No último sábado li Walt, a noveleta do Fernando Assis Pacheco publicada em 1978. Nela são recorrentes expressões utilizadas pelo narrador-alferes -- um alter ego do próprio FAP --, como paneleirices ou fufas. Estou em crer que tivesse o FAP meditado escrever algo semelhante por este ano de 2017, se autosupliciaria, se autocensuraria, pois ao usar, num registo realista, palavras do nosso léxico como paneleirice ou fufa, pensaria três ou quatro vezes se estaria na disposição de aturar o fogo de artilharia pesada dos censores do costume, mais os patetas acoplados. E, extremamente fodido, provavelmente renunciaria a.
Parece que no último sábado o Expresso publicou uma entrevista a António Gentil Martins, cujos ecos só agora me chegaram. Tenho um familiar próximo cuja vida, ainda com meses, foi salva por ele. E assim com milhares de crianças. Não é por isso que deixarei de estar distante do médico, desde logo a começar pela religião. Deus sabe o quão ateu sou. Nasce-se homossexual, não se escolhe sê-lo. (Quem disser o contrário, não passa dum aldrabão.) Estando fora da norma, não deixa de ser um fenómeno natural (e não contranatura, como defendem os seus perseguidores) e, por isso, deve ser encarada com naturalidade nas sociedades civilizadas e evoluídas.
Ora, este senhor de 87 anos terá tido uma expressão bastante infeliz, qualquer coisa como "sou completamente contra os homossexuais". Talvez tivesse querido dizer que era contra a promoção da homossexualidade, e, aí, estaria bastante melhor, do meu ponto de vista.
Recuo um sábado: estava em Évora, entro numa tabacaria para comprar o jornal e dou de caras com a capa duma revista com o nome duma parola que esganiça por essas bardatelevisões além, dois marmanjos em ósculo envolvente -- o triunfo do kitsch em todo o seu horror. O cúmulo da miséria moral é que certamente não existe, em quem empreende a folha de couve, a mínima intenção cívica e pedagógica de promoção da tolerância, mas tão-só o propósito de arrebanhar mais uns cobres. O mercenarismo de mãos dadas com o merceeirismo.
Mas isto é a minha sensibilidade, o meu gosto, a minha educação, a minha mundividência essencialmente conservadores e tradicionais a falar. Nunca me passaria pela cabeça escrever sobre o assunto, por duas razões: a homossexualidade pertence à esfera íntima de cada um; a exteriorização feérica dela, embora seja um dos avatares do mau gosto em que estamos imersos, não é suficientemente importante para que me dê ao trabalho. Há coisas muito mais sérias, graves e urgentes. Faço-o agora, só para dizer -- porque me apetece e por ser conflituoso --, que a homossexualidade, enquanto desvio do padrão, enquanto prática minoritária, está, objectivamente, fora da norma, é portanto, nesse sentido, uma anomalia -- como o ser-se albino ou, dizem, ter os olhos azuis.
É provável que Gentil Martins não esteja a ser apenas um técnico -- altamente qualificado, sublinhe-se, daqueles que são (deveriam ser) orgulho de uma comunidade --, e a sua afirmação esteja contaminada pelo vírus religioso. É uma maçada, mas é a sua opinião, não só legítima, como expressa no seio de uma sociedade liberal, incompatível, pois com atitudes de bufo, de reles denunciantes que foram apresentar queixa à Ordem dos Médicos, que por sua vez vai abrir um inquérito ou palhaçada semelhante.
Gentil Martins esteve também mal ao pessoalizar a questão das barrigas de aluguer. Podia referir-se-lhe sem trazer à colação o Cristiano Ronaldo, e da forma como o fez. Nunca me debrucei sobre o assunto, não tenho grande opinião, salvo uma rejeição instintiva, embora possa estar aberto a aceitar a prática em situações extremas, com as quais, felizmente, nunca fui confrontado. Mas há uma coisa que eu sei: uma criança não é uma coisa que se compre como quem vai à loja dos animais à procura dum bicho de estimação.
Tudo isto é controverso, e é natural que assim seja. O que não pode ser tolerado é a perseguição, fanática e pidesca, a quem exprime as suas opiniões, conservadoras, tradicionalistas e confessionais -- e com todo o direito a fazê-lo.