terça-feira, fevereiro 27, 2007

Antologia Improvável #204 - João Camilo

QUE BATE AS ASAS

É à noite que escrevo. Chego a casa e sento-me, o papel
é tão branco, tão limpo. Como ter braços para pôr devagar
à volta dos ombros redondos da rapariga; como beijar-lhe as orelhas
tão cheias de cor na tarde com árvores, com gente que passa.
Uma música da febre de Schumann vai-me ajudando a dissecar
os sentimentos. De pé, a tremer na sala vazia, enquanto os outros dormem,
eu compreendo por momentos que a vida, como uma borboleta
que bate as asas contra a luz escaldante da lâmpada, me
atormenta, me perverte. O operário da fábrica de automóveis,
o pintor de casas, dormem. A mulher e a criança, lá dentro,
sonham também. Cada um vive o seu destino secreto, espera
pelo tempo que há-de vir de novo, e eu,
à noite em casa, depois de ter estado de pé a deixar-me queimar
pelo aguilhão que a vida é, escrevo.

Na Pista, Entre as Linhas

João Camilo


O Vale do Riff - Led Zeppelin, «Stairway To Heaven»

domingo, fevereiro 25, 2007

Convite
Hugo Pratt, Corto Maltese -- As Célticas

M. Teixeira-Gomes


Correspondências #81 - M. Teixeira-Gomes a João de Barros

Bougie (p .r.) 16-2-40
Querido amigo: Meia duzia de linhas, para não prolongar demasiado o meu silencio, pois tenho duas cartas suas a agradecer (de 10 e 17 de Dezembro) maná espiritual que tanto me reconforta no deserto em que vivo. E ainda eu acho que esse deserto não é tão completo como o desejaria; convinha-me uma caverna semelhante áquelas que os anachoretas escolhiam, nos primeiros séculos da nossa era, para terminar os desenganados dias. Mas então nunca lá chegariam palavras de carinho como essas que a sua amizade encontra para me alentar; em compensação, porém, não ouviria falar dos efeitos que a «desumanidade culta ou cultivada» pratica actualmente. Quando volto os olhos para o meu passado tenho a impressão de que levei a existencia embalado no regaço de uma voluptuosa valsa de salão até que de repente mergulhei até aos gorgomilos no mais infecto dos pantannos. Com a faculdade, de que ainda conservo restos, de tudo «objectivar», os horrores d'esta guerra relatados nos jornaes, que logo se me representam em quadros pavorosos, de irrefragavel realidade, envenenando-me a alma que fica a escorrer tédio, fel e peripécias, com interesse meramente recreativo, como se fosse um romance rocambolesco publicado em folhetins diários!... -- Basta, porém, de lamentações; e sem nervos que me permitam, hoje, mudar de assumpto, termino renovando os meus agradecimentos, com um apertado abraço do C.
M. Teixeira Gomes
Cartas Políticas a João de Barros
(edição de Manuela de Azevedo)

João de Barros


Mais acordes nocturnos


sábado, fevereiro 24, 2007

Acordes nocturnos


Figuras de estilo - Rocha Júnior

A avó e o neto.
Durante semanas andei intrigado com aquele grupo, ao vê-lo passar sob as janelas da minha casa de campo, porque eu tinha a certeza de o conhecer de qualquer parte e não havia meio de me lembrar de onde. Um dia descobri. Conhecia-o de uma célebre poesia de João de Deus, em que mãe e filhos errantes, depois de baldadamente procurarem abrigo para passar a noite, aqui repelidos pela sentinela, além escorraçados pelos cães de guarda,
Se deitam no caminho
Até romper a manhã.
Havia também um cão -- um cão que poderia ser considerado da família, se a moral corrente nos permitisse definir o parentesco, não pelos laços de sangue entre animais da mesma espécie, mas pelos vínculos do amor entre criaturas quantas vezes de espécie diferente.
«Os dois»,
in Maria Liberta

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Antologia Improvável #203 - António Graça de Abreu

DO MUITO IMAGINAR
Quando
os montes se transformarem em planícies,
secarem as águas dos rios,
cair neve em Agosto
florirem rosas no coração das nuvens,
quando tudo isto acontecer,
mais mil coisas de espantar,
então sim, deixarei de te amar.
Não é bem assim,
apenas palavras
"por virtude do muito imaginar."
Quando
chegar o dia da tranquilidade plena,
eu fechar por fim os olhos,
a escuridão suceder à luz,
o coração adormecer de vez
e eu partir na curta viagem
para o eterno vazio e o nada,
então sim, deixarei de te amar.
Não é bem assim,
mais palavras
"por virtude do muito imaginar."
Eu sei,
concluído tudo,
por veredas resplandecentes, no Céu,
vou ainda levar-te comigo,
ao encontro do musgo, da quietude e da alegria,
para, depois das lágrimas e da Terra,
te amar serenamente entre os deuses.
Terra de Musgo e Alegria

O Vale do Riff - King Crimson, «Elephant Talk»

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

terça-feira, fevereiro 20, 2007

estampa XCV

Jan Vermeer, O Atelier do Artista
Museu de História da Arte, Viena

Figuras de estilo - João Gaspar Simões

Um espírito romântico sabe melhor do que qualquer outro que o mundo só dura o tempo que nós próprios duramos.
António Nobre, Precursor da Poesia Moderna

João Gaspar Simões










fonte

O Vale do Riff - Benny Goodman, feat. Peggy Lee, «Why Don't You Do Right»

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

«Grandes Portugueses»

Se eu quisesse escolher um ícone, votaria nele.

O Vale do Riff - Rosemary Clooney, «Blues In The Night»

'
Esta balbúrdia de carnaval tolo, / Esta mistura de europeu e zulu / Este batuque tremendo e chulo
Álvaro de Campos
uma capa de Jijé

domingo, fevereiro 18, 2007

Manuel Teixeira-Gomes


Correspondências #80 - M. Teixeira-Gomes a Afonso Lopes Vieira

[Pamplona, 7 de Julho de 1908]
Meu amigo: Recebi hoje o seu bilhete de Florença.
Foi -- com Siena, Orvieto, Prato, etc. -- a minha primeira estação na Itália, único país que visitei com método. Durante alguns anos a fio continuei ali as minhas digressões até compreender que esgotara as fontes especiais onde a minha sensibilidade podia beber. Bebi pouco, naturalmente, embora bebesse quanto pude... Como a Itália seja inexaurível a saturação dá-se nos espíritos muito antes de atingir as máximas claridades e por aí se pode aferir a amplitude das almas que por lá transitam. Mas é, sempre, indispensável ao equilíbrio do sentido estético, que sem o conhecimento da Itália claudica até nos organismos de privilegiadíssima estrutura. Dias atrás, em Ávila, ouvindo o Junqueiro que, no entanto, ainda conserva uma permeabilidade rara às sensações de arte, não me surpreendeu saber, por fim, que ele nunca estivera em Itália. O estudo da Itália exclui o vago, o indeciso, o disforme, das divagações poéticas. Encontrei em Pamplona -- uma das poucas cidades espanholas que não conhecia -- o mais belo claustro gótico do mundo. É florido, mas no interior das galerias apenas o necessário para inflorar as suas linhas de ornamentos idealmente delicados e miudinhos, que de modo algum lhes prejudicam a austera elegância. Nas fachadas em volta do jardim é que a fantasia tomou asas mas com tão extraordinária graça e uma tão perfeita harmonia! Agora suponha que as figurinhas que enxameiam nas portadas e capitéis são obra de um génio superior ao dos melhores «imaginários» de Chartres e Estrasburgo; que essas figurinhas nos seus movimentos e nas roupagens valem mais as delicadas tanagras -- desconheço comparação mais justa -- e tem expressão que somente a arte medieval so[u]b[e] imprimir às suas criações e avaliará a delícia com que eu ali passo horas sem fim. É um isolamento salutar da grande saturnal católica em que Pamplona agora tripudia. Festas de S. Firmino: procissões, gigantes e cabeçudos, vinho, inferno de gaitas estrídulas, concertos Sarasate, e quarenta touros de morte. Interessantíssimo, de resto, mas algo fatigante na minha idade. -- Espero vê-lo em Lisboa no começo de Agosto. Será isso possível? Se me der notícias até 20 deste mês faça-o para o «Hotel Santa Cruz, Madrid» e depois para o «Avenida Palace, Lisboa». Tenciono deixar o norte de Espanha lá para 20 e depois, no caminho de casa só é certa a passagem por Madrid e Lisboa. Seu grande admirador e amigo
M. Teixeira Gomes
O Cristal da Palavra -- Cartas de M. Teixeira Gomes a Afonso Lopes Vieira
(edição de Urbano Tavares Rodrigues e Vítor Wladimiro Ferreira)

Afonso Lopes Vieira


Acordes diurnos


sábado, fevereiro 17, 2007

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Antologia Improvável #202 - Pedro Homem de Melo

DESPERTAR

Ao cabo de longas horas,
Morreu-lhe o filho nos braços.
Pobre mãe! Por que não choras
Se tens a alma aos pedaços?

Pobre mãe! Por que não gritas
Se tens a alma desfeita?
Não acreditas
Na morte?
Não a sentes a mais forte
Nem quando o teu braço a estreita?

E a mãe não chora! não chora!
Levaram-lhe o filho embora
Sem que ela dissesse nada.

E a sua mão, espantada,
Leve, poisa-lhe no seio...

Mão leve poisada em cântaro
Inútil, sendo tão cheio!

Estrela Morta / Lírica Portuguesas. 3.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

Pedro Homem de Melo


O Vale do Riff - Coleman Hawkins com Earl Hines, «Crazy Rythm»

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Yslaire, Sambre III -- Revolução, Revolução...

Figuras de estilo - Vergílio Ferreira

Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do Universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos se não tivessem conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas -- e esse homem sou eu...
Aparição

Vergílio Ferreira

O Vale do Riff - Rory Gallagher, «Banker's Blues»

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Antologia Improvável #201 - Paulo Teixeira

PAUSÂNIAS EM ROMA

As janelas voltam-se para as paisagens
cisalpinas onde as tribos detêm o imperador.

Em Roma um homem relata o que viu
em duas costas e espera o seu regresso

para lhe entregar em mão a Viagem
-- se no palato antonino ecoa a língua

de Catulo com a sua investida de fria lança,
é grega a palavra em que escreve a vida

pensada só para si -- e agradecer-lhe tudo,
colunas, bustos, fontes, estátuas,

até à música que as ruínas entoam no presente.
Agora que a Mesopotâmia é uma província romana

e a peste se propaga de oriente a ocidente,
se algum rumor entra pelas mesmas janelas

é o do escopro talhado em pedra o vazio
que o tempo concede em vida aos romanos.

Orbe

Paulo Teixeira


O Vale do Riff - Genesis, «Dancing With The Moonlit Knight»

domingo, fevereiro 11, 2007

Acordes diurnos



There's a house with no door

and I'm living there;

at night it gets cold and the days

are hard inside.

There's a house with no roof,

so the rain creeps in,

falling through my bead as I try

to think out time.

I don't know you, you say you know me;

that maybe so,

there's so much that I'm unsure of.

[...]

Correspondências #79 - Eça de Queirós a sua filha Maria

[Maio / Junho, 1892]
Minha querida Maria
O Papá não tem escrito à sua querida Maria porque tem andado num passeio muito bonito com a tia Benedicta. mas tem pensado muito na sua Maria, e tem gostado de saber que ela se porta muito bem e que está com muito juízo. Já sei que tens uma galinha e que dá ovos. Os primos aqui têm galinhas e perus, e pombinhas. Os primos estão muito bonitos, e perguntam sempre pela Maria. A priminha pequena, a Mathilde, é muito engraçadinha, e tão pequenina que parece uma bonequinha. O Papá quer levar um anelzinho à sua Maria, mas quer ter a medida do seu dedinho. Mas gostava que a Maria falasse português -- os primos aqui têm medo de não poder depois brincar com a Maria se ela não souber falar português. Espero que o jardim já tenha muitas bonitas flores. O Papá está com muita vontade de partir depressa para abraçar os seus queridos meninos. Dá muitos beijinhos ao Zezé, a quem o Papá também há-de escrever -- e muitos também ao Tony e ao Ber, e recados à Theresa, e a todos.
A ti minha Maria manda muitos e muitos beijos e abraços, o teu
Papá
A Arte de Ser pai -- Cartas de Eça de Queiroz para os Seus Filhos
(edição de Beatriz Berrini)

Emília e Maria Eça de Queirós,
conde de Caparica,
Domício da Gama e Eça

sábado, fevereiro 10, 2007

Magistério

Em Haydn eu oiço nitidamente o seu discípulo Beethoven.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Antologia Improvável #200 - António Ramos Rosa (3)

Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
a árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a da árvore
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses

Cada Árvore É um Ser para Ser em Nós / O Poeta na Rua
(edição de Ana Paula Coutinho Mendes)

António Ramos Rosa

O Vale do Riff - Peter Gabriel, «Red Rain»

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Figuras de estilo - Manuel Ribeiro

Mostrava Maria Helena, entre as suas peregrinas virtudes, grande fervor religioso. Nesta humilde submissão, tanto mais edificante quanto mais do alto emanava, via monsenhor o espírito de obediência e o sentimento de hierarquia que eram para esse padre disciplinador e severo, a única base estável das relações sociais. Sua maior canseira, quando a fidalga entrou na idade da reflexão, fora iniciá-la nos rudimentos da corografia social, com os departamentos das classes nitidamente diferenciados e das cordilheiras enormes de certas famílias privilegiadas, a cujos pés vêm morrer as planícies chãs da vulgaridade e acumular-se, rastejante, a poeira vil das gerações anónimas.
A Catedral

Manuel Ribeiro

O vale do Riff - Bill Frisell, «Little Brother Bobby»

Faz-de-conta

Neste país de faz-de-conta, dezasseis jornalistas sentam-se no banco dos réus por alegada violação do segredo de justiça, mas o feiíssimo Adelino Salvado (que o nome e a cara lhe sejam leves), apanhado indecorosamente em estupro do dito segredo, e no mesmo processo, junto de outro jornalista, foi mandado em paz pelos seus pares.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Antologia Improvável #199 - José Rui Teixeira

Amo-te como o tempo para qualquer coisa.
Falo da inclinação do violoncelo, da imaterialidade
do teu sorriso se me sorris, dos teus olhos quando
as tuas mãos se enchem de uma qualquer verdade
anímica e indizível; dos teus olhos se te dás à chuva
no princípio do outono.

Para Morrer

José Rui Teixeira


O Vale do Riff - Art Blakey, feat. George Adams, F. Lacy & B. Green, «Blues March»

domingo, fevereiro 04, 2007

Acordes diurnos


Correspondências #78 - D. Francisco de Portugal a D. Rodrigo da Cunha, bispo do Porto

Ociosíssimo ando neste lugar e tão preguiçoso que nem os melros que já começam a dar gritos despertam as musas. Não sei que é isto. É mortificar de cãs e de Mulher e filhos. Com mais lampreias passará V. S. por lá a quaresma, porém não com mais favas verdes. Não sei que é isto que até os pregadores andam ronceiros. Ferrugento pudera mais facilmente andar tudo segundo tem chovido. De sua Majestade feito andaluz visitando fronteiras, os Sebastianistas ressurgiram e o Bandarra tornou ao seu treze por dúzia. V. S. mande-me mui boas novas de sua saúde; e se presto para o servir nalguma coisa mande-o que não tem maior cativo. A quem toda a família pedem [sic] a bênção a que Ds. guarde.
Lisboa, 2 de Março de 1624
In Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal

sábado, fevereiro 03, 2007

Acordes nocturnos

King Crimson, In The Wake of Poseidon
Plato's spawn cold ivyed eyes
Snare truth in bone and globe.
Harlequins coin pointless games
Sneer jokes in parrot's robe.
[...]
Heroes hands drain stones for blood
To whet the scaling knife
Magi blind with visions light
Net death in dread of life.
Their children knill in Jesus till
They learn the price of nails:
Whilst all around our mother earth
Waits balanced on scales.

estampa XCIV

Ernst Ludwig Kirchner, Auto-Retrato com Modelo
Museu de Arte, Hamburgo

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Não

Às dez semanas, o ser que existe no ventre da mulher já é suficientemente humano para que o Estado e/ou a Comunidade se possam permitir a sua supressão sem razões ponderosas. Só aceito a eliminação de um feto se a vida da mãe correr perigo, se existiu violação (neste caso defendo que nem sequer se deve impor um prazo para a decisão da mulher) ou se se verificar uma malformação grave.
A pergunta que é feita aos cidadãos é duma esperteza saloia inqualificável, tão espertalhaça como defender que a 11 de Fevereiro iremos simplesmente pronunciar-nos sobre o um artigo do Código Penal.
O aborto clandestino é uma chaga social, é verdade. As mulheres que o praticam sujeitam-se aos maiores incómodos, devassas e humilhações, é um facto. As que podem, vão fazê-lo ao estrangeiro, sobejando para as pobres as curiosas, as abortadeiras e os queridos médicos abortadeiros.
Para começar: a estes, aos médicos abortadeiros e às parteiras da mesma igualha, gostava de vê-los na cadeia e irradiados da profissão.
Não concebo, com o país que temos, primitivo e boçal, que as mulheres sejam sequer levadas a julgamento. Isso foi proposto por Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda, e logo posto de lado porque o que interessava era «acabar com a humilhação», mesmo que a dita continuasse, como continuou. Freitas do Amaral e Manuela Eanes, entre outros, propuseram que ao crime de supressão de uma vida não correspondesse uma pena. É claro que apareceram uns chicos-espertos a dizer que «tinha de haver pena», que era uma absurdo jurídico e outros cacarejamentos, como se Freitas fosse um veterinário e não percebesse nada de leis.
Julgar e condenar mulheres de classe desfavorecida é uma injustiça, não só por muitas vezes lhes faltar informação, como por serem coagidas pelos maridos ou pais a abortarem, e ainda por lhes estarem vedados os simples meios de contracepção (já nem falo do torpedeamento da Santa Madre Igreja, à qual me referirei adiante): aos bonitos esposos de muito do nosso Portugal nem lhes pode passar pela cabeça que a sua mulher usa a pílula. Usar a pílula contraceptiva no país profundo, porco e boçal é meio caminho andado para os labregões imaginarem as mulheres deles no fornicanço cadeleiro -- que é o que eles conhecem e praticam.
Houvesse coragem política para tornar obrigatórias as consultas de planeamento familiar nos centros de saúde, tão obrigatórias como o é a vacinação -- com boletim e tudo --, para todos os adolescentes a partir dos catorze anos, e, em futuro próximo, outro seria, o panorama do aborto clandestino. É evidente que não haverá essa coragem. Se o «Sim» ganhar, está, para eles, o problema resolvido; se o for o «Não» a vencer, duvido que os partidalhos da esquerda -- sempre a contar votinhos, sempre a marcar pontinhos políticos à pala da «IVG» -- queiram defrontar o país conservador e a poderosa Igreja, promotora de sexualidade para eunucos, como bem demonstrou o Cardeal Patriarca e as suas patacoadas de educação sexual para a castidade (!)...
Sou ateu e voto à esquerda. O meu «Não» resulta da convicção de que não é lícito, a pretexto de problemas de saúde pública graves e problemas de civilidade igualmente agudos, permitir-se a destruição de fetos, que são, repito, seres humanos. Se após 11 de Fevereiro o aborto continuar a não ser livre, e nesse sentido votarei, espero que o Estado e a Sociedade assumam as suas responsabilidades, promovendo uma verdadeira reviravolta na política de planeamento familiar, para além do Sim carniceiro e do Não beato.




O Vale do Riff - Lennie Tristano, «Tangerine»

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Antologia Improvável #198 - Ana Luísa Amaral (2)

PASSOS DE VELUDO (título póstumo)

Do not go gently into that good night
Dylan Thomas

Não permitas que a noite se desabe,
habituada e negra. Antes confunde
as regras e as sombras que lhe obedecem,
cegas. Não descanses olhar sobre
o vazio, nem no silêncio seduzindo
em nada. Aqui: címbalo, pífaro, assobio,
ou tampas de barulho avesso a almofada.
Grita, blasfema, geme em timbre agudo,
mas não deixes a lua, com passos de veludo
entrar pela ombreira, sentar-se e conversar.
Nem lhe ofereças um lar de cabeceira
e penumbra doente. Argumenta-a de frente
e à seda roçagante dos seus passos;
numa filosofia de algibeira,
resiste-lhe o abraço cultivado. E rasga
a sua máscara ausente de suor. Não entres
docemente nessa noite. Não entres
tão depressa.

E Muitos os Caminhos / Poesia Reunida

Ana Luísa Amaral

O Vale do Riff - Aretha Franklin, «I Say A Little Prayer»