«Museu das Descobertas». A designação é obviamente simplória. Não pelas razões que aduzem aqueles que sacrificam ao politicamente correcto, como pela pobreza do conceito para caracterizar um complexo movimento político, social, económico, cultural, religioso, científico por detrás da expansão e dos descobrimentos portugueses. A ideia, aliás, inscrita em programa eleitoral, tem todos os contornos dum típico coelho tirado da cartola da politquice barata, para efeitos de pirotecnia de campanha, sem cuidar do como e do porquê.
Costumo dizer que graças aos Descobrimentos e à Expansão, os portugueses garantiram a sua presença na história da Humanidade; somos uma espécie de fenícios dos tempos modernos, quando poderíamos ficar-nos pela dimensão duns quaisquer túrdulos da cultura castreja... Não vou, porém, falar da pertinência ou da oportunidade da criação de uma grande museu dos descobrimentos, quando o património cultural do país está na miséria que se sabe. Para já, interessa-me a questão levantada em torno do nome.
A discussão e o debate de ideias é sempre excelente, porém, quando, a coberto duma cientificidade de analfabetos se pretende distorcer a História, não me apetece ter grande contemplações para um
texto indigente, assinado por algumas figuras estimáveis. Felizmente, não tenho vocação de discípulo nem gosto de rebanhos. E, nessa perspectiva, também não me deixarei condicionar pelos arremedos autoritários, para não escrever 'totalitários', que lançam o labéu de fascistas ou fascizantes àqueles que deploram um embuste e um esquema mental que dá origem a idiotices como
esta.
Em primeiro lugar, a haver um museu com esta temática, o seu interesse para a comunidade só se justifica se partir duma perspectiva portuguesa; caso contrário, é melhor tratar do merchadising com os americanos e pô-los a fazer uma espécie de Disneylândia inspirada nos tempos do Gama e do Albuquerque. Por que diabo um museu português não deveria ter uma perspectiva portuguesa, integrando numa visão planetária, essa mesma que contribuíram decisivamente para alcançar, gostemos ou não? Claro que uma abordagem objectiva e sem patriotinheirices, sem escamotear o horror, a pilhagem, o domínio, o tráfico de escravos -- actividade que nos distinguiu durante demasiado tempo. De resto, como é que depois de Vitorino Magalhães Godinho, de Luís de Albuquerque, de tantos historiadores, portugueses e estrangeiros, que se debruçaram sobre aqueles séculos de história portuguesa, se admite que doutra forma pudesse ser? Falamos de museu ou dum
evento, entre os jogos-sem-fronteiras e o festival-da-canção?...
Ao contrário dos que escrevem os guardi
ões do moralismo anacrónico, a palavra não "cristaliza uma incorrecção histórica", pelo contrário. Houve, de facto, descoberta de territórios desabitados, desconhecidos de toda a Humanidade; tal como aconteceu o desvendar de rotas nunca por outros singradas;
e o evidente descobrimento de um mundo mais amplo que rompia com uma percepção que remontava à Antiguidade. Se
isto não é
descobrimento é o quê, então? E não deve este pioneirismo ser conhecido da comunidade portuguesa, sem a basófia antihistórica dos manuais da República e do Estado Novo?
É verdade que os outros povos não foram "descobertos", por isso se recorre, com razão, ao acoplamento da palavra "
Expansão". Ao contrário dos "
Descobrimentos", que remontam à Idade Média (as "Navegações", em bom rigor, recuam ao Neolítico...), o movimento expansionista e imperial português tem uma data delimitada e uma ocorrência definida: 1415, ano da conquista de Ceuta (e mesmo assim com algumas raízes político-económicas que não há espaço para abordar). A partir daqui Expansão e Descobrimentos são duas faces duma mesma moeda. E nela está inscrita o colonialismo português, particularmente vil, cuja libertação se deveu aos povos colonizados e aos seus movimentos de libertação: PAIGC, MPLA, FRELIMO, movimentos tão de libertação que até contribuíram decisivamente para libertar os portugueses.
Obliterar a noção de descoberta não é só uma parvoíce, como a tentativa, de resto inglória, de rasurar da História um processo que nos identifica como comunidade, com um lastro cultural avassalador (como se lê e vê e sente
nestes versos da Sophia de Mello Breyner Andresen e do António Pedro) ; uma espécie de #metoo da historiografia, em nome dos bons sentimentos. Ora, se a exclusividade dos bons sentimentos em arte borram a pintura, na historiografia ainda fazem pior, chama-se vigarice.