sexta-feira, setembro 29, 2006

Antologia Improvável #165 - Fernando Grade (2)

LIBERTATE

"Sinto-me um cientista a quem um admirador
remeteu uma carta que dizia: concordo consigo:
dois mais dois são cinco."
(Bertolt Brecht)

"Se não esperas o inesperado, nunca o alcançarás."
(Heraclito)

"Faço sempre outra coisa."
(o Autor, in "Museu das Formigas", 1980)


Para lá de todas as estradas de pó
percorridas pelo carro velho a caminho de
Montana onde os pistoleiros sempre estiveram escondidos
-- os dois jovens que fomos (eu e tu, Rebecca)
estavam à solta em todas as pradarias. Ao tempo,
Portugal fora fechado dentro de um dedo a corroer-se,
poço de vespas perversas.
Passámos por Indiana e os beijos não estavam doentes,
e em Chicago havia pistolas nos olhos de quem sorria.
Tive a liberdade de dançar contigo
o tango dos últimos bêbedos. Bêbedos cultos
apaixonados por licores ou vinhos desastrados quase música.
Em Pierre, conhecemos um jovem anoitecido por sustos
que era mestre a deitar fogo a bares.
Então soubemos d'outros que fugiam para o pé do mar
vinham montados num automóvel em pedaços
eram perseguidos por uma mentira redonda e
perfeita: os dois vão ser presos mas esfumam-se
porque o seu sangue é bom e ninguém sabe:
escondem-se assim para os lados das ondas e das ostras
procuram a salsugem -- o mar! E depois num povoado
perdido na noite, casas sem nome, descobrimos
a mãe da América fumava papoilas.
Não me lembro das tuas últimas lágrimas, mas
sei que choravas por um coração esvaziado por granadas.
O teu filho caíra na Ásia e não viera mais
-- desaparecera para sempre numa guerra errada.
Traiçoeiro como sempre esqueci (por momentos) Rebecca
e fui caçar outros olhos.
Por três tardes, luziu Herbie: passeava pelo seu corpo
eu atravessava-o como quem passeia pelas páginas de Balzac
como se as cidades bucólicas estivessem sitiadas.
E voltaram as labaredas altas a lamber os campos
regressei aos gestos fogosos de Rebecca
que ajudava as plantas a crescer,
não tinha medo delas. Faltava pouco para chegarmos
a Helena, onde os amigos tinham bons livros
à nossa espera. O ruído da seda a rasgar-se,
o jogo das pessoas brincadas, o ruído da água
o barulho sinistro que vem das chamas.
Era no chão o vestígio dos venenos.
Um Beethoven adulado por coiotes.
E os beijos à volta, os sôfregos beijos latinos
a crescerem: do pó em fúria até ao musgo.
Sempre tive um vinho muito ciumento.

Sempre Tive um Vinho Muito Ciumento

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