Primeira banalidade: a ficção realista é sempre ultrapassada pela realidade, trate-se de um ambiente concentracionário na floresta amazónica
(A Selva, de Ferreira de Castro)
, uma migração colectiva na América da Grande Depressão (
As Vinhas da Ira, de John Steinbeck) ou uma exploração mineira em França (
Germinal, de Émile Zola).
Se Isto É um Homem, de 1947, é um relato verídico de um sobrevivente, escrito ao longo de mais de um ano, tão intensamente vivo como profundamente meditado. E, por isso, o horror pôde ser descrito com objectividade, a benefício da narrativa, que não se deixa seduzir pela magnitude do tema (a vivência do próprio autor no infame campo de Auschwitz, até à libertação pelas tropas soviéticas, em Janeiro de 1944), conduzindo a narrativa porventura com uma grandiloquência que só a prejudicaria. Como Levi é um grande escritor, serve o texto com absoluta mestria, num estilo contido e recurso frequente a frases curtas, remates de períodos que nos deixam k.o.
Se Isto É um Homem: a condição simultaneamente trágica e patética do bicho-homem que conhecemos de nós próprios, mas que aqui outrém -- o autor -- revela. E, embora revelando-se, apenas o faz parcialmente, pois o autor/narrador fala de um eu que só em determinados e ocasionais momentos o é, porque do que se trata é a confirmação à outrance, e pelos meios conhecidos, do desiderato dos alemães nesta perseguição insana: a de retirar os judeus da humanidade -- não apenas exterminando-os, mas, naqueles que não eram desde logo executados, esvaziando-os dessa mesma humanidade, como que para comprovar teorias rácicas tão dementes quanto extraordinariamente estúpidas (um racista biológico, quando não for um doido varrido, será sempre um cretino, ignorante e por vezes perigoso).
à margem, mas a propósito
Outro lugar-comum, que por o ser não é menos verdadeiro, é o da natureza excepcionalmente maligna do feixe de ideias imbecil e mal cozinhado que foi o nacional socialismo, pior do que o estalinismo, na medida em que este, entre outras coisas, pintava o despotismo com as cores do humanismo (como embuste, talvez nada lhe leve a palma); o nazismo, pelo contrário, não ocultou a sua natureza degeneradamente maligna: a da suposta e absurda existência de uma raça superior, doutras inferiores, e até de uma categoria que estava abaixo da humanidade e que havia que exterminar, não sem antes ser sugada, metodicamente, pelo trabalho até à exaustão, com rigor e cultura germânicos.