terça-feira, maio 31, 2005

Caracteres móveis #17 -- Anton Tchékhov

Veja só, Ánia: o seu avô, o seu bisavô e todos os seus antepassados eram esclavagistas, proprietários de almas vivas, e não será verdade que de cada ginja no pomar, de cada folha, de cada tronco, olhem para si seres humanos, será que não houve vozes... Possuir almas vivas -- isso transfigurou-vos a todos, aos que viveram antes e aos que vivem agora, a um ponto tal que a menina, a sua mãe e o seu tio já não se dão conta de que vivem com dinheiro emprestado, de que vivem por conta alheia, por conta dessa gente a quem não deixam entrar em casa para além do vestíbulo...
O Ginjal
(tradução de Nina e Filipe Guerra)

Tchékhov

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segunda-feira, maio 30, 2005

Boule e Bill Posted by Hello

Boule, antes de Calvin

Boule e Bill, um rapazinho e o seu cocker spaniel, criação magnífica do belga Jean Roba, em 1959, foi uma das grandes séries da revista Spirou. Reli há pouco o primeiro álbum. Boule lembrou-me o seu congénere americano Calvin: ambos miúdos de palmo e meio, beneficiando da cumplicidade das respectivas mascotes, o bouleversement (desculpem, mas não resisti) do mundo adulto e dos seus códigos de conduta, uma notável disponibilidade do(s) autor(es) para estar(em) na pele duma criança, e simultaneamente uma grande inocência. Antes de se retirar, há cerca de dois anos, Roba escolheu Verron para lhe suceder. Boule e Bill são pouco conhecidos entre nós e estão inéditos em livro.
Verron e Roba Posted by Hello

domingo, maio 29, 2005

Antologia Improvável #15 - José Gomes Ferreira

Terra áspera
onde nunca houve faunos nas árvores,
nem ninfas nas fontes,
nem deusas nos rios de preguiça verde...

Terra nua
com vultos pardos
a dependurarem nos ramos lágrimas de forca,
e a verterem nas fontes súplicas de sede,
e a atirarem para as lajes passos de suplício,
e a colarem nos muros sombras de desenterrados.

Terra seca
em que só o drama dos homens
povoa as árvores e as pedras
de imaginação de cinzas,
e transforma o mundo
num planeta podre
da carne de todos os mortos,
ainda com restos de corações a pulsar
no silêncio das rosas...
-- esse suor de pétalas sem deuses
que cheira a cadáveres lívidos
nas frontes dos heróis.

Heróicas / Poeta Militante

José Gomes Ferreira

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sábado, maio 28, 2005

Correspondências #2 - José Régio a João Pedro de Andrade

Boavista, Portalegre
Abril de 1939
Prezado camarada:
Desculpe-me esta demora. Não foi a leitura da suas peças que me tomou todo este tempo: Li-as logo que as recebi. Mas queria escrever-lhe devagar e longamente. Afinal... para quê? Além de que adio sempre demasiado as cartas que me proponho escrever como quem escreve um ensaio, -- o que tenho de principal a dizer-lhe é simples; e pode ser dito ao correr pena, conforme sair: Gostei muito das suas peças... e julgo não me ter enganado gostando. O que nas suas críticas me chamara a atenção não fora tanto a justeza ou a não justeza dos juízos (se alguns seus juízos me pareciam justíssimos, outros, tal o sobre o João Falco, pareciam-me injustos) como, sobretudo, um tom de quem diz as coisas sabendo o que diz, «com um saber de experiência feito». O João Pedro de Andrade afigurou-se-me um daqueles homens -- raros em Portugal -- que têm um conhecimento íntimo, profundo, pelo menos de certos aspectos da vida, e nesse conhecimento se estribam quando escrevem. Esses, são interessantes mesmo quando errem ou se enganem: As suas palavras podem não ter a sonoridade própria a certos talentos brilhantes e ocos... mas claro que é preferível, nesta coisa das letras, o som cheio, surdo, duma pancada num muro denso. Julgo eu que se não pode ser grande escritor sendo pequeno homem, e que é preciso ter coisas em si para poder interessar aos outros. Ora através dos seus artigos e críticas, o João Pedro de Andrade parecera-me um desses homens que têm o direito de escrever por alguma coisa terem, de facto, a dizer aos seus semelhantes. Por isso lhe pedi colaboração para a presença. Não tive grande mérito na minha descoberta, pois já outros tinham descobrido o mesmo. E por isso esperei e li com grande curiosidade as suas peças. Ora no meu entender, as suas peças confirmam dum modo muito superior ao das suas críticas isso que eu pressentira: O João Pedro de Andrade tem coisas a dizer; e isto que parece um mínimo de exigência, exigir dum escritor que tenha coisas a dizer, -- não o é; pelo menos, cá na minha linguagem. Além disso o João Pedro de Andrade é sem dúvida uma vocação de dramaturgo. O seu diálogo logo me surpreendeu (desculpe, eu devia escolher outro verbo...) pela rara qualidade de não ser vulgar nem empolado; isto é: de só ter a estilização necessária a todo o diálogo de teatro, e adequada ao assunto, personagens, meio, etc. Mas não achei menos notável a simplicidade, digamos nudez, depuração, com que a acção caminha, desprezando todo o desnecessário, todo o supérfluo, -- ou a vida que anima os personagens, tão diferentes dos retóricos bonecos que por aí nos apresentam em cena. Perante estas qualidades importantíssimas, nem tenho a mínima vontade de entrar numa análise crítica, miúda e restritiva: Naquela vida própria que adquirem personagens de ficção (em Continuação da Comédia) poder-se-á, talvez, descobrir um eco de Pirandello. E adivinho, pois o não chego a constatar, nem sei quê do Ibsen em certas falas ou no ambiente de Uma só vez na vida. Porém Ibsen é daqueles grandes Mestres com quem todos podem aprender sem sacrificar a sua originalidade própria (isto mesmo é o que caracteriza os mestres autênticos...) e qualquer sugestão que Pirandello lhe tenha dado não diminui a originalidade da sua peça num acto. A verdade nua e crua, muito simplesmente dita, é esta: Eu fiquei entusiasmado com as suas peças. E o que me admira, posto em Portugal não sejam estas coisas muito para admirar, é que o João Pedro de Andrade tenha escrito estas peças, e outras, e seja desconhecido como autor dramático. Não terá o meu prezado camarada alguma culpa nisso? É preciso lutar, teimar, impor-se. Eu quereria poder fazer alguma coisa para o poder ajudar nessa empresa. Mas que posso eu senão escrever? Se consente em publicar na presença A Continuação da Comédia, (e digo esta não porque Uma só vez na vida lhe não seja ainda superior, que o é, mas porque a sua extensão dificulta mais o caso) terei nisso verdadeiro prazer. Tínhamos combinado começar a publicar desde o próximo número uma peça inédita de Alfredo Cortês -- Bâton. Mas não recebemos, até hoje, notícia duma resolução definitiva do autor. A sua peça apareceria já no próximo número, no caso de não vir a dele, que tem primazia por uma simples questão de prioridade de tempo. Uma revista tem as suas exigências de equilíbrio no género da colaboração publicada; e por isso poderia este primeiro número da nova série da presença parecer conter demasiado teatro, no caso de saírem a público as duas peças. Já em outro número se poderia melhor admiti-lo. Conhecendo outras peças suas, (que teria muito gosto em conhecer), e obedendo a uma das intenções da presença, que é estar ao serviço dos verdadeiros talentos que vierem aparecendo, eu escreveria uma nota crítica um pouco desenvolvida sobre um dramaturgo inédito. Fico esperando uma nota sua, e sou o seu camarada e admirador,
José Régio
P.S. -- Por já ser hoje tarde, lhe não devolvo o seu original de Uma só vez na vida. Para lhe devolver o outro, espero a sua resposta.
In João Pedro de Andrade, Intenções e Realizações da presença na Prosa de Ficção, edição de Julieta Andrade

José Régio

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quinta-feira, maio 26, 2005

Here, there and everywhere

A genialidade dos fab four reside nisto: grandes canções, comerciais ou experimentais, pouco importa, trabalhadas como diamantes em bruto (passe o lugar-comum), que eles próprios lapidavam e o produtor George Martin, o quinto beatle, ajudava a burilar. Revolver, por exemplo, que acabo de ouvir, de 1966. Há quem diga ser o melhor álbum dos Beatles, opinião que requer alguma temeridade para ser defendida -- esta e outras, respeitantes a outros discos. Eu, por exemplo, tenho um fraco pelo Rubber Soul (1965). Cada LP da banda de Liverpool trazia uma mão-cheia de obras-primas, além de várias boas composições, acima da média. Neste aqui à mão, por exemplo:«Good day sunshine», «I'm only sleeping», «Yellow submarine», «Got to get you into my life», excelentes canções. Querem obras-primas do Revolver? Aqui vão: «Eleanor Rigby» «Here, there and everywhere», «For no one», «Tomorrow never knows»...
The Beatles Posted by Hello

3 2 1... jazz!

Acabo de ver, ouvir e ler o primeiro cd, e respectivo livreto, da colecção Let's Jazz em Público, dirigida por José Duarte e publicada pelo jornal de José Manuel Fernandes. Deixo aqui três momentos de exaltação:
1) One for Daddy-O, por Julian "Cannonball" Adderley (sax alto), com Miles Davis (trompete) e uma secção rítmica superlativa, Hank Jones (piano), Sam Jones (contrabaixo) e Art Blakey (bateria);
2) Buddy's Blues, de e por Buddy de Franco (clarinete), Kenny Drew (piano), Milt Hinton (contrabaixo) e outra vez Art Blakey na bateria. (Um dos meus primeiros LP's de jazz foi o Lady Love, da Billie Holiday, gravado ao vivo em Colónia (1954), com o dito de Franco ao clarinete.) A languidez e a volúpia dos blues, está tudo aqui...
3) Afro-Blue, por John Coltrane (sax tenor), McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo) e Elvin Jones (bateria): jazz primordial, peço licença para dizer, como se de jam-session gravada se tratasse... ou não trata?... (Aproveitando: Mc Coy Tyner esteve por cá -- o meu é Cascais e Estoril -- algumas vezes. Vi-o no Parque Palmela, inspirado.)

terça-feira, maio 24, 2005

Caracteres móveis #16 - Walter Scott

Tenho na vida tão poucas coisas que me aflijam, que um dos meus maiores pesares é saber que alguns destes campos estão condenados a servir de terrenos para edificações. No que está situado mais perto da cidade vi, durante várias semanas, um tão grande número de carrinhos de mão, que cheguei, na verdade, a pensar que toda a terra, até a uma profundidade de dezoito polegadas pelo menos, ia ser transportada para outro ponto. Em diferentes sítios do terreno condenado encontram-se amontoadas imensas pilhas triangulares de pranchas, e um pequeno bosque que lhe fica na borda oriental acaba agora mesmo de receber a sua condenação à morte, anunciada por uma estranha pintura a branco nos respectivos troncos: as árvores devem dar lugar a um grupo de chaminés.
O Espelho da Tia Margarida
(tradução de José Marinho)
Rosa Alice Branco Posted by Hello

segunda-feira, maio 23, 2005

Antologia Improvável #14 - Rosa Alice Branco

O SEGREDO DA MATÉRIA

Subo ao sótão e tenho seis anos
pelas escadas que rangem
sob os pés que voam em segredo,
rangem como a porta a abrir
para a luz filtrada dos pavores da infância
onde espero um pouco
por tudo o que me espera desde a eternidade.
Tenho sete anos e a cinza confunde-se com a luz
depositada no tempo. As arcas dão a ver o outro lado
do mundo espalhado pelo chão à minha volta.
Não são objectos mas o próprio mistério da existência
que vai passando pelas minhas mãos
quando tenho oito anos, quando tenho agora
o segredo de uma porta que abre para a casa.
Percorro os caminhos da mesa, da cama, da lareira,
as raízes da casa são o sótão
onde a luz toca nas mãos o infinito.
Subo pelos olhos espantados
e espero ainda pela aurora que me aguarda
aproximando-se lentamente do seu pó.

Animal Volátil / Soletrar o Dia (antologia)

domingo, maio 22, 2005

SLB, SLB, SLB SLB SLB

Glorioso SLB!

Submissão

Só a vida dos que nos são queridos justifica a nossa submissão voluntária.

Caracteres móveis #15 - Mario Vargas Llosa

(...) a matéria-prima da literatura não é a felicidade mas a infelicidade humana, e os escritores, tal como os abutres, preferem alimentar-se de carne putrefacta.
História Secreta de um Romance
(tradução de António José Massano)
Mario Vargas Llosa Posted by Hello

sábado, maio 21, 2005

Figuras de estilo #2 - M. Teixeira-Gomes

Era uma forte rapariga de seus quinze anos, com o desenvolvimento de mulher feita, embora vestindo saia curta; a tez levemente morena ou desse tom mate, que no Norte se contrapõe ao róseo nacarado das loiras e à luz meridional se capitularia, talvez, de alvura láctea; olhos imensos e pretos, da cor do cabelo que lhe caía, solto, sobre as costas, fartíssimo e ondeado como um velo de azeviche.
Deus ex machina - Novelas Eróticas
M. Teixeira-Gomes Posted by Hello

quinta-feira, maio 19, 2005

E de repente dois eufemismos

Idosa, em vez de velha; faleceu, em vez de morreu.

O mestre-escola

Régio aos pontapés no jardim de Portalegre.

27-II-2003

quarta-feira, maio 18, 2005

Correspondências #1 - Ramalho Ortigão a sua mulher, Emília

QUERIDA EMÍLIA -- Pelo que me dizes na tua carta de que passa muita gente -- que passa tudo! -- na rua em que está a casa da mãe, vejo que o que fazes é estar à janela em vez de saíres à maneira do Porto. Isso é o hábito mais anti-higiénico, mais burguês e mais ordinário que há. Peço-te o obséquio especial de não frequentares a janela. As janelas fizeram-se para alumiar as casas, e arejá-las, não se fizeram para ter senhoras penduradas. À janela para quê? Para ver a vida alheia, para olhar para as vizinhas, para ver os vestidos? Isso é de criada de servir. Que as vizinhas façam o que quiserem, que as outras passeiem como lhes apetecer, e que se vistam como entenderem; nós não temos nada com isso. Senhora janeleira faz-se linguareira, invejosa, maldizente e ruim. Mulher de janela, ou pública ou tola. Ainda se é uma janela de onde se descobre o mar, as florestas, os acidentes de uma paisagem e o ar livre e puro, ainda se compreende. Mas na rua da Senhora da Luz ou de S. Bartolomeu! É indecente. Rogo-te a fineza de passeares, de ires para Carreiros, para a costa, para a praia, para a beira do mar. Dize à Júlia da minha parte que se quiser filhos robustos, os não tire nunca da areia. Lembra-te dos benefícios (?) de crianças que Michelet manda construir à beira-mar. Os pequenos não devem sair nunca da areia, mesmo da areia húmida, porque a humidade do mar não constipa nem produz reumatismos, cura-os. Os pequenos como devem andar nas praias é nus. Como se devem enxugar da onda é na areia quente pelo sol. Assim é que se criam os fortes, e se regeneram os homens. Quem o pode fazer e o não faz aos seus pequenos tem uma grande responsabilidade diante da higiene e da humanidade. Sai, sai, sai, sai, sai, sai, sai! é o que te digo com muitos abraços do teu amigo do C
RAMALHO
[C. 1878]
Cartas a Emília, edição de Beatriz Berrini
Ramalho Ortigão Posted by Hello

terça-feira, maio 17, 2005

Antologia Improvável #13 - Ruy Belo

CDC/DCD

A natureza em conjunto padece
e como o sofrimento muito a cansa
vinga-se em quem primeiro lhe aparece
e para ser maior essa vingança
já a futura morte transparece
no pequenino rosto da criança

Homem de Palavra(s) / Obra Poética I
Ruy Belo Posted by Hello

Caracteres móveis #14 - Ferreira de Castro (2)

Como pouca gente transita entre o Bornéu e o resto do Planeta, os navios que ligam Singapura a esta ilha são raros e maus; mas um navio, mesmo estafado calhambeque como o «Darvel», é sempre uma revelação de indivíduos, de idiomas ou de sotaques da terra para onde se vai e que existiam, sem darmos por eles, na terra de onde partimos.

A Volta ao Mundo - II

segunda-feira, maio 16, 2005

Antologia improvável - Rui Knopfli

ARDE UM FULGOR EXTINTO

Arde um fulgor extinto
no longe da tarde agoniada.
Não me pesaria tanto
a caminhada se, em lugar do dia,
no seu extremo achasse a noite.

Exacta e concisa é a claridade.
Não mente à luz o que a noite
ilude. Terrível destino
o de quem é nocturno à luz solar.

Não vos ponha em cuidado,
porém, este meu penar:

são palavras e não sangram.

Mangas Verdes com Sal / Obra Poética

Figuras de estilo #1 - Manuel Tiago

O jovem desaparecera por uma porta ao fundo, que rangera empenada. A velha adormecera encostada à mesa. Junto à máquina de costura, voltada agora para a luz, a outra mulher costurava em silêncio. André não conseguia distinguir-lhe o rosto. Apagada na sombra do lenço, só de quando em quando lhe dava com os olhos a luzir na sua direcção, para logo fugirem de novo. Retinha a ideia do rosto da mulher desfigurado pela cólera e sentia o vago desagrado de estar a seroar com uma megera. Apenas as mãos da mulher o surpreendiam. Eram umas mãos mimosas e claras, cujos dedos se moviam, despertos e hábeis, na costura.
Cinco Dias, Cinco Noites
Aliás, Álvaro Cunhal Posted by Hello

domingo, maio 15, 2005

Escrever na areia - A direita dos valores, imobiliários

Muito está ainda por apurar, e é até possível que exista uma agenda política subjacente a este processo. O que transparece, porém, no caso dos sobreiros da Companhia das Lezírias é, para quem não a conhecesse, que a direita popular (de PP), arrogante e beata, é useira na mais despudorada barganha, expediente que nada fica a dever às qualidades do chulo desenrascanço do querido povo que ela, a direita, quer a todo o custo civilizar. Ora, se se der o milagre de alguma vez viermos a conviver com o resto dos europeus com o à-vontade com que nos medimos, por exemplo, com os albaneses ou uma franja dos moldavos, não será graças esta direita merceeira e boçal, herdeira, aliás, do salazarismo mais paisano.

Demasiado humanos

É para mim um mistério a progressiva transformação (se disso se trata) de alguém sensível, altruísta, terno até, num déspota frio e, se as circunstâncias o permitissem, implacável. Não estou a pensar nas monstruosas e demasiado óbvias incarnações hitlerianas e afins, mas de gente mais chãmente próxima de nós.

sábado, maio 14, 2005

Caracteres móveis - Blaise Cendrars

Vieram homens perseguidos pela tempestade...
Saíram homens do mar...
Vieram homens...
Brancos.
Portugueses.
«Crescei e multiplicai-vos», dizem as Escrituras.
De outro modo: Safai-vos!
Foi o que eles fizeram.
Brasil, Vieram os Homens...
(trad. Célia Henriques e Vítor Silva Tavares)
Cendrars, desenho de Brayer Posted by Hello

quinta-feira, maio 12, 2005

Antologia Improvável - José Fernandes Fafe

VISITAÇÃO

Quando morreste, voltei-me para o silêncio
(riam-se os deuses, de mofa, com certeza)
e prometi-te que nunca mais pecava...

Silêncio: claustro de distâncias infinitas,
por onde um monge vai, em penitência,
curvado, mas levantando um círio ardente
que lhe desvenda a noite:
chão de pedra,
nas margens dos capitéis, mortos nas ervas,
e dos votos, rasgados, entre as sombras.

Oh minha mãe, falhei, mas amanhã
eu partirei de novo para a tarefa...
É tua, ao menos, essa ingenuidade.

O Anjo Tutelar / Poesia (Quase Toda e Até Agora)

quarta-feira, maio 11, 2005

Humilhação

Quase todo o sofrimento é preferível à humilhação abjecta.

terça-feira, maio 10, 2005

Caracteres móveis - Castro

[...] ter consciência de si próprio é relacionar o que existe de uno e justo em nós com a multiformidade do mundo que nos cerca e saber onde há correcções a praticar para se atingir o principal objectivo de cada homem e de todos, que é, na sua mais profunda essência, o prazer.
As Maravilhas Artísticas do Mundo - III
Ferreira de Castro Posted by Hello

Antologia Improvável - Mário Cesariny

Quando aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam

Manual de Prestidigitação

domingo, maio 08, 2005

Gosto dele. Posted by Hello

Tattoo You

Reouvir os velhos LP's, muitos deles com aquele ruído de fritadeira em ebulição, é um dos meus compromissos diários. Ontem foi o Tatoo You, de 1981, quando os mais incautos já pouco davam pelos Stones. Os discos anteriores estavam infectados com o que de pior se fazia à época e mesmo, antes deles, o Love You Live ficou a léguas de distância de outro álbum ao vivo dez anos mais velho, o mítico 'Get Yer Ya-Yas Out!' -- The Rolling Stones in Concert (1969). Este Tattoo You remeteu-me então para esse período, fins de 60/princípios de 70: é um típico álbum dos calhaus rolantes, roufenho e agreste, bluesy e rocker.
Os Glimmer Twins, com Charlie Watts em fundo Posted by Hello

Caracteres móveis - Gomes Leal

Não há ninguém melhor para nos informar do foro íntimo de quem desejamos conhecer do que uma mulher, e especialmente uma amiga: que tem sempre na memória uma carteira infernal.
O Espelho da Marquesa

sábado, maio 07, 2005

Num depósito

volumes e volumes de jornais encadernados
o tudo que é nada

27-II-2003
Lester Young Posted by Hello

Antologia Improvável - Frederico Barbosa

STAR DUST

(Lester Young
lendo Star Dust)

toda pele
quando ela toca
troca

arde
vira verde
trans-
parece

(Lester Young
lendo Star Dust)

nada nunca ninguém
quando ela toca ou fala
toca tão completamente
quando completa foi tocada

(Lester Young
lendo Star Dust)

Cantar de Amor Entre os Escombros
Frederico Barbosa Posted by Hello

quinta-feira, maio 05, 2005

Caracteres móveis - Hélia Correia

Temo às vezes que as árvores não pensem bem dos livros, que neles se vejam mortas. Depois lembro que os próprios seres humanos se consolam, prevendo as flores que hão-de nascer das suas cinzas. Posso então concluir tranquilamente que, quando as duas criações, plantas e escrita, ocupam um só espaço, isso se faz em pleno assentimento e harmonia.
In Os Livros no Parque

quarta-feira, maio 04, 2005

A menina Colombe está de volta

Atrasadíssimo, com o número quase a ser devolvido ao distribuidor, venho informar os interessados que a bela Colombe está de volta e foi capa da BoDoï nº 84. Também voltámos a ver o seu eterno amante, Olivier Rameau, o Monsieur Pertinent e todas aquelas criaturas de Rêverose, imaginadas por Dany e Greg (Rêverose, que os leitores da revista Tintin conheceram pela tradução portuguesa de Sonhorosa). Corram!
Agradecemos, aqui no Mundo-onde-todos-se-aborrecem Posted by Hello
A perdiz velha, segundo o «Almanaque» (ver coluna à direita) Posted by Hello

terça-feira, maio 03, 2005

Tempos propícios

Nem virtude, nem pudor, nem amor, nem inteligência, nem verdade, nem justiça.
Eça de Queirós, Da Colaboração no «Distrito de Évora» - I


Não nos admiramos com as feiras de homens à venda. Nem com os seus frequentadores -- uns para avaliar o artigo, outras à procura da melhor ocasião para a sua própria hasta pública. O espantoso é aparecer tanta gente a preço de saldo.

segunda-feira, maio 02, 2005

Antologia Improvável - Afonso de Castro

ELEGIA DA DISTÂNCIA

A Teixeira de Pascoais


Rios de Trás-os-Montes, a rezar
A elegia dum sonho que morreu...
Sonâmbulas montanhas, onde o luar
É um anjo imenso errando pelo céu;

Melancólicos vales, onde o mar
Seu miserere trágico escondeu,
Onde, como um assombro, a cogitar,
Paira o vulto espectral de Prometeu;

Sou um fantasma errante do Marão,
Vestido de penumbra e solidão,
Que, em poeira de estrelas, se dilui...

Minha presença é feita de lembrança,
E ando, de noite, enfermo de esperança,
A interrogar a sombra do que fui.

Mocidade Lírica

domingo, maio 01, 2005

Caracteres móveis - Jorge de Sena

Para nós, portugueses, aos quais os terramotos da terra e os da estupidez, têm privado sempre de qualquer conservantismo concreto -- e por isso a conservação e o tradicionalismo são tão ferozmente teoréticos entre nós -- a Inglaterra, a Espanha, a França, a própria Bélgica (país novo no local de uma das mais civilizadas regiões da Europa), manteve estranhamente vivo, nos seus usos e nas casas, um mundo que para nós ficou nas páginas de Eça de Queirós. Londres e Paris são, para nós, as mesmas que ele viu, com uma população em avanço sobre nós.
Inglaterra Revisitada