«Dias depois do enterro, apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o "Joli". A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido de um dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80)
«Luciano tinha-se deixado ficar à janela e contemplava, com alvoroço e flama estranha no olhar, a basílica que se erguia já doirada nos cumes pelo sol matutino. Vista do ramo transversal do claustro e no prolongamento do eixo da igreja, a ábside desenrolava em frente do espectador a sua elegante redondeza, e o frémito alado dos arcobotantes, com a ossatura frágil em pleno equilíbrio aéreo, dava-lhe tal ar de vida palpitante, que era de recear que a uma carícia mais quente do sol filtrando-se nos poros da pedra, a catedral abrisse as asas e erguesse o largo voo nessa lúcida manhã de tempo claro.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)
«"Aqui se erguerá uma casa para pobres da vida pobre, quando Deus for servido!" -- dissera ele. E daí o ficar a água da nascente de muita virtude nas moléstias da tripa, e o lauto senhor Pero Gil, pelo ano de 1443, com autoridade da Sé Apostólica, lançar os fundamentos daquela casa, que tanto edificou a santa Ordem da Penitência em varões pios e de saber.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918)
1 comentário:
«Andando, andando, à Cruz do Caetano, onde o Zé Pólito assassinou o Pata-Larga, vieram-lhe novos engulhos de timorato. A cruzinha, de pau a esborolar e a destingir por sóis e por chuvas, espetada de riba do penedal num buraco aberto a cinzel, parecia com os braços virados para ele tolher-lhe o caminho. Ou então era a representação do Pata-Larga, ali estendido de papo para o ar durante um dia e uma noite num alagoeiro de sangue, atulhado de formigas e de varejas, com a metola amolgada como a tampa dum baú de folha, que o assombrava. E, anojado com tão ruim lembrança, o Brás foi encomendando o defunto a santos e santas da corte celestial, porque, ainda que borrachão e mal-educado, não roubava, nem fazia mal a uma mosca, e era cidadão no pagar.»
Aquilino Ribeiro, "Terras do Demo". Romance. (1919)
Enviar um comentário