros. Em artigo anterior aos textos acima referidos -- e propondo uma espécie de solução de compromisso para uma nova questão havia pouco suscitada -- Jorge de SENA («A poesia de "presença" [1967]», Régio, Casais, a «presença» e Outros Afins, p. 77) defendera ter o segundo modernismo, «que os directores da presença representaram [,] impos[to] criticamente o Primeiro, sem ter imposto o experimentalismo dele».
(34) «A Presença foi a primeira publicação periódica modernista que, através de uma acção persistente e relativamente longa (de 1927 a 1940), alcançou audiência nacional.» Adolfo Casais MONTEIRO, «Introdução» [s.d.], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, pp. 18-19.
(35) «Adolfo Casais Monteiro [...] foi, não só [entre os autores da presença] dos mais tocados pela sombra de Pessoa, como também um dos poucos que soube, na sua geração, assimilar e ampliar o vector vanguardista do primeiro modernismo.» Fernando J. B. MARTINHO, Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa -- do «Orpheu» a 1960, 2.ª ed., Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991, p. 69.
(36) No caso do futuro autor de Elói é nítido o parafrasear da doutrina regiana. Basta ler. Claro que o que em Régio é exposto com a moderação própria de um pedagogo, em Simões as ideias ganham um juvenil e combativo entusiasmo, servidas muitas vezes por uma brilhante, e ao mesmo tempo polémica, enunciação.
(continua)

quinta-feira, janeiro 11, 2007

estampa XC

Paul Cézanne, O Jas de Bouffan
Museu Norton Simon, Pasadena, Califórnia

Antologia Improvável #193 - Isabel de Sá (2)

No ventre da mulher as sementes germinaram. Cinco crianças saíram enleadas em panos de ranho. Em sangue, a rainha mãe rasgou os ventres miúdos e ofereceu às outras mulheres os intestinos minúsculos para que deles fizessem colares.
Esquizo Frenia / Repetir o Poema

O Vale do Riff - David Bowie, «Fashion»

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Uma leitura da «presença» #8

Só com independência era possível ao escritor não se falsear; só ela era possível de garantir a autenticidade e, por conseguinte, a sua originalidade, enquanto autor de uma obra pessoal -- «Ser de determinada maneira pessoal e fatal -- qualquer coisa que se seja!», escreverá Régio, gideanamente (30) --, criador de uma «literatura viva», desde logo definida no nascimento da presença:
«Em Arte é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personagem artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe.» (31)
Pessoa será evocado neste mesmo texto; no terceiro número, ele com Sá-Carneiro, Raul Leal e Mário Saa serão todos guindados à categoria de «mestres contemporâneos»: «os homens que, pior ou melhor, exprimem as tendências mais avançadas do seu tempo, isto é: a parte do futuro que já existe no presente. Enfim: são os futuristas.» (32) Surgia o segundo modernismo, a presença sucedia a Orpheu.
(30) José RÉGIO, «A lição inútil ou carta a um juvenil individualista», presença, n. 14-15, Coimbra, 23 de Junho de 1928, p. 9.
(31) José RÉGIO, «Literatura viva», presença, n.º 1, Coimbra, 10 de Março de 1927, p. 1. Neste manifesto inaugural, defendeu Régio ser o «colectivo» uma afirmação superior do «pessoal», o que foi interpretado, com particular interesse, como indício de «pulsões» evidenciadoras de um «outro discurso estético, ou seja, por uma individualidade tanto mais socializada e socializante quanto mais libertamente se cumpram na sinceridade original do artista.» [Fernando ALVARENGA, «José Régio e a socialização da arte no limiar presencista», O Escritor, n.º 1, Lisboa, Associação Portuguesa de Escritores, Março de 1993, p. 69.] Tema demasiado vasto para ser abordado numa nota de rodapé, não resisto, porém, a transcrever um excerto duma carta do autor de Jogo da Cabra Cega, precisamente a propósito deste romance, passagem (dentre muitas outras possíveis) que poderá enriquecer e reforçar a tese citada: «depois duma adolescência dolorosamente prolongada pela mocidade fora [...] julgo-me entrar finalmente na idade viril; quero dizer: num período de mais atenção aos outros, e mais serenidade na paixão. Veremos [...] se consigo fazer cousa em que se reflictam outras cousas da vida para as quais também me julgo capaz de simpatia.» Portalegre, Junho de 1936, in Correspondência de Rodrigues Lapa -- Selecção (1929-1985), edição de Maria Alegria Marques, Ana Paula Figueira Santos, Nuno Rosmaninho, António Breda Carvalho e Rui Godinho, Coimbra, Minerva, 1997, p. 71.
(32) José RÉGIO, «Da geração modernista», presença, n.º 3, Coimbra, 8 de Abril de 1927, p. 1. Muito mais tarde, dirá Adolfo Casais MONTEIRO: «[...] fora do Chiado pode dizer-se que ninguém sabia quem fosse Fernando Pessoa; e o seu nome, logo no primeiro número da Presença, valia por um programa inteiro.» in «A poesia da Presença» [1972], O que Foi e o que Não foi o Movimento da Presença, p. 117.
(continua)

O Vale do Riff - The Who, «Substitute»

Sobre a incomunicação

a incomunicação entre ricos e pobres, norte e sul, cristãos e muçulmanos, estado e cidadãos, marido e mulher, pais e filhos,
irmão e irmão
nós e nós mesmos
como tudo seria menos árduo se houvesse tempo
e disposição
para comunicar com o(s) outro(s)

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Sempre tive má impressão do jornalismo, mesmo quando o pratiquei, felizmente por um breve período. Se o nosso jornalismo televisivo é péssimo -- os canais noticiosos (o da sic, em especial) aí estão para o demonstrar em toda a sua pobreza, os jornais não lhes ficam atrás. Mas há dias com boas surpresas. Já aqui escrevi que o melhor suplemento que se publica é o 6.ª, do DN; mas o Público continua a ser o que ainda me vai satisfazendo melhor, enquanto diário de informação geral (não leio semanários há vinte anos; e desde o fim da primeira Grande Reportagem, de boa memória, que perdi o hábito de comprar revistas).
A imprensa é o espelho de uma sociedade; pelas amostras, a nossa deixa muito a desejar.Hoje, porém, leio no jornal 4 excelentes artigos de opinião 4, que me vieram lembrar o que em tempos foi considerado o papel dos jornais enquanto veículos de (in)formação e a sua importância para a sedimentação de uma vida pública menos primária, menos argentária, menos futebolística, menos frívola; pelo contrário: mais sofisticada, mais cívica, mais culta, mais séria.
Como os links estão sujeitos a assinatura, transcrevo aqui breves passagens:
De António Paim: «A ideia da democracia grega sempre exerceu uma influência enorme no imaginário ocidental. Não se trata de abdicar de tal legado mas de considerá-lo no que é típico do regime democrático: o carácter participativo. A doutrina do governo representativo tem o mérito de preservar tal característica, explicitando o que é essencial à convivência social: a negociação dos inevitáveis conflitos.» («O que o governo representativo acrescenta ao legado grego»).
De Laura Ferreira dos Santos: «Quem decide do que eu consigo suportar? O pessoal médico? Quando estou grave e irrecuperavelmente doente, passo a pertencer ao Estado ou a uma ortodoxia religiosa?» («A morte assistida de Welby: questões bioéticas e religiosas»).
De Carlos Pacheco: «Foi com o liberalismo que o esbulho, a desordem e a impunidade na administração colonial atingiu dimensões antes impensáveis. Enquanto no regime absolutista houve capitães-generais e ouvidores que se se mostraram por vezes menos preocupados com o interesse público do que com o desejo de amassar fortuna pessoal, a Metrópole, apesar de tudo, nem sempre condescendeu com estes hábitos.» («Pilhagem das colónias»).
De João Paulo Barbosa de Melo: «O ser humano distingue-se dos restantes mamíferos por não ver apenas com os olhos, por ser capaz também de "ver" através da ciência, da razão, da imaginação, das convicções.» («Tem sentido legalizar hoje o aborto?»).
É por isto, por nos interpelar, por nos ajudar a reflectir e suscitar a discussão, por ser um factor de civilização, que vai valendo a pena continuar a comprar o jornal.

Antologia Improvável #192 - António Carlos Cortez

é quando a noite é um animal ferido
que o poema salva quem o lê abandonado
quando se pressente a voz enlouquecida
de alguém que nos olhou e descobriu
é quando a noite rouba a luz do dia
para construir suas altas fragas de silêncio
e um galope de lábios na sua verdura
nos invade ou nos recolhe em suas crinas
é quando a linha de sombra é o azul da chama
ainda antes de ser contra a pureza nua
o edifício das palavras com dois gumes
é quando sabemos que nos encontramos
num café numa esquina que então escutamos
a pedra angular da nossa vida o poema escrito

A Sombra no Limite

O Vale do Riff - Teddy Wilson c/ Dutch Swing College Band, «Lady Be Good»

domingo, janeiro 07, 2007

Olha-me a estante em cada livro que olha.
Pedro Kilkerry

Uma leitura da «presença» #7

Na doutrina e na prática, a revista demonstrou-o ao longo de treze anos de existência. As suas páginas receberam poesia e prosa do grupo de Orpheu, do de A Águia, dos neo-realistas, de autores que viriam a agrupar-se nos Cadernos de Poesia: de Fernando Pessoa e de Tomás Kim, de Afonso Duarte e de João José Cochofel -- para além de tantos outros que faziam o seu percurso mais solitariamente, como sucedeu com o nacionalista João de Castro Osório e o internacionalista José Gomes Ferreira. Por vezes havia uma nota redactorial que avisava quantos pudessem estranhar a inclusão de nomes mais polémicos pelas posições políticas próprias, que estas eram irrelevantes para a presença; o que interessava à revista era o material literário publicado.
Ingenuidade? Obstinação? Talvez tudo isso em conjunto. Com a turbulência política europeia restava pouco espaço para a lucidez ante o inferno que se aproximava, convocando muitos escritores a tomar uma posição, não apenas enquanto cidadãos, mas inclusivamente nas próprias obras.
«Vai / pelo boulevard iluminado / pelos caminhos traçados / pelas velhas caravanas / do tempo dos Ramsés... / ...Mas deixa / que eu arrisque a minha vida / nas encruzilhadas escuras / dos bairros criminais.» (28)
Era eloquente a amarga declaração de Régio, num extraordinário ensaio publicado em 1940, quando não havia espaço para se manter, enquanto artista, acima ou à margem do prélio político:
«[...] não me contentarei com dizer que não faço o mínimo empenho em ser do meu tempo. Antes direi que me sinto honrado com me opor a ele; e que não me perturbam as vulgares habilidadezinhas com que se pretende desautorizar quaisquer afirmações da consciência livre (tão livre quão possível), em nome duma sujeição ao colectivo que seria, a generalizar-se, um verdadeiro flagelo para a colectividade.» (29)
(28) Joaquim NAMORADO, «Navegação à vela», presença, n.º 51, Coimbra, Março de 1938, p. 12.
(29) José RÉGIO, Em Torno da Expressão Artística, Lisboa, Editorial Inquérito, s.d., pp. 8-9.
(continua)

sábado, janeiro 06, 2007

estampa LXXXIX

Thomas Gainsborough, Mr. and Mrs. Andrews
National Gallery, Londres

Ferreira de Castro

Correspondências #74 - Ferreira de Castro a Horácio Bento de Gouveia

Rua Misericórdia, 68
Lisboa, 9 Maio 72
Meu caro Horácio Bento de Gouveia:
O seu artigo sensibilizou-me imenso. Por via de si, velhas relações que ressurgiram agora, ao cabo de muitos anos, com a pujança do trigo que passa o tempo frio sob uma camada de neve*. Por via de Você e por via da Madeira, à qual me encontro ligado por complexos e profundos sentimentos de amor e de poesia. Finalmente, pela generosidade que há nas suas palavras. Fico-lhe muito, muito obrigado. Obrigado e enternecido.
Foi de grande satisfação para mim esse pedaço de noite em que convivemos -- sua esposa e a minha, Você e eu -- aqui, no hotel. E oxalá não tarde muito a encontrarmo-nos novamente.
Em Julho, quando Vocês pensam voltar, estarei no Hotel de S. Vicente -- Termas de S. Vicente, perto de Penafiel. Se Vocês se decidirem a dar um passeio pelo Norte e quiserem ver um belo trecho do Minho, venham lá almoçar ou jantar comigo. Eu teria uma grande alegria com isso.
Afectuosos cumprimentos de minha mulher e meus para a sua esposa e para si, acompanhados dum forte abraço do seu velho amigo e admirador,
Ferreira de Castro
* É claro que nunca houve gelo entre nós, mas apenas desencontros físicos.
In O Escritor, n.º 6
(edição de José António Gonçalves)

Horácio Bento de Gouveia

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Uma leitura da «presença» #6

Casais Monteiro
Ora a presença foi também combatida pelo alegado psicologismo e individualismo exacerbado dos seus mentores, por parte dos que não contemplavam outra forma de expressão que não reflectisse a realidade exterior. Régio dirá que «a realidade humana é muito mais rica do que a fazem quaisquer espécie de fanáticos; principiando pelos fanáticos do real.» (22) Mas tal não comovia os adversários da pedagogia regiana, que procurava significar o individualismo de cada criador, não como alheamento, senão como a sua «contribuição individual à humanidade» (23); ou, como escreveria Casais dez anos mais tarde, com um enunciado vigoroso e polemicamente dirigido:
«Exprimir a vida inteira, quando o que é expresso se revela comum a muitos homens, só por absurdo sofisma pode ser designado como atitude a-social; e é por isso mesmo que nunca abordam esse aspecto aqueles que querem o poeta profeta social -- para não falar nos que o quereriam vulgarizador e agente publicitário.» (24)
Esta lúcida postura individualista era condição essencial para tentar assegurar à partida tanto a liberdade como a frágil independência do artista, posta em causa pelas doutrinas autoritárias e totalitárias que iam vingando por quase toda a Europa. Se, para Régio, a liberdade era o bem mais precioso do criador, era também o mais incerto, pelo incómodo ou pelo aproveitamento que podia suscitar. (25) E declarava, por isso mesmo, a sua «repugnância» por todo o dogmatismo (26), cuja rejeição se constituía para os presencistas como único dogma. (27)
(22) [José RÉGIO], «presença reaparece», presença, série II, n.º 1, Lisboa, Novembro de 1939, p. 3.
(23) José RÉGIO, «A lição inútil ou carta a um juvenil individualista», presença, n.º 14-15, Coimbra, 23 de Junho de 1928, p. 9.
(24) Adolfo Casais MONTEIRO, A Poesia de Jules Supervielle, 2.ª ed., s.l., Confluência, s.d., p. 35.
(25) Ver José RÉGIO, «Li te ra tu ra», presença, n.º 45, Coimbra, Junho de 1935, pp. 16-17.
(26) José RÉGIO, «Lance de vista», presença, n. 6, Coimbra, 18 de Julho de 1927, p. 8.
(27) «O dogma modernista é não permitir nenhuns.» João Gaspar SIMÕES, «Tendências e individualidades da moderna poesia portuguesa» [1930], apud José Régio e a História do Movimento da «presença», Porto, Brasília Editora, 1977, p. 319.


(continua)

O Vale do Riff - Ben Webster, «Chelsea Bridge»

quinta-feira, janeiro 04, 2007

talvez

Talvez por ser homem, talvez por ser contra o aborto, talvez por não ser moralista, interessava-me mais estar agora a discutir a eutanásia.
***
É preciso ser-se um grande estupor para negar a alguém consciente a possibilidade de, numa situação-limite, pôr fim à sua própria vida da forma mais tranquila, auxiliado por quem se disponha a ter essa piedade última.

O Vale do Riff - Miles Davis, «Human Nature»

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Uma leitura da «presença» #5

Gaspar Simões
Na «beleza emotiva» (19) procurada pelos poetas da presença não havia também lugar para o formalismo, para a habilidade dos vates de academia, para o tecnicismo, espartilho de muito razoável poeta que dele não logrou libertar-se. E se para Gaspar Simões -- o mais assertivo dos teóricos presencistas, cujas tiradas terão contribuído o seu quê para dar da revista a imagem duma certa irredutibilidade («a história da arte é a história da luta dos artistas com a realidade exterior» (20)), não se seguia -- pelo menos para os restantes co-directores -- que o artista se devesse encasular, umbilicalizar, torredemarfinizar. A poesia-pura, na acepção de Casais, rejeitando a submissão à forma e às escolas, não se afastava dos grandes problemas do homem -- fazia-o, porém, apenas «como expressão directa do seu debate interior.» (21)
(19) Helmut SIEPMANN, «Aspectos da poesia do segundo modernismo português», Revista da Faculdade de Letras, 5.ª série, n.º 16-17, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1994, p. 278.
(20) João Gaspar SIMÕES, «A arte e a realidade», presença, n.º 36, Coimbra, Novembro de 1932, p. 6.
(21) Adolfo Casais MONTEIRO, «Mais além da poesia pura», presença, n.º 28, Coimbra, Agosto-Outubro de 1930, p. 7.
(continua)

O Vale do Riff - Frank Zappa, «Bobby Brown Goes Down»

terça-feira, janeiro 02, 2007

Antologia Improvável #191 - António Ramos Rosa (2)

Amo com esta saudade
que me corrói.
Amo cada vez mais doído.
A boca fechada sobre as ervas
há tanto tempo.
Os braços a descansar
no pântano do ventre.
A saudade enxuga-me o fogo
longe do mundo.
A saudade torna-me verde.
Tenho no rosto
aquela parte negra do branco.
A vida toda encostada à lembrança
com a comoção das origens
a soluçar-me
instante a instante
na garganta.
Os ossos
neste Inverno da vida
com a noite da saudade por cima.
Brilha nessa escuridão o passado.
Cresce no frio um caule de luz.
Dissolvo pouco a pouco
a sede baça da morte.
Transfiguro-me perplexo.
A saudade seca-me a tristeza.
Cede-me ao céu
e aos raios da sua alegria.
Enxuga-me a mágoa.
Cresce-me no meio do corpo uma flor.
É uma flor matinal
de anil
rebentando por entre as vértebras.
Brilham-me no ser
os braços irradiantes de uma estrela.
A saudade coa-me no sangue um astro.
O meu corpo
é a raiz sombria de um outro sol.

O Poeta na Rua

Ramos Rosa

O Vale do Riff - Soft Machine, «The Tale of Taliesin»

segunda-feira, janeiro 01, 2007

A beleza sim mais uma vez / Não por adorno mas instinto fundo
Alberto de Lacerda

Uma leitura da «presença» #4

«Nunca será inútil repetir que o que mais interessa numa obra de Arte... é a própria obra de Arte.» (12) Era o primado da arte que Régio defendia nesta sentença; ou como claramente, por outras e mais contundentes palavras, advertiria Casais Monteiro, a propósito da presença: «aqui não se servem causas: faz-se e trata-se de literatura e de arte.» (13) Por demais óbvias que estas posições pareçam, deve, no entanto, dizer-se que eram formuladas num contexto de hegemonia (de poder efectivo ou de influência na acção) de sectores não complacentes com a ideia de a expresão artística dever estar isenta de qualquer subordinação. Afirmações de independência que remetiam o autor presencista para as margens da oficialização cultural do Estado Novo, com uma política nacionalista e de tentativa de domesticação dos intelectuais, afastando-o também do neo-realismo oficial, emergente em meados da década de trinta. Seria, contudo, demasiado simplista e pouco rigoroso inferir que a publicação rejeitasse qualquer manifestação artística de tendência, quer «ascendente» ou «emancipadora» (para empregar termos de Plekhanov, posteriormente vulgarizados pela teorização neo-realista (15)) quer o seu oposto, alinhadamente reaccionária:
«Sim, a presença defende a arte pela arte, mas a arte pela arte da presença nada tem com o "egoísmo da torre de marfim do esteta ante o incêndio do vizinho ali defronte." A presença tem sido, nesse capítulo, ora muito mal compreendida, ora muito desconhecida, ora muito caluniada. Contra o que a presença luta e lutará, é contra as opressões que, ou dos lados da Alemanha e Itália ou dos da Rússia, pesam sobre a livre consciência do artista. A presença não admite que se imponham temas, estilos, modelos, opiniões, preocupações a um artista. Faça cada um o que melhor sabe, pode, quer -- e fará o melhor possível. Eis o que diz a presença, revoltando-se contra os excessos dos nazis e dos comunistas.» (16)
Toda a vida andou o poeta do Cântico Negro a afirmar que a arte podia ser tudo, desde que fosse arte, isto é, genuína, sincera, autêntica -- viva, numa palavra. Podia inclusive ser obra de propaganda: não se lhe recusaria uma categoria superior (17), desde que cumprisse o que devia ser a sua finalidade última: a «emoção estética». (18)

(12) José RÉGIO, «Uma peça de Pirandello (sei personaggi in cerca de auctore)», presença, n.º 7, Coimbra, 8 de Novembro de 1927, p. 7.

(13) Adolfo Casais MONTEIRO, «Nós, os porta-vozes de uma estética subjectiva até à desumanização...» [s. d.], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, p. 31.

(14) Ver Jorge Ramos do Ó, «Salazarismo e cultura», in Joel SERRÃO e A. H. de Oliveira MARQUES, Nova História de Portugal, vol. XII, Fernando ROSAS (coord.), Portugal e o Estado Novo (1930-1960), Lisboa, Editorial Presença, 1992, p. 409.

(15) «[...] o talento de qualquer verdadeiro artista é grandemente reforçado se for penetrado pelas grandes ideias emancipadoras do nosso tempo.» PLEKHANOV, A Arte e a Vida Social, trad. de Ana Maria Rabaça, Lisboa, Moraes Editoes, 1977, p. 72.

(16) José RÉGIO, carta a Roberto Nobre, Portalegre, Junho de 1936, Boletim, n.º 4-5, Vila do Conde, Câmara Municipal / Centro de Estudos Regianos, 1999, pp. 31-32.

(17) A propósito de A Revolução de Maio, de António lopes Ribeiro, o director da revista escreveu: «A propaganda e a arte podem não ser inimigas. Basta que profundamente se conjuguem na obra realizada a crença numa doutrina e a emoção artística.» José RÉGIO, «Cinema português», presença, n.º 50, Coimbra, Dezembro de 1937, p. 12.

(18) José RÉGIO, «Literatura livresca e literatura viva», presença, n. 9, Coimbra, 9 de Fevereiro de 1928, p. 1.

(continua)


O Vale do Riff - Gonçalo Pereira, «Movimento Perpétuo»