terça-feira, setembro 09, 2008

Antologia Improvável #329 - Helder Moura Pereira

De olhos no copo, e não em mim, articulaste
umas palavras de que só me lembro
que faziam sentido mas não me lembro
qual era o sentido que faziam. Deviam ser
palavras nulas -- de quem escuta ou de quem diz?

As palavras nulas fazem sentido, poderia
ver-te no meio das pancadas no carro
da gente aos urros a festejar uma vitória,
com a cabeça de fora dizendo não façam
isso, sem ninguém perceber que essa tua cabeça
dali a pouco estaria encostada à minha.

E não era só a cabeça. Sempre junto ao mar,
adoravas ver as luzes dos barcos
e se não houvesse barcos o melhor era eu
tirar rapidamente as mãos. Esta é uma canção
ligeira, está agora muito em voga
mas tu não a ouves, claro, só lês Agustina,
só ouves Schubert, só lês Jorge Luis Borges.

Depois foi assim o tempo: o teu sorriso
passou de convidativo a irónico, de tranquilo
a feroz, quanto mais linhas te afundavam
o rosto, mais havia versos antigos
para repetir, pontes muito instáveis
(ora por causa da madeira, ora por causa
das cordas) entre coisas de amor
e coisas de pura atracção. Ninguém prega
no deserto, portanto a solidão não existe.

As palavras nulas fazem barulho,
mas não fazem mais nada, são uma espécie
de dialecto, não incomodam ninguém.
É estranho que haja quem difunda
as palavras nulas (parece um financiamento
para satisfazer um capricho, mas que lucro
se espera obter das palavras nulas?)
e ainda mais estranho que alguma gente,
que parecia decente e culta, as ache
profundas, merecedoras de serem seguidas.


Segredos do Reino Animal

4 comentários:

Paulo Cunha Porto disse...

Este não é nada mau.
Olha, Patrãozinho, deu-me para me meter no
http://corta-fitas.blogspot.com/
Abraço

Ricardo António Alves disse...

Bom sinal! Eu logo vi que não te aguentavas muito tempo...
Ab.

Ana Paula Sena disse...

Adorei o poema! :)

Ricardo António Alves disse...

...e o livro é todo ele muito bom. :)