No meio deste desassossego coronário, tenho assistido, entre o incrédulo e o divertido, à pseudoquerela a propósito das comemorações do 25 de Abril. Só dei por ela, aliás, quando João Almeida do CDS, com ar de catequista, se insurgiu contra a cerimónia depois de, segundo ele, terem proibido a Páscoa. É extraordinário e dispensa outros comentários. Uns dias depois passei pela Rádio Renascença, e senti um tom raivoso contra estas comemorações e eventuais acções previstas para o 1.º de Maio. Percebi, então, que aquela tirada do deputado centrista não fora um acto isolado -- e imagino o lixo que não deve andar por essas "redes sociais". A Igreja fatiga-me.
Cansam-me também os saloios que, a despropósito, falam da necessidade de inovar, recriar o cerimonial & outras maravilhas. Como detesto inovações, lavro desde já o meu protesto. Mas sugiro aos presentes no Parlamento, no próximo sábado, criatividade nestas máscaras de pano que aí vêm. As minhas serão garridas e pouco sanatoriais. Estou até a pensar encomendar uma com pequenos Mickeys...
Há sempre razão para comemorar, nem que seja a civilidade, nem que seja a desexistência da pide -- embora não faltem potenciais agentes e bufos --, nem que seja o fim da opressão colonial que há séculos infligíamos a outros povos, mal e porcamente; nem que seja em memória do que foi e do que poderia ter sido; mas dificilmente poderia ter sido outra coisa senão isto.
E, mais que tudo, celebrar a liberdade de poder escrever tudo isto em nome próprio, sem receio que os bufos me vão denunciar ou que a pide me vá buscar a casa a meio da noite.
Há sempre razão para comemorar, nem que seja a civilidade, nem que seja a desexistência da pide -- embora não faltem potenciais agentes e bufos --, nem que seja o fim da opressão colonial que há séculos infligíamos a outros povos, mal e porcamente; nem que seja em memória do que foi e do que poderia ter sido; mas dificilmente poderia ter sido outra coisa senão isto.
E, mais que tudo, celebrar a liberdade de poder escrever tudo isto em nome próprio, sem receio que os bufos me vão denunciar ou que a pide me vá buscar a casa a meio da noite.
16 comentários:
Acho que somos um País bastante melhor do que aquilo que o autor do texto que cita nos diz que somos. Somos razoavelmente decentes, mais nos valores do que na prática das instituições, mas somos apesar de tudo bem melhores do que há vinte ou trinta anos atrás.
Basta pensar na forma como estamos a lidar com esta crise. Temos conseguido proteger os mais frágeis, os nossos velhos e os migrantes, mau grado a situação em certos lares e nas alojamentos onde os refugiados se apinham ou o escândalo que é ver famílias a pôr fora de casa quem corre riscos para nos proteger a todos.
Mas não se viram as cenas tristes de Espanha e da Ucrânia, onde autocarros que transportavam infectados foram apedrejados, por exemplo.
Os nossos médicos e enfermeiros têm feito um trabalho notável e as indústrias reconvertem-se para produzir os EPIs e mesmo os ventiladores... Os cientistas começaram a produzir testes. Os militares mobilizaram-se, a polícia e a GNR têm lidado com a situação com pedagogia e procurando não recorrer à força.
Penso que ninguém pode comparar isto com as cheias do final dos anos 60...
Quanto ao que poderíamos ter sido, desconfio das utopias. Estamos integrados numa ordem capitalista, que é hoje a ordem mundial. As ordens alternativas revelaram-se todas elas muito piores que a ordem onde vivemos. A URSS e Bloco de Leste desmoronaram-se sem que o Ocidente tivesse que disparar um tiro, deixando atrás de si um rasto de sangue, totalitarismo, penúria e destruição ambiental.
Os nacionalismos progressistas que livraram os povos do jugo colonial converteram-se quase todos em regimes neo-patrimonialistas corruptos. A Venezuela antes de Chavéz era um País corrupto e desigual, hoje é um País corrupto e falido onde quase todos são pobres. E por aí a fora.
Quase que se poderia dizer que o Capitalismo é, como a Democracia, o pior de todos os sistemas económicos, com excepção de todos os outros...
E o bem maior é, como diz, mesmo se é um bem reservado sobretudo a burgueses com uma certa educação (como eu) podermos escrever tudo isto em nome próprio (de que vale dar a opinião sem assinar por baixo, sem o risco ou o reconhecimento?) sem receio dos bufos e da pide.
Viva o 25 de Abril! Viva a Liberdade!
Meu caro, também pudera!, graças ao 25 de Abril... Mas não tenho ainda essa visão tão aprimorada de nós próprios. Espero ser eu a ver mal.
O capitalismo: pois, o capitalismo é algo inerente às sociedades humanas; ter a iniciativa, prosperar, devolver, idealmente. Mas sendo eu um iletrado no que respeita à economia, o que assistimos de há décadas para cá é um ultrajante financismo que tudo conspurca, tudo prostitui, e é essa voracidade, essa ganância desarvorada que nos fará embater violentamente contra a parede, se nós enquanto humanidade não arrepiarmos caminho. Quanto a isso não tenho dúvidas; e se o meu pessimismo vier a confirmar-se, algumas das utopias que descambaram por exemplo nos países da esfera da antiga URSS (de que só conheci a Hungria, à época) hão-de parecer paraísos diante do inferno que boa parte da humanidade irá padecer. Mais uma vez: oxalá eu esteja a ser apenas um apocalíptico trivial.
Mas sim, claro, viva a liberdade!
O Pedro Mexia dizia outro dia no 'Governo Sombra' com muita graça que o apocalíptico é um optimista desiludido. O pessimista acha simplesmente que as coisas normalmente correm mal.
Eu considero-me um pessimista que acredita na eterna capacidade humana para o disparate e também na genialidade do nosso intelecto perante a adversidade. Qual destas duas características ganhará está ainda por saber, eu espero que seja a segunda, embora me incline para pensar que é a primeira.
O capitalismo, no nível de tecnologia em que vivemos, não poderia ser outra coisa senão financeiro. Li uma vez que há três fábricas de produção de circuitos integrados de um certo tipo na Terra, nos EUA, França e Japão, porque a sua construção requer a mobilização de recursos financeiros à escala planetária.
Claro, tal estratégia torna as nossas estruturas dependentes de poucos centros de produção e logo muito frágeis. O mesmo se passa com a mudança da produção de muitos equipamentos para o Extremo-Oriente, como agora se vê.
Também permite que muitos chicos-espertos ganhem imenso dinheiro simplesmente movimentando capital de uns sítios para os outros. Mas isso não é uma obrigatoriedade, basta que os Estados ou instituições como a UE o impeçam...
A globalização não tem que ser como é, pode ser outra coisa de diferente e não me acredito nada na desglobalização, porque quem com isso sonha acha que podemos regressar aos anos 70...
Vivi quase 12 anos ao todo na Alemanha, a partir de 1998. Só conheço da RDA o que me contaram e ainda as ruas de Berlim Oriental, algumas por pavimentar, a lembrar o Portugal dos anos 70, ou o belíssimo centro de Rostock, com o seu património ainda a cair aos bocados. Não foi nada bonito o que vi ou ouvi...
Lembrou-me aquela frase do Romain Rolland, que o Gramsci citava e por isso lhe costuma ser atribuída, o ser pessimista pela razão, mas optimista pela vontade. Não há outra maneira.
Quanto à necessidade do capitalismo financeiro, não tenho meios para comentar. Assusta-me em especial o domínio político que procuram exercer, para satisfação dos interesses próprios. Por isso gostei desse 'basta', que é optimista.
Obviamente, a desglobalização é uma impossibilidade, a não ser que retrocedamos à era das fundas e das lanças que o Einstein previu para a IV Guerra Mundial...
A RDA tinha o problema adicional de além de comunista ser alemã...
'A RDA tinha o problema adicional de além de comunista ser alemã...' :-) ... Bem observado. Mas olhe que era, dos Países de Leste, um dos em que se vivia melhor. Os soldados russos queriam todos ser colocados lá...
E depois, essa observação também se poderia fazer em relação à Rússia :-) ... Os russos têm uma cultura tão admirável como a alemã, porventura mais, mas também têm vícios terríveis...
Pois, parece que sim. Deve ser do clima. No fundo, no fundo, não há nada como ser-se latino e mediterrânico -- a luz é completamente diferente :)
E lá vamos nós de regresso à teoria de que o clima determina o destino dos povos :-) ...
Mas o Camus falava de facto no pensamento do meio-dia, mediterrânico, luminoso e dando a devida atenção à mesura (ah, os gregos!) e no pensamento da meia-noite, soturno, alemão e desmesurado :-) ...
Pois, o Camus era um luminoso que não se pretendia iluminado…
Eu quando vejo aquele gris do norte europeu penso sempre nessas estufas geradoras de serial killers, enquanto que, cá para baixo, o killer é mais cereal...
Cereal é o termo certo, diz-se que por esse interior adentro ainda se mata por amor e por questões de águas...
O Camus era provavelmente melhor escritor do que pessoa, mas os génios são-no sempre, o trabalho deixa-lhes pouco tempo para se preocuparem com a vida em comum.
'O Homem Revoltado' ainda é um dos livros da minha vida e uma brutal denúncia de todos os totalitarismos. A ponto de Sartre, alguém de quem se dizia, creio, que se amava muito a Humanidade, gostava pouco dos homens, se ter zangado com Camus.
E depois, era um homem corajoso. A coragem é uma virtude neutra, mas sem ela não há grandeza...
Acredite que ando há anos para ler esse. Fiquei-me pelo Estrangeiro e pela Peste. Mas sim, de uma grande lucidez, e não era vesgo como o Sartre...
Sartre não era vesgo, era cego, se quisermos ser benevolentes com ele.
A "cegueira" sempre me fez confusão, só se compreende em fanáticos ou em cobardes.
Não sei se Sartre era um cobarde, não teve certamente a coragem de Camus sob a ocupação. Agora, era certamente um fanático... Resta no entanto perguntar o que é um fanático, para além das manifestações exteriores, claro. Duvido que se trate de alguém incapaz de pensamento racional. É simplesmente alguém que na posse das suas capacidades decidiu renunciar a ele. Ou seja, alguém que não tem desculpa...
Pode não ser sempre assim, creio. Os místicos conjugam racionalidade e, digamos, irrealismo -- não quero qualificá-los como a-racionais e muito menos irracionais...
Ah, meu caro, isto tinha-me passado e é pena. Os poetas são frequentemente místicos, há mais teologia na declaração de Quixote a Pança sobre o exercício da Justiça e os atributos de Deus de que em todos os manuais da disciplina... Digo eu...
Mesmo para um não-crente como eu, não vejo nos místicos qualquer irrealismo, só elevação...
Pois, o Sancho Pança: devemos ser sempre um pouco Sanchotes, ou Quipanças...
O misticismo, não entre por esses caminhos tão etéreos, mas parece-me que tanto pode suscitar um Francisco de Assis como um Savonarola. No fundo, tudo depende da matéria...
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