terça-feira, junho 30, 2020

com inquéritos toscos, também eu me descubro, afinal, racista...

Imagine-se!, eu que acho imensa piada à mulatice da minha bisavó Ida, de Pernambuco, chego à conclusão que com inquéritos deste jaez, também posso descobrir-me, afinal, "racista"...

Já expressei aqui várias vezes a minha percepção sobre a existência de racismo em Portugal, a última das quais a propósito de vandalismo. O racismo biológico, o único que poder ser caracterizado como tal, é quanto a mim residual e rupestre. Outra coisa é o "racismo" que sofre quem é pobre e vive num gueto. É classista e defensivo, por razões tão óbvias que me dispenso de pormenorizar. Há, é verdade, e empiricamente me parece com dimensão superior, fenómenos de xenofobia de que são alvo caboverdianos, ucranianos, brasileiros de todas as cores. Também aqui as razões são óbvias, não é preciso sociologia de meia-tigela para o perceber. 

Pois bem, um inquérito europeu e um "estudo" anunciam que 62% dos portugueses manifestaram alguma forma de racismo. Diz o Expresso que apenas 59% dos 1055 inquiridos discordaram da existência de grupos étnicos mais inteligentes do que outros. talvez ficasse melhor escrever que ainda há 41% de portugueses que acreditam em superioridade e inferioridade "rácica"; se rigoroso, o inquérito, 41%, é ainda uma porção significativa de criaturas sem saneamento básico interno.

Mas um inquérito que se sustenta numa pergunta sobre se há "culturas mais civilizadas do que outras" deixa-me as maiores dúvidas, pois seria de espantar que a maioria dos indígenas a percebesse.

A cultura, da técnica agrícola à religiosidade, é sempre uma resposta ao entorno; a civilização é o complexificar adquirido, constante e renovado dessa resposta.

O nivelamento ou o destaque de umas sobre outras é mera ideologia. E poderá ser tema para outras postagens, assim tenha tempo e me apeteça. Mas para deixar aqui vincada a minha recém-adquirida qualidade de "racista", sempre direi que uma comunidade que partilha os valores de liberdade, autoquestionamento, inclusão plena e que tolera o dissenso será sempre civilizacionalmente superior à que não o faz, e isto tanto é válido para a 5.ª Avenida como na maloca mais recôndita da Amazónia. É a minha resposta, também ela ideológica, é claro.

5 comentários:

Jaime Santos disse...

Meu caro, conheço quem tenha uma avó negra e tenha preconceitos racistas por causa da forma como foi tratada pelos negros após a descolonização em Angola.

Realmente, soa um bocadinho ridículo que os Portugueses sejam racistas em face da nossa ascendência e da forma como por vezes somos tratados noutras paragens, mas tal é perfeitamente possível. Basta que as pessoas sejam hipócritas, ou seja, que apliquem bitolas distintas a si e aos outros. O racismo é afinal uma forma extrema de hipocrisia...

Se 41% das pessoas acreditam em alguma forma de racismo biológico (provavelmente a maioria sem ter pensado muito no significado de tal asserção, convenhamos) então não sei qual é a bitola que usa para considerar que uma sociedade é racista. 51%?

Não, infelizmente, o nosso racismo não é só classista. É-o sobretudo, mas não apenas... É mais fácil aceitar quem estudou nas mesmas escolas do que nós e não cheira a suor porque não teve que fazer um turno nas obras, mas as diferenças ainda existem...

Isto dito, a pergunta sobre o grau de civilização de diferentes culturas é imbecil. Se é inquestionável, como o meu caro bem nota, que somos hoje mais civilizados que os nossos antepassados, o que implica necessariamente que estabelecemos uma hierarquia de valores, não se percebe porque não a podemos aplicar para comparar culturas em diferentes geografias. A sociedade portuguesa é mais decente que a saudita, seguramente.

Obviamente, as culturas não são monolíticas e há seguramente sauditas que desejam viver com a mesma liberdade que um português vive. Mas se me fizessem essa pergunta, eu entenderia a questão como uma comparação entre os valores vigentes e não os das minorias mais esclarecidas, ou seja, também acabaria classificado como um 'racista cultural'...

Convém repetir isto aliás. Só é possível combater o racismo se estabelecermos uma clara gradação de valores, gradação essa que é fruto de um processo histórico a que poderemos chamar de avanço civilizacional e para o qual contribuíram muitas culturas, incluindo a ocidental, mas não apenas esta (basta lembrar os processos de libertação colonial, por exemplo)...

Racismo seria dizer que esses valores a que chamamos universais só estão ao alcance de pessoas de pele branca. Não é seguramente racismo dizer que esta ou aquela sociedade não se pauta por esses valores.

R. disse...

Caríssimo, obrigado pelo longo comentário.

Esse caso seu conhecido é anedótico e patético, e reconheço que há muitos, mas não são para levar a sério num debate, acho eu.

Hipocrisia: é possível. O que eu considero como verdadeiro racismo não passa do exercício brutal do poder de uns sobre outros; mas também acredito que a alegada inferioridade duns possa ter dado muito jeito a outros para mantê-los subjugados -- e aí dou-lhe razão.

Se esses 41% forem reais, será apenas um triste sinal do subdesenvolvimento do país. Não é de estranhar: o que são 46 anos na vida duma sociedade?

Se você diz que é sobretudo classista, o racismo, então não discordamos. A nossa percepção varia, e até posso aceitar que o defeito seja meu.Pelo menos já me acusaram disso cá por casa... Mas o cheiro a suor pode ser tão inacitável à pituitária diante dum negro como dum branco... Aí não vejo grandes diferenças

Eu devo ser um afortunado: como já disse aqui, testemunho diariamente o contrário de uma sociedade racista, em especial na minha vizinhança, que é de classe média de largo espectro. Haverá racismo encapotado? É possível; mas o que vejo aos olhos de todos é precisamente o contrário.

Quanto ao resto, completamente de acordo.

Jaime Santos disse...

Meu caro, já não existem hoje na Europa Ocidental e nos EUA sociedades verdadeiramente racistas no sentido em que você utiliza a palavra. O racismo foi desacreditado pela genética como uma teoria pseudo-científica (as variações genéticas são maiores dentro de um dado grupo étnico que entre dois indivíduos de 'raças' distintas) e só existem hoje alguns intelectuais lumpen que acreditam verdadeiramente na existência de 'raças' superiores...

O racismo que existe é sobretudo o preconceito contra quem é diferente e se calhar deveria ser chamado mais apropriadamente de xenofobia. Quero acreditar que a maioria daqueles que assim pensam não reflectiram sequer sobre esse preconceito. Também existe aliás entre brancos, mesmo se em menor grau e mesmo entre gente educada (senti-o enquanto vivia na Alemanha).

Mas, se calhar, tendo em conta que a generalidade das pessoas são decentes, isto sempre foi assim. E depois, no nosso trabalho, nos afectos, não podemos estar sempre a lembrar-nos da cor da pele daqueles com quem convivemos. O ódio cansa e destrói.

Agora, este racismo difuso é frequentemente aproveitado por quem na política utiliza aquilo que eu chamo o motor do ressentimento.

Acho que houve alguém que produziu uma análise das correntes ideológicas e do programa do Chega! e chegou à conclusão que não pode ser classificado como um Partidp racista. O tanas é que não pode.

O Chega! é um veículo para as alarvidades do seu líder que quer ganhar votos através de um discurso que se aproveita do ressentimento de quem provavelmente tem razões para se sentir descontente (mas não as que ele aponta). O resto é conversa.

É um pouco como afirmar que o PSD é Social-Democrata porque se chama Partido Social-Democrata... O que interessa são as práticas políticas...

Tenhamos no entanto alguma esperança. As sociedades como os EUA, a França, o RU ou Portugal podem ser, devido à sua composição étnica, que deriva de uma longa e dolorosa História colonial, não de uma qualquer recente vaga migratória (os nossos imigrantes vêm sobretudo do Brasil e dos PALOP, QED), sociedades onde estes problemas são recorrentes, mas cuja abertura ao Outro é seguramente muito maior do que a das sociedades homogéneas.

Este racismo larvar é o preço (a outra face da moeda) que pagamos pelo nosso universalismo (cuja origem é naturalmente o imperialismo avant-la-lettre português).

Isto não quer dizer que tenhamos que ficar sentados em cima das mãos. A melhor forma de o combater é através da Educação e da Batalha das Oportunidades. Se estamos a conseguir vencer a batalha da igualdade entre homens e mulheres na sociedade, não será difícil fazer o mesmo para grupos étnicos minoritários. Não representam afinal 50% da população.

R. disse...

Eu não seria tão peremptório, não apenas pelos fenómenos que vemos despontar aqui e ali, como aquilo que eu defino e que, para mim é a essência do racismo, o da crença da existência de grupos humanos superiores e inferiores, foi uma realidade no meu tempo de vida em sociedades de extracção europeia. O apartheid acabou ontem, e quando eu nasci, em 1964, a segregação era uma prática regulamentada nos Estados Unidos. Nos seus viçosos 89 anos, que se completam este mês, o meu Pai, porque a data coincidia com o aniversário materno, lembra-se perfeitamente do anúncio do início da II Guerra. Aliás, hei-de postar aqui um curioso extratexto duma agenda para 1943 do Serviço Alemão de Informações em Lisboa (tenho-a à minha frente, pertença de um familiar germanófilo, da minha prolongada convivência) com as considerações sobre raças superiores e inferiores.
(Tenho de interromper...)

R. disse...

Quanto ao Chega, é uma coisa destinada ao lumpen, aproveitada pelos que quanto pior melhor.
Até agora, o espertalhão tem aproveitado todas as oportunidades que lhe são dadas, a começar pelos que lhe deram importância. Após o pisar do risco com a questão do confinamento dos ciganos seria de esperar algo por parte do Ministério Público ou do Tribunal Constitucional, que não ocorrerá, claro.
Nunca como ao Chega se aplicou tão bem o dito do porco: não interagir com, primeiro porque ficamos sujos, depois porque o porco gosta. Portanto, com o Chega e o chico-esperto, só de máscara.

Em relação à educação e às oportunidades, obviamente concordo. Tenho reservas quanto a descriminações positivas, por ser sempre o caminho mais fácil e pelo perigo do nivelamento por baixo.