«No meu outono, agreste, / invento-te.»
«Solidão», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
conservador-libertário, uns dias liberal, outros reaccionário. um blogue preguiçoso desde 25 de Março de 2005
«No meu outono, agreste, / invento-te.»
«Solidão», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
««Aquele veludo de musgo às camadas de cor carregada mostrava-se agora mais espaçado em débeis tentáculos acastanhados como filetes de caracóis. Quando se topava uma abertura na parede, as exclamações irrompiam: Upah! Uih! Deito os bofes pela boca! Valha-me minha Santa lá no Céu. Abrenúncio, Virgem Maria! Até parece promessa ao São Semedo. Vamos, mais um pouco. É chegar ao patamar, às alturas.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Começavam então a chegar à tasca os guardas encanecidos no mester de receber enterros, graves nos seus uniformes fatídicos, os coveiros angulosos e vesgos lançando de si um fétido deletério; e cada um, dando boas noites à tia Lauriana, ia sentar-se à banca, no seu lugar, chupando pontas de cigarro e pedindo decilitros.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«A cauda ergueu-se num ápice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabeça levantou-se também e nela luziram os olhitos até aí amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava cheio de tentações, de paragens obrigatórias, estabelecidas por todos os cães que passaram ali desde que Manteigas existia, desde há muitos séculos.» Ferreira de Castro, A Lã e a Neve (1947)
Fialho de Almeida: «Na agitação das populaças que respiram alto, pela noite, entre as flambagens do gás, nos gemidos que os arvoredos soltam, azorragados do nordeste, ou quando a vaga regouga, espadanando contra os granitos da riba, a mesma evocação misteriosa, confusa, mal sonhada, nos surpreende, de vozes que já antes tínhamos ouvido, e agora parecem despertar dentro de nós saudades de idílios extintos e de felicidades mortas em plena adolescência.» O País das Uvas (1893) -- «Pelos campos» § Frei João Álvares aos monges do Paço de Sousa, 24-XII-1467: .../... «Mas empero eu verdadeiramente conheço que de ignorância e de negligência me nom posso escusar porque, nom embargando que eu muito mais pudera fazer do que fiz,, nom sei como pudera ir com elo ata a fim. E às vezes melhor é de não começar homem a fazer alguas cousas quando nom vê como se possam acabar.» Andrée Rocha, A Epistolografias em Portugal (1965) § António de Cértima: .../... «E é aqui, certamente, que tudo o que há de cerebral, de luminoso e de fútil, na permanência dos seus valores e das suas sugestões, se encontra bem marcado, excitante e inamovível.» .../... Doce França (1963) § Machado de Assis: «A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma cousa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair.» Histórias sem Data (1884) - «Cantiga de esponsais»
«Contentes no seu charco, carregando nos erres, / rãs aos milhares erguem louvores / ao criador das libelinhas que voam por perto»
«As rãs e as libelinhas», Caderneta de Lembranças (2021)
Desta vez, para meu pesar, o voto não foi suficiente útil para ajudar a eleger António Filipe.
Quanto ao resto: vitória da AD: pode chefiar-se um governo e receber uma avenças por fora, ao domicílio familiar. Como se vê, é o um assunto que não interessa a ninguém, a maioria dos portugueses faria o mesmo, se pudesse.
PS: Pedro Nuno Santos foi vendido como radical... e os portugueses, manhosos como são, não gostam disso. É verdade que também há uma aversão bastante justificada ao partido do catastrófico António Costa, uma enguia de manobrismo. Quero lá saber do PS, ainda para mais gafado do tifo woke...
Chega: afinal, um partido bem português. Antes das eleições do ano passado, não acreditava que chegasse aos 10%; hoje já não digo nada. Pode ter-se um mentiroso e um demagogo como líder, que os eleitores estão-se nas tintas. "Coragem, portugueses," disse o Almada, que continuava...
BE e Livre: a bancada woke perde um deputado no conjunto. É bem.
IL: nada a acrescentar.
PCP: perde um deputado, e dos melhores.
PAN: também são terrivelmente woke, mas no meio desta hecatombe até gostei que Inês Sousa Real ficasse em Parlamento; dá-lhe um outro ar.
JPP: não sei bem o que é, mas Filipe Sousa tem um discurso civilizado, o que quer que isto signifique.
E pronto.
«I. Conta Lázaro a sua vida e de quem era filho. Pois saiba vossa mercê, antes de mais nada, que me chamam Lázaro de Tormes, que sou filho de Tomé González e de Antona Pérez, naturais da província de Salamanca, aldeia de Tejares. Nasci no rio Tormes, e daí me veio o apelido. E aqui tem.» Anónimo, Lazarilho de Tormes (1554) - trad. Ricardo Alberty § «Picasso era um homem baixo que tinha uma maneira cómica de andar, pondo um pé adiante do outro atá dar aquilo a que se chama "passos". Rimo-nos com as suas ideias deliciosas, mas pelos finais dos anos 30, com o fascismo no auge, havia muito poucas coisas de que nos ríssemos.» Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura - «Memórias dos Anos Vinte» - trad. Jorge Leitão Ramos § «Nessa altura gostava muito da cozinha catalã; mas desde esse dia começaram a desfazer-se-me as gengivas e a apodrecer os dentes. Os médicos, unânimemente, declararam que o meu mal não tinha cura. Mandei deitar as cartas. Foi então que o curandeiro me receitou o regime de nuvens.» Félix Cucurull, Antologia do Conto Moderno - «Carta de despedida» - trad. Manuel de Seabra § «Na cela há cinco polícias fortes e um preso. Os polícias dispõem de meios que tudo alcançam e sabem que o obrigarão a confessar. / Como feras esfaimadas, atiram-se ao preso, às cegas, numa fúria. No fundo sentem-se mal, porque a cela é demasiado pequena para tanta gente. Além disso, os fatos pesados são um estorvo e os colarinhos duros incomodam terrivelmente.» Michael Gold, Para a Frente América... - «Cárcere» - trad. Manuel do Nascimento
Como sempre, continuo a votar onde e em quem me apetece; como no ano passado, volto a votar nos mesmos e pela mesmíssimas razões. São elas:
1. A posição do PCP em relação à Guerra da Ucrânia, entre a Rússia e (parece que ainda) os Estados Unidos. Posição moderadíssima, aliás, que tem a grande virtude de não tolerar que Portugal seja nesta questão mais um verbo de encher, ao contrário dos outros partidos todos com assento no Parlamento, do do "nacionalista" Ventura ao do sofista Tavares.
2. Gosto de votar e que o meu possa ter influência, o que várias vezes não sucede. Há uma ano votei na CDU para ajudar a eleger António Filipe, número dois por Lisboa. O último ano mostrou como a Assembleia da República se degradou com a eleição dos candidatos do Chega. Nunca como agora o Parlamento precisou tanto de bons parlamentares. E António Filipe é dos melhores.
E é isto
«velha pecha esta minha de mergulhar / nos confins do teu nome para te procurar»
«Na esquina do vento», Sonetos de Amor Ilhéu (1992)
Se há nação e estado que nunca deveria ser agente, por acção ou omissão, do que se está a passar na faixa de Gaza (nem nos colonatos da Cisjordânia ocupada, já agora), esse seria o povo judeu e o estado israelita, com o perpetrar de um genocídio nas nossas barbas. Nunca como agora o velho cartoon do António foi tão actual, tão verdadeiro, e infelizmente também, cada vez menos exagerado, na sua função satírica.
(Infelizmente palavras como genocídio estão cada vez mais banalizadas, num tempo em que elas, as palavras, valem cada vez menos. Se chamamos genocida a um ladrão pindérico como o Bolsonaro, como designaremos agora Netanyahu: alguidar?, carburador?, pastel de nata?...)
A partir de agora a bandeira da Palestina vai estar na coluna direita. Perdi por Israel todo o respeito e admiração que em tempos tive. Restam os kibutz, as pequenas comunas que já existiam antes da criação do estado e que continuarão a existir depois dele.
Não se trata com isto, como sabem os que por aqui passam, de desculpar e muito menos "absolver" a barbárie do Hamas -- grupo armado independentista islâmico, e não terrorista na sua essência, mesmo que praticando abjectas acções terroristas, como o são quaisquer ataques a civis; mas o a abjecção do governo israelita traduz-se na multiplicação do terror infligido pelo Hamas. Se fosse a vingança bíblica que queriam, há muito que estavam vingados. Mas é mais que isso: é genocídio praticado por um povo que foi sempre perseguido, de Nabucodonosor a Hitler.
«Tão brandamente os ventos os levavam / Como quem o Céu tinha por amigo;»
Os Lusíadas, I,43 (1572)
«Lá dentro, na fofa viuvez de um canapé acolchoado, um Mestre de Rythmos me sondava os músculos e as articulações, na esperança de poder contribuir para o meu futuro alindamento. Lembro-me de que um moço do talho chamado Isaac fazia sempre cócegas à mesma criada e no mesmo sítio. Lembro-me ainda de que, quando a noite caía e a rua se tornava numa tira preta colada aos vidros, eu ia sentar-me na casa de banho para ouvir pingar as torneiras, pois tinha medo do silêncio.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«O clarão, dos altos daquele encafuamento, deixava-se ganhar, degrau a degrau, e fazia descobrir as tonalidades mais verdes de musgos escondidos e de andrajosos líquenes de fraca reprodução. Tinham passado já o suar das paredes que cá em baixo tanto fazia admirar os visitantes.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Em anoitecendo, tudo aquilo era duma contemplação lúgubre e misteriosa, em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na treva, no fundo dos ciprestes e dos túmulos, diante de um santuário deserto, onde o Cristo, do alto, olhava vagamente o guarda-vento.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«É a vontade sensível de viver / Mergulhado nos mapas deslumbrantes / Da memória, nas cartas do futuro / Incompleto de todos os instantes.»
«A vida íntima», Sob Este Título (2017)
Chega um tipo ao restaurante, a televisão sintonizada na cnn, e vê o pobre general Carlos Branco a pisar um daqueles filetes que está na base do ecrã, destacando as últimas (ou penúltimas) parvoíces de desinformação. Hoje era qualquer coisa como isto: Zelensky delineia plano de paz para a reunião na Turquia; Zelensky só aceita reunir-se com Putin, etc....
Não é cómico? Um tipo que vai ao país dos otomanos por uma orelha e pela mão do Trump, e estas pulgas da cnn-Portugal (certamente orientadas pela casa-mãe) a aldrabarem os feirantes de Espinho, dizendo-lhes que Zelensky repara, Zelensky substitui; Zelensky delineia, Zelensky exige.
Já não me sorria tanto desde que uma barbie empoderada (é português isto?) parecia a caminho do orgasmo sempre que pronunciava o nome do grande líder; ou uma outra, velha platinada, vinda ao ecrã gabar o tónus olímpico do Biden destroço.
«Das sombras, das solidões / dos recantos recônditos / da noite e da chuva / saem homens.»
«Dawn», O País dos Outros (1959)
Diz este estúpido que "a chave é ter tropas na Ucrânia". É um imbecil que nem sequer tem filhos para mandar para lá, acirrado por os russos estarem a tramá-lo em África. Isto daria pano para muita conversa. O que espero é que os que agora estão com sorrisinhos eleitorais, em especial Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos, sejam políticos portugueses e não nos atrelem a esta criatura. Devo dizer, aliás, que tanto Montenegro como Rangel, para surpresa minha, foram muito menos infelizes nas suas declarações enquanto governantes do que o infelicíssimo Costa e ministro -- não sei se estão recordados do catastrófico Costa, recompensado pela sua miséria política com um posto de corta-fitas na UE. Aqueles tinham ao menos o cuidado da ponderação mínima e de dizer que a acção do estado português decorrerá sempre sob a égide da ONU e no respeito pelo Direito Internacional. Veremos se é só conversa.
«A literatura é o subúrbio da poesia, / concordámos, sem muito esforço, por esses dias;»
«Cartas - 1. Para o Manuel Afonso Costa», O que Vai Acontecer? (1997)
«Vinham ao longe / Em conversas vagas / Na tarde baixa ressumando dobres.»
«Contratados», Fuga (1960)
Como toda a gente, assim que ouvi o nome do novo papa, Leão XIV, liguei-o ao anterior Leão, o da doutrina social da Igreja e da encíclica Rerum Novarum. Qualquer que seja a direcção que venha a tomar, certamente humanista, o nome indicia que o agora pontífice não vai ficar parado. E se há coisa que este mundo sujo precisa é de grandes figuras éticas. O Papa além de ser o chefe espiritual do catolicismo, é um chefe de estado, um líder político, goste-se ou não -- como de resto o é também o Dalai Lama, outra figura ética e política, enquanto monarca apeado no Tibete.
Sempre me irritou esta preguicite de cortarem o nome às pessoas. Foi mais um mau hábito que caiu no goto, não se percebe bem porquê. Agora, por causa da eleição do novo papa, a toda a hora os me(r)dia nacionais convocam o nome do cardeal José Tolentino Mendonça, chamando-lhe D. Tolentino... Se o homem se apresenta e assina com o nome próprio, a referência correcta será sempre D. José T. M. Vivemos imersos numa tosca porcaria.
«Lá pela noite morta, / Passaram salteadores à minha porta.»
«Canção de guerra», As Encruzilhadas de Deus (1936)
Raul Brandão: «O casebre não existe -- as paredes não têm limites, na escuridão remexem seres que esperam que se realize um sonho impossível no mundo. / O Fortunato que nunca comeu à sua vontade e que trabalha até à morte, a velha que não fala e nunca se queixou, a Rosa e o ladrão que anda a monte, o criado que os serve há tantos anos sem receber soldada, ouvem o Manco e deixam apagar o lume reduzido à ponta dum cigarro.» O Pobre de Pedir (póst., 1931) § Machado de Assis: «Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada. / E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779.» Histórias sem Data (1884) -- «Cantiga de esponsais». § Fialho de Almeida: «Hão-de ter reparado que certas coisas têm fisionomias humanas conhecidas de nós, o traço dalguém que amámos, duma pessoa que nos impressionou em tal parte, ou por um qualquer detalhe, pequenino que fosse. Às vezes é uma nuvem que, por entre uns esboços de cara, guarda por momentos o doce sorriso de nossa irmã. Às vezes é uma flor, a do pilriteiro, que tem no desenho do cálice o modelo frágil da pobre criaturinha loura que morreu tísica ao escrever-nos a primeira carta.» O País das Uvas (1893) -- «Pelos campos» § Augusto Casimiro: «Há crimes que invocam o Amor da Pátria para se realizar. Há violências que se dizem por ele exigidas. Mentiras que dele querem viver e da sua força.» O Livro dos Cavaleiros (1922) § António de Cértima: .../... «E é entre estes dois pontos terminais da mais bela artéria urbanística do mundo que me parece dever fixar-se a verdadeira representação psico-fisiográfica de Paris -- que alguns pretendem deslocar para o território intelectual da Sorbonne, outros para a arte do Louvre, e ainda outros (ou outras) para os salões de Dior e Jean Dessès, na convicção de que só a inventiva dos grandes costureiros saberá definir perante o universo o poder criador da cidade.» .../... [14.VIII.1961], Doce França (1963) § Frei João Álvares ao monges do Paço de Sousa, 24-XII-1467: .../... «E assi de vós outros que vos deve nembrar como vos destes e oferecestes e consagrastes a Deus per vossos votos e vossa própria vontade, ca a mim não me prometestes nenhuma cousa, nem eu vos nom demando nem requeiro al senom o que deveis de pagar a Deus que o entregueis e deis a mim, que som seu procurador e mordomo que ele escolheu e me chamou à luz deste mundo do ventre da minha mãe, e me ungiu com o óleo da sua misericórdia e me pôs neste lugar antre vós, feito padre e abade, per a qual dignidade e ofício vós me nom elegestes nem me escolhestes, mas eu vos elegi e escolhi. E de como vos mantive e governei esse tempo que convosco estou, vós o sabeis e podeis delo dar testemunho.» .../... in André Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965/85)
«2- No dia a seguir àquele em que comecei a usar risca ao lado fui transportado para uma habitação na berma da cidade. Pela poeirenta rua deslizavam carros, volumes, carteiros e toda a sorte de animais. Como um rio, o barulho do que na rua decorria se raspava de encontro aos muros da que, agora, era a minha casa.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«Na lama constante do caminho, eram profundos os sulcos que as seges de enterro deixavam até à porta do cemitério, escancarada sempre, como a goela dum plesiossauro faminto.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«-- Subir é o caminho para os céus -- dizia o caseiro. -- Há dias que venho cá duas e três vezes quando não quatro e cinco. Enfim, são sortes. Tenho o coração que nem um garrano. Vamos, falta pouco. Só quinze degraus e depois é a terra toda e o rio de boca aberta para nós.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«entrar em casa / é pensar a mulher / na limpidez absoluta das sílabas / quando ainda se ignora a morte / e tudo pode ser dito»
Nascente da Sede (2000)
«A espaços, iluminam-se os andares, / E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos / Alastram em lençol os seus reflexos brancos;»
«Noite Fechada - O Sentimento dum Ocidental II», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)
Em pleno dia, numa paragem de autocarro apinhada, uma velha tem as duas mãos postas à cabeça, como que a arrancar o cabelo curto. (Visto num telejornal.)
«A correr atrás da carruagem / um eco de patas a percorrer a melancolia / de as rodas serem mais velozes»
«A correr atrás da carruagem», O Livro do Cão (1991)
António Cândido Franco: «Havia nele qualquer coisa dum Cristo literário, disposto a sacrificar a vida por todos, e dum Saint-Just anónimo, que com indefectível pureza não se perdoava a si e aos outros a menor cedência.» (sobre Luiz Pacheco)
António Carlos Cortez: «Explorando os ambientes e cambiantes de São Salvador da Bahia, Paulo Teixeira sabe bem o que é literatura: povo, oralidade, realismo levado até ao osso; mas sem rasgar à força a arte da elocução, sem artificializar.» (sobre o romance de Paulo Teixeira, Não Digas o que a Baiana Tem)
Carlos Vale Ferraz: «Como escritor sou um dano colateral do 25 de Novembro de 1975.» («Autobiografia»)
Guilherme d'Oliveira Martins: «O Papa Francisco lembrava Gustav Mahler, a defender que a fidelidade à tradição não consistiria em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo.»
Maria Fernanda de Abreu: «[...] creio bem que a grande qualidade de Vargas Llosa é herdeira do melhor romance oitocentista, que ele actualiza, reformulando também a herança da literatura indigenista, para contar histórias (quase sempre) do seu tempo e da sua terra.»
Paulo Teixeira: «Somos todos personagens secundárias.» (entrevista a Luís Ricardo Duarte)
JL #1424 -30.4.2025
«Sempre supus que antes de desaparecer totalmente como personagem terráquea ainda estaria a tempo de provar os teus lábios. Não sei se isso me daria algum alimento, mas pelo menos produzir-me-ia uma espécie de cócegas estranhas muito confortáveis, no sangue. Julgo isso porque aos vinte anos beijei uma rapariga: era feita dos materiais que se costumam usar correntemente. Estiraçámo-nos atrás duns arbustos.» Félix Cucurrull, Antologia do Conto Moderno -- «Carta de despedida» -- trad. Manuel de Seabra § «Picasso estava a começar o que mais tarde seria conhecido como o seu "período azul", mas Gertrude Stein e eu estivemos a tomar café com ele e por isso ele começou-o dez minutos depois. Durou quatro anos e portanto os dez minutos não tiveram grande importância.» Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) -- «Memórias do Anos Vinte» -- trad. Jorge Leitão Ramos § «"Escritura lavrada em Pampérigouste, no cartório do notário Honorat, na presença de Francet Mamaï, tocador de pífaro, e de Loiset, por alcunha o Quique, cruciferário dos penitentes brancos; / "Que assinaram com as partes e com o notário, depois de lida...» Alphonse Daudet, Cartas do Meu Moinho (1869» -- «Prólogo» - trad. Fernanda Pinto Rodrigues
«Vinte e tantos anos de idade / e outros tantos de medo.»
«A quinta década», O País dos Outros (1959)
1. Segundo o comentariado de meia-tigela, indignados com a mudança de atitude da nova administração Trump, de alegada aproximação das partes, os Estados Unidos não seriam mediadores isentos pela forma como pressionavam a Ucrânia em favor da Rússia.
2. Vários daqueles são comentadores de meia-tigela porque querem e não se importam de fazer figuras tristes, até porque sabem que a maior parte do público não percebe de geopolítica.
3. Acontece que, como é óbvio, os Estados Unidos não são mediadores de coisa nenhuma, mas parte, a mão por detrás do arbusto, como diria José Sócrates a outro propósito, que realmente manipula o Zelensky. Mais ainda, como já aqui escrevi: a mudança de estratégia dos EUA em relação à Ucrânia é fruto do reconhecimento da derrota da jogada da anterior administração americana.
4. Se Putin joga xadrez, Trump é um celebrado vendedor de carros usados. O acordo que foi assinado sobre as terras raras, a efectivar-se, representa uma vitória dos Estados Unidos em relação à Rússia, mas acima de tudo a débâcle da Ucrânia, pois se os russos não abandonarão os territórios ocupaqdos, os americanos passarão, sem disparar um tiro, a tomar conta do que resta da Ucrânia, com a suprema lata trumpista de justificarem a extorsão como "compensação" pelo "apoio" à Ucrânia na guerra que eles próprios, americanos, provocaram com a Rússia. Estou curioso para ver o que se passará a seguir.
«Reunido o Conselho de Família, verificou-se (e registou-se em acta) a ausência do meu tio Augusto, que não pôde comparecer, ocupado, como estava, a violentar a filha menos vesga do jardineiro. Decidiu-se que eu não seria imediatamente recrutado: a debilidade era o meu forte. Foi-me oferecido um gato de peluche e, como nesse dia perfiz cinco anos, assim terminou a minha recuada infância.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«Daí à torreta eram ainda uns trinta degraus, dos mais altos e pesados, daqueles que, sem se querer, fazem pregas indiscretas na barriga. / A bicha dentro do esófago da Torre, contava para si os martírios passados naquela ascensão; uns davam ah has de alívio, outros comparavam com a escadaria do Bom Jesus do Monte, com a Torre dos Clérigos e ainda recordavam a subida ao Santuário de Lamego.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que fosse como uma fachada opulenta da gélida cidade de cadáveres; na planura que medeia entre o cemitério e as terras, o terreno via-se revolto; os carros de mão jaziam esquecidos; os montes de pedras miúdas e de argamassas antigas tornavam penoso o trânsito.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«Quem noites só conheceu, / Não pode cantar auroras.»
Trocando Olhares / Antologia Poética
«Longe, mentalmente, / e ainda com maior leveza / do que a das águas da maré, / imprimo, em mim, as rugas do teu rosto.»
«Aprendizagem», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
«e tu começavas caminhando, e todo o teu corpo se enchia de pequenos sons musicais, e quando paravas eu debruçava-me sobre a tua pele e ouvia a respiração da terra»
Sem Outra Protecção Contra a Noite (1980)
«Canto porque as palavras / passaram cegas à espera / da luz da minha canção.»
«Sim», 77 Poemas (1955)
«Não que o meu sorriso fosse esgar, ou o meu gargalhar inexistente; mas uma certa palidez no semblante geral denunciava (ao que parece) más possibilidades. Foi nessa época que se pôs o problema de eu ser ou não envolvido a fundo nas malhas da F.R.I.P.M.S. (Fundação do Recrutamento Infantil Pró Movimento Selecta). Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao cemitério dos Prazeres, e era frequentada pela gente do sítio, especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam os seus trabalhos e entram na cidade, em ruído.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«-- Pode-se ir lá acima? / -- É à vontade. / Degrau a degrau, de cabeça marrada aos pés, os visitantes trepavam lentamente. Ultrapassada a casa de defesa, resto de quarto só com paredes e bancos ao pé de velhas seteiras, o público respirava satisfeito. A cisterna então não deixava ver bem os fundos, espelhava de mais.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Só o lume duma traineirinha / é pirilampo na noite.»
«Nocturno», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
«A Itália fez-me lembrar bastante Chicago, sobretudo Veneza, já que ambas as cidades têm canais e as ruas estão cheias de estátuas e de catedrais dos maiores escultores do Renascimento. / Naquele mês fomos ao atelier de Picasso em Arles, que então se chamava Ruão ou Zurique, até que os franceses a rebaptizaram em 1589, sob o domínio de Luís, o Vago. (Luís foi um rei bastardo do século XVI que era mauzinho pata toda a gente.) Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) - trad. Jorge Leitão Ramos § «Se te houvesse convertido num fantasma, talvez um dia qualquer nos encontrássemos juntos para além do satélite artificial que os americanos querem atirar para o espaço: seríamos como dois elnçóis flutuando entre a terra e a lua; talvez uma noite qualquer provocássemos um eclipse.» Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno - trad. Manuel de Seabra § «"Esta venda é feita em bloco e mediante o preço convencionado, que o Sr. Daudet, poeta, apresentou e depositou neste cartório em moeda corrente, o qual preço foi em seguida contado e levantado pelo Sr. Mitiflo, tudo na presença do notário e das testemunhas abaixo assinadas, do que se dá quitação sob reserva.» Alphonse Daudet, Cartas do Meu Moinho (1869) - «Prólogo» - trad. Fernanda Pinto Rodrigues
«Porque não vens, tu que não chegas, / Meu terrível fantasma real e vago? / E sonho... sim!, que vens, sim!, que te entregas / Na pobre carne que pago.»
«Poema da Carne-Espírito», As Encruzilhadas de Deus (1936)
António de Cértima: [14.8.1961] «Subo um pouco mais e, da planura verdejante do Rond Point, os olhos divertem-se a seguir o movimento da multidão zebrada de cores que sobe e desce a Avenida, e a aprisioná-la lá em cima, num cartaz modernista, junto do Arco glorioso que nos fala das preocupações arquitecturais e do instinto das batalhas do vencedor de Arcole e Austerlitz.» Doce França (1963) § Fialho de Almeida: «Porque, seriamente, nós volvemos de novo à flor desta sagrada terra que nos devora, uma vez, muitas vezes, em regiões várias, climas, vários e disfarçados consoante o humorismo da química que nos manipula.» «Pelos campos», O País das Uvas (1893) § Machado de Assis: «Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: -- a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.» «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884) § José Bacelar: «Gritar, vituperar, amaldiçoar -- está bem ainda. Mas ai daquele que não faz como os outros -- ai daquele que friamente levanta um pouco o véu.» Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana (1936) § Eugénio de Andrade a Jorge de Sena (1955): .../... «Bem vê, portanto, que a nossa camaradagem e amizade sai intacta do prémio, como não podia deixar de ser. / Diga-me quando puder qualquer coisa sobre a antologia do Pascoaes. Não voltou a pegar-lhe? Era bonito aparecermos com isso no próximo inverno. Quando passar pelo Porto, previna-me. Gostava de estar consigo. / lembranças à Mécia e o melhor abraço do seu / Eugénio.» Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena, ed. António Oliveira, 2015 § Raul Brandão: «A terra é dos probes -- teima ele. / Cheira a monte e arfa no escuro uma coisa sagrada -- o sonho dos pobres. As figuras da realidade desapareceram, outras figuras estão presentes como sombras carcomidas e que chegam ao céu. Um momento a brasa ilumina as mãos da senhora Emília que parecem de morta.» O Pobre de Pedir (póst., 1931)
«por vezes / as aves do litoral, em largos círculos à volta dos navios, traziam / notícias do norte que eu abandonara -- / campos de silêncio adormecidos pelos séculos, vinhas e árvores, / atalhos onde pela noite se reuniam as feiticeiras da ilha;»
«Morituri», Deste Lado Onde (1976)
««Então, buscando o menos possível mudar-lhe a fisionomia, o antigo ar interior e íntimo (Na cantoneira onde a tia Mariana guardava a marmelada, nem tocar...), chamara um mestre-de-obras e assenhoreara-se de todo o edifício, aproveitando-o conforme a ideia que de longe lhe trabalhava no sentimento.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«1. Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me especializei na arte de estender os braços. Dia após dia os mais laboriosos, cansativos forcejos projectavam meus membros anteriores em-frentemente. E isto assim até que perdi as mãos de vista.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«Contra o que seria plausível esperar neste desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fosse o cavaleiro.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
«Pernoitou nos arrabaldes de uma cidade estranha / e reviu sem gosto o princípio da matéria dada,»
«A Sede do Gado», O que Vai Acontecer? (1997)
Baptizado, educado na Igreja Católica, numa família que se dividia entre o ateísmo anticlerical e uma prática religiosa abaixo dos mínimos, por tradição, hábito e superstição, português e europeu, sou um ateu impregnado de cristianismo. Aliás, como qualquer um cujo coração está à Esquerda, a figura histórica de Jesus Cristo, a sua mensagem revolucionária, pregada ainda na Antiguidade, recorde-se, de que todos os homens são filhos de Deus e iguais na dignidade, só pode merecer a adesão de todos quantos atribuem a essa mesma dignidade um valor inegociável e sem cotação em bolsa.
O papa Francisco, Jorge Bergoglio, era desses. Por isso -- com as excepções do costume -- concitou não apenas o amor e a admiração dos seus fiéis, como de todos os homens de boa-vontade, qualquer que fosse a sua religião, ou não professassem credo algum, como é o meu caso.
Além disso, o seu humanismo e bom-senso, uma voz que se elevava sobre os guinchos das hienas da indústria bélica e os seus criados, na União Europeia e alhures, e sobre a indiferença que estes mesmos servos da UE já demonstraram ter diante do genocídio -- creio que só agora assumo esta palavra, e já vou muito atrasado -- dos palestinos e a condescendência para com os criminosos de guerra do governo de Tel-Aviv.
Como esquecer a ida a Lampedusa, no início do pontificado?; as palavras contundentes e cheias de indignação contra a "economia que mata"?; os latidos da Nato à porta da Rússia?; a vergonha excruciante de chefiar uma instituição religiosa com um histórico encobrimento de abusos sexuais generalizados que tornam uma parte da igreja num coio de crime e abjecção? A luta entre bem e mal trava-se também lá dentro. Francisco era do Bem, e só este é admissível.
Vai fazer imensa falta, e espero, que o próximo possa estar à altura do grande Francisco. Afinal, um papa continua a ser um líder político mundial e uma das consciências da humanidade.
«A rua é um largo claro / Onde as crianças brincam / Com os lábios ao fresco.»
«Angelus», Sob Este Título (2017)
«A casa, não. Fruída nos últimos anos a meias com o caseiro (para este a banda virada a nascente, e donde se alcançava o Penedo Grande, a cavaleiro do Monte dos Covos; para os patrões a oposta, com serventia própria e voltada para a mata) desde que resolvido o passo de vir ali enterrar-se vivo, Diogo Coutinho destinava ao caseiro que se passasse para os Nogais.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes. / Um, o mais moço e pela aparência o de mais grada posição social, era transportado num pouco escultural, mas possante muar, de inquietas orelhas, músculos de mármore e articulações fiéis; o outro seguia a pé, ao lado dele, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimária, cujos brios, além disso, excitava por estímulos menos brandos do que os de simples e nobre emulação.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
«A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação -- pensava Germana -- chegava a ser tão característico como uma originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em determinados povos.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954)
«Pois que é a aristocracia senão o degrau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia?» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954)
«Portão e caminho até ao terreiro, sob a latada, quisera o dono continuassem escalavrados como no tempo ido, em que só ali vinha, e nem sempre, quando era pelas vindimas e varejadas de castanhas, lá raro pela feitura do azeite.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«Vestígios de existência humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solidão.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
«-- Uma espécie de aristocracia ab imo. -- E Bernardo riu-se, cheio duma ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal, colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal de unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da obscuridade para a luz, disse ainda -- «Ab imo», da terra, pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal, e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954)
«Embora de teimoso castanho, abanados por entalões de carretos, chicoteados e entranhados por chuvas de invernos, os batentes do portão, lassos da corrosão das cunhas cinco dos seis chumbadouros, havia muito que não jogavam nos gonzos. Franqueados como abraços, o areão e o saibro dos enxurros caldeavam-nos à terra como se houvessem botado raízes, reverdecidos.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracíssima província começa já a ressentir-se, senão ainda nos vales e planuras, nos visos dos outeiros pelo menos, de sua irmã, a alpestre e severa Trás-os-Montes. / O sítio naquele ponto, tinha o aspecto solitário, melancólico e, nessa tarde, quase sinistro. Dali a qualquer povoação importante, e com nome em carta corográfica, estendiam-se milhas de poucos transitáveis caminhos.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
E só agora, pelo JL, dei pela morte de Fernando Martinho, com quem estive, em várias circunstâncias, nos últimos trinta ou mais anos, sempre por causa da poesia e dos seus poetas, que ele sabia como ninguém abrir à leitura e comunicá-la.
Durante uns breves dias fora e desconectado, a morte de Carlos Matos Gomes -- tantas vezes aqui chamado, em serviço público --, apanha-me como a pior notícia desta Páscoa, pelo inesperado e pela falta que fará na análise de um momento internacional em que a inteligência e a coragem estão em suspenso.
«Sonhei que Deus dava autógrafos / à saída do Céu»
«Provas da inexistência de Deus (por ele mesmo)», De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (2007)
«Preciso da tua lâmpada / para atravessar os dias»
Nascente da Sede (2000)
«Grinaldas foram as tripas do cão / antes de as nozes da ceia terem sido / uma madeira patética, leite de cabra a arder»
«O cão é o seu próprio pastor», O Livro do Cão (1991)
«Antes que o Inverno chegue / volto a ser cigarra. Canto.»
«Canto tardio», Marketing (1969)
«Andam sonhos cor do mar / Nas minhas quadras, imersos,»
«As quadras d'ele», Antologia Poética
Estamos num momento raro em que a realidade se altera diante dos nossos olhos e em que tudo pode estar em causa, incluindo as próprias Nato e União Europeia. Sobreviverão? Não sabemos. E se sim, de que forma, com que relevância?
O Conceito Estratégico de Defesa Nacional, cuja última revisão data de 2013, está datado e desactualizado. Mas há duas coisas que não mudam: a Geografia, mais ou menos desde a Pangeia -- estaremos sempre no extremo ocidental do continente euro-asiático, na Península Ibérica, virados para o Oceano Atlântico --; e a História, o que passou e nos deixou vínculos extra-europeus, sem os quais a nossa identidade não se completa. Eu sou mais português quando me relaciono com angolanos, brasileiros, moçambicanos, caboverdianos, etc. e Portugal, que afirmou a sua independência em 1128, e é estado, nação, língua, cultura -- e parece querer continuar a sê-lo -- é muito mais pequeno sem esse vínculos que se organizam em torno da CPLP. Esta é tão importante para nós quanto a União Europeia -- pois se há coisa que também somos -- muito antigos e decisivos na história do Velho Continente --, se há coisa que também somos e nunca deixaremos de ser, é europeus.
Mas não basta querer, é preciso saber e poder. Por isso, numa situação tão volátil e incerta, nestes debates deve ser perguntado aos líderes partidários de que modo concebem a independência de Portugal no actual quadro e que fazer no caso de uma desagregação das organizações que integramos, nomeadamente UE e Nato.
É evidente que o país tem problemas gravíssimos -- mas nenhum interpelará tanto o país como o que se pode estar a desenhar. Portugal tem interesses permanentes, entre a Europa e o Atlântico. O que têm os líderes políticos a dizer? E que perguntas têm os jornalistas a fazer? É o que veremos, a partir desta segunda-feira nos debates.
"A União Europeia perdeu a alma e o rumo» -- aqui.
(Frei João Álvares aos monges do Paço de Sousa, 1467) .../... «E esto podemos veer por exempro nas cousas naturais assi como é a cabeça, a qual, posto que seja a mais alta parte do corpo e a mais principal, nem pode porende estar sem o ofício e serviço dos outros nembros, e per essa mesma guisa os outros nossos nembros sem a sua cabeça se nom podem manter nem governar, assi que nem a cabeça aos nembros, nem os nembros à cabeça poderão dizer: "Eu poderei viver sem ti", porque será mintira, mas que um nom pode escusar o outro, como é verdade.» .../... in Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965)
Eric Hobsbawm, Tempos Interessantes -- Uma Vida no Século XX (2002) Trad. Miguel Serras Pereira, Porto, Campo das Letras, 2005
Não vi, nem me interessa ver, a entrevista de Boaventura Sousa Santos dada há dias na televisão; tenho lido nos jornais os ecos. Por vezes até concordo com alguns dos seus pontos de vista, mas trata-se de um guru, susceptível de adoração e adulação (e agora de execração) o que me provoca sempre urticária. Depois, é um inoculador do vírus woke aqui na parvónia. O que lhe tem acontecido -- acusações de assédio sexual, aproveitando-se do poder que detinha -- é simplesmente grotesco. E das duas, uma: ou o homem é um reles charlatão, que faz o contrário do que apregoa, ou é vítima de uma cabala e lavagens cerebrais em que ele era o sumo-sacerdote da seita. Não estou grandemente interessado no assunto.
Anteontem no Diário de Notícias, surgiram relatos de alegadas vítimas suas e do antropólogo Bruno Sena Martins. Se ambos forem inocentes, nada poderá reparar o dano. Mas não é a propósito disso que quero escrever, mas sobre o veneno inculcado por esta espécie de sacerdotisos. A certo passo, uma das eventuais vítimas referia-se aos seminários de Verão na Curia como (cito de memória) sessões de descolonização das mentes e da luta contra o fascismo, o capitalismo e o patriarcado. Não é de rir? Como se perde tempo e gasta dinheiro público com parvoíces. E depois queixam-se do Trump...
Também é particularmente cómico que Sena Martins, tendo revelado a prática de um ménage à trois consensual -- parabéns para ele --, seja citado num questionário de Proust do Público, segundo o qual, a qualidade que mais aprecia no homem e na mulher, seja (de memória, outra vez) qualquer coisa como o desprezo profundo por manifestações de masculinidade, ou coisa que o valha. Poderia ter falado em marialvismo, que é a masculinidade de grunho.
Nem de propósito, no DN de ontem, aproveitando o balança da tal série que anda nas bocas do mundo, "Adolescência", creio -- que tem que ver com patologias psíquicas e sociais -- surge com este título, entre aspas: "'A masculinidade mata os homens'", com perorações no interior de vários júliosmachadosvazes, assim, sem sequer direito ao adjectivo substantivado "tóxico".
Mais: apresenta-se o crime de violação como prática de masculinidade. Fiquei sem saber, pois, que raio é isso de masculinidade, mas sei que desvios sexuais como violação, pedofilia, entre outros, são manifestações doentias e patológicas da personalidade por via sexo, que merecem tratamento psiquiátrico e eventualmente internamento compulsivo. O que raio tem isso que ver com 'masculinidade'?
Mas nada desta terminologia é para levar a sério. Não passa de charlatanismo pseudo-científico de que se nutre uma boa parte das chamadas "ciências sociais", lixo académico, portanto, que não serve para nada, a não ser aos maluquinhos da ideologia de género -- o que quer que isso possa ser e a quem possa interessar que não sejam as criaturas que se chateiam que possa haver muita e boa relação homem-mulher a vários níveis, não tendo ele que ser um pé-de-salsa ou ela um estafermo. E normalmente chateiam-se porque não gostam de si próprias. A psicanálise costuma ser útil.
Talvez seja altura de dizer várias coisas -- ou até de repeti-las, como, por exemplo, que qualquer homem decente é feminista, qualquer homem que ama, gosta, aprecia mulheres, por tudo o que são e representam, qualquer homem que deseje uma mulher, é, tem de ser feminista -- se não for um traste --, e é claro que há muito traste por aí, aliás de ambos o s sexos; e é verdade que vimos de uma sociedade asquerosamente machista, e nela fomos educados. No entanto, lutar pela justiça, direitos humanos e igualdade na complementaridade entre homens e mulheres não é incompatível com a virilidade do homem e muito menos com a mais do que desejável feminilidade da mulher, para não falar da necessidade do próprio feminismo. Mas isso ficará para outra ocasião.
O TPI é uma farsa.
O Orbán é um farsolas, apesar de estar do lado certo.
O Netanyahu, um criminoso de guerra que deve ser capturado.
«-- Que estranhas e fantásticas derrotas, / Alguém batendo à porta, malogrou!»
«O que não aconteceu», Desaparecido (1935)
«Por que passou pelo bosque / tão amável perfeição, / se pelo bosque passava / apenas a solidão?»
«Ninfa», 77 Poemas (1955)
(para comentar e tecer considerações a propósito mais tarde)
«Amor da pátria é, para quem nele vive, o regaço materno em que todas as diferenciações se conformam e harmonizam, o regaço onde se preparam, através dos heróis, dos mártires, das multidões anónimas, as conquistas que aumentam a liberdade e a consciência do mundo.»
Augusto Casimiro, O Livro dos Cavaleiros (1922)
«Acima do portão, na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse nos lutos, ainda lá se lia uma data, 1654, avivada pelo caseiro, por mimo, no tempo da poda, a riscos de caco.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947) «-- Há uma data na varanda desta sala -- disse Germana -- que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954) «Ao cair de uma tarde de Dezembro, de sincero e genuíno Dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta dr um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretensiosamente gozava das honras de estrada, à falta de competidora, em que melhor coubessem.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
...por isso, intervir desta forma na política, inviabilizando a candidatura de quem vai à frente nas sondagens é mesmo um tiro no sistema liberal que muitos dizem defender, mas só quando não sai dos carris. Resultado? Crise política e moral ainda mais devastadora, transformação de Le Pen em mártir pelos meretíssimos juízes (ninguém está acima da justiça, mas Le Pen parece estar abaixo dela), aumento exponencial do voto de protesto, pró e anti-Le Pen, centro político já desacreditado em derrocada.
A extrema-direita francesa é particularmente abjecta, apesar da lavagem de cara operada pela líder, mas se acham que é assim que vão lá, com sarkozys, hollandes e macrons -- ou com mélenchons, já agora...
«foste dando sinais de algum cansaço / nas palavras não -- estavam sempre à beira / de se erguerem com asas de estilhaço / e varrida ficava toda a feira.»
«Tuas palavras de aço», Sonetos de Amor Ilhéu (1994)
«E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, / Correndo com firmeza, assomam as varinas. // Vêm sacudindo as ancas opulentas! / Seus troncos varonis recordam-me pilastras; / E algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas.»
«O sentimento dum ocidental -- I. Ave-Marias», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)
Melhor dizendo, para a sua intensificação -- ou seja:
os russos já começaram a atingir hospitais e creches, como no princípio;
o Zelensky quer-nos lá, já, para tentar limpar-se da merda que fez;
embaixatrizes organizam chás, com a presença do PR e com especialistas de centros académicos surgidos para comentarem um estudo de um think tank lituano, ou lá o que seja, sobre a desinformação russa, levantando suspeições sobre quantos têm uma posição crítica quanto à guerra da Ucrânia;
noventa por cento dos comentadores da academia continuam os mesmos atrasos de vida, e noventa por cento dos pivôs dos telejornais persistem analfabetos;
já há cartazes motivacionais para aliciar os nossos filhos e netos morrerem na Ucrânia, para (não) resolver uma guerra criada pelos americanos, com a cumplicidade de britânicos, franceses, alemães e parceiros menores.
"Há três anos que a UE se arruína com o seu envolvimento incompetente e imoral na guerra da Ucrânia. Agora que os EUA, os grandes responsáveis por esta tragédia, lavam as mãos e fogem, com razão, de um confronto suicida com a Rússia, na UE, líderes detestados pelo seu povo, como Macron, ou a Comissão Europeia de Ursula von der Leyen (com o seu auxiliar no Conselho Europeu, António Costa) querem continuar a alimentar a guerra com a Rússia."
De há meses para cá tememos que o último JL seja mesmo o último Publica-se há 45 anos, sempre com o mesmo director (e fundador), José Carlos de Vasconcelos. Tem número óptimos, compensando largamente um ou outro menos conseguido. O seu previsível (embora ainda não anunciado) fim ser(i)á catastrófico. Duvido que possa ser substituído. Comecei a lê-lo ainda estava a acabar o liceu, e tenho o primeiro número que comprei. (Qualquer dia farei aqui uma resenha). E guardei muitos outros, sem falar nos recortes.
Enquanto se mantiver, passarei a arquivar aqui citações retiradas de cada número que entretanto se publique. Talvez possa levar alguém a comprá-lo.
«Camões viajou e viveu o seu próprio poema ao mesmo tempo que o escrevia.» Manuel Alegre
«[...] jornalismo, artes, literatura e compromisso social são colunas de um mesmo templo que, hoje, se redefine, correndo riscos de esboroamento porque a corrente da formatação desenfreada tudo parece levar à sua frente...» António Carlos Cortez
«[...] (o mundo já foi criado para sempre.)» Carlos de Oliveira
«Perante a guerra, o que se espera de um intelectual é o exercício da sua capacidade analítica, antecipada pela procura dos dados empíricos que são as fontes primárias que alimentam o pensamento crítico.» Viriato Soromenho-Marques
JL #1421, 19-III-2025
«I. Os Rebanhos. Logo que as cabras entestaram à corte, o "Piloto" deu por findo o seu trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os serviços, se dirigir a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspando a terra, ia triste, cismático, como perro vadio de estrada, descoroçoado da vida. Subitamente, porém, sorveu no ar algo que lhe era conhecido.» A Lã e a Neve (1947)
«Diante dessa varanda, na claridade forte, pousava a mesa -- mesa imensa de pés torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da "História Genealógica", todo o «Vocabulário» de Bluteau, tomos soltos do "Panorama", e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott, sustentando um copo de cravos amarelos.» Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires (1900)
«Era uma paixão, uma paixão da alma, a mocidade na velhice, essa ânsia impotente dum coração que quer romper os tecidos atrofiados de cinquenta e cinco anos para dar quatro pulos em pleno ar.. / Quem era a vítima desta paixão impetuosa? Uma menina de quinze anos, que a leitora, enjoada das indecentes cuecas do Sr. Silva, pode ver, no segundo andar desta mesma casa, sentada a costurar na varanda, com uma gata maltesa no regaço, e um papagaio ao lado, que lhe depenica os sapatos de cordovão.» Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago (1854)
«Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Era esta a causa única da tristeza de Mestre Romão.« Machado de Assis, Histórias sem Data (1884» -- «Cantiga de esponsais»
Não passam de fariseus quantos dizem que "regressámos ao século XIX" quando as grandes potências fazem pressão sobre territórios sobre os quais têm apetência. Dar-lhes-ia razão se dissessem que à sombra do Direito Internacional agonizante, as guerras não se fizeram por procuração, do Vietname a Angola e ao Afeganistão -- ou então através da desestabilização dos regimes, usando os respectivos agentes, do Kadafi ao Navalny, sem esquecer a Ucrânia, pois claro.
Ou se o status quo pelo qual agora choram alguma vez impediu o imperialismo e a lei do mais forte, da ocupação do Tibete ou a barbárie da guerra do Iraque, a tal das armas de destruição maciça, vistas e identificadas pelo Durão Barroso...
Que grande paciência é precisa para aturar os semi-canalhas e os hipócritas por inteiro.
«Tivesse eu umas pernas tão altas como as tuas / e travaria contigo o ardoroso combate / -- velha guerra amistosa e sem quartel --, / para meu e teu contentamento.»
«Fala de um cão basset a uma cadela são-bernardo com cio», Caderneta de Lembranças (2022)
-- Vinte anos disto. Valeu a pena?
-- Eu diria que sim... Perdeu-se nuns lados o que se ganhou noutros.
-- Mas é um bom blogue?
-- Escapa, tem dias.
-- E porque não fazes melhor?
-- Eh...
Espero sempre o pior deste ignorantão doutorado (o que mostra bem a miséria em que está parte da Universidade portuguesa -- mas miséria mesmo).
Já me estou a rir antecipadamente pelo rol de imbecilidades que antevejo. Tenho a certeza de que não me desapontará.
Adenda: Vi. É jornalismo de compostagem: cretinismo e má-fé. Sem novidade.
«Pertences / Ao comum dos mortais / Que contam os silêncios / Pelos dedos das mãos.»
«Na segunda pessoa», Sob Este Título (2017)
[14.8.1961] .../... «Esta mistura violenta de vida e de morte é, de resto, o sedimento da vida de Paris, o cadinho trágico donde dimanam as suas cristalizações de arte e de grandeza.» António de Cértima, Doce França (1963)
A inflexão da política externa norte-americana no sentido de um isolacionismo monroviano, que poderá ir além do(s) mandato(s) de Trump e de Vance, com a concomitante partilha do planeta em grandes esferas de influência entre Estados Unidos, Rússia e China -- para já -- com uma possível (embora para já me pareça improvável) dissolução da Nato, por obsolescência;
uma União Europeia presa por arames, como está, em que a unidade política é uma miragem e sê-lo-á sempre enquanto não se conjugar a livre, espontânea e informada adesão dos povos europeus com uma reforma política que assegure a democraticidade dos órgãos políticos europeus (a União Europeia será (con)federal, ou nunca será);
a circunstância de ninguém fazer ideia que realidades geopolíticas irão emergir com a convulsão em que actualmente vivemos, obriga tanto candidatos presidenciais, como as lideranças partidárias a serem instadas por jornalistas minimamente dignos desse nome a porem as cartas na mesa.
O que poderá estar em causa é apenas a continuidade de Portugal enquanto estado-nação independente e isso, por muito que custe perceber aos medíocres, transcende todas as questões de lana-caprina com que se entretém o espaço político-mediático.
Voltarei a este assunto, tentando reflectir sobre a estratégia política portuguesa em tempos de desagregação.
«Na crista das vagas, / o embalo da lua / lembra-me os teus braços, / acorda o meu desejo de ser tua.»
«Luar», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
"Perante as transformações, os dirigentes europeus e os seus produtores e distribuidores de opinião encontraram-se (e encontram-se) na situação dos cães abandonados pelos caçadores após o final da época de caça e que vagueiam perdidos, reunindo-se em alcateias que procuram sobreviver." (aqui)
«A livraria, clara e larga, escaiolada de azul, com pesadas estantes de pau-preto onde repousavam, no pó e na gravidade das lombadas de carneira, grossos fólios de convento e de foro, respirava para o pomar por duas janelas, uma de peitoril e poiais de pedra almofadados de veludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela madressilva, que se enroscava nas grades.» Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires (1900)
«O negociante representava cinquenta e cinco anos, bem conservados. No olho direito tinha muita vida; o esquerdo, porém, nesta ocasião, tinha um terçollho, e inflamado, de mais a mais, pelo calor. / Além do dito, o Sr. Silva estava sofrendo um segundo terçolho no espírito.» Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago (1854)
«A escuridão remexe. Não se sabe bem onde o sonho acaba e começa a matéria, se é uma cidade desconforme, sepulta em treva e lavada em lágrimas, ou meia dúzia de casebres e uma torre banal. Uma luzinha alumia um Cristo aflitivo na abóboda de pedra sustentada por quatro arcos ogivais.» Raul Brandão, A Farsa (1903)
"Uma das mais dolorosas aprendizagens durante estes mais de três anos de guerra na Ucrânia tem sido a de confrontar-me com o trágico declínio da honorabilidade académica e do brio intelectual, tanto nas instituições universitárias como nos meios de comunicação social." (aqui)
«O universo é perverso»
Palavras, Músicas e Blasfémias que Envelheço na Cidade (1996)
Mas claro que não tem! Nenhum estado ou organização tem o direito a existir para o massacre.
Eu, que fui por largos anos defensor e admirador daquilo, quanto mais crimes comete o bando de Netanyahu, que tem a agravante de ser um líder político democraticamente eleito, maior se torna a minha aversão ao estado judaico.
Estado, cuja obrigação moral seria o de, mesmo defendendo-se e anulando agressões exteriores, ter um padrão moral inatacável nos princípios e na prática.
Quando se elege repetidamente um comprovado facínora, com os resultados que estão à vista, o direito à cidadania perde-se.
Haverá sempre uns quantos atrasados mentais no universo político-comunicacional cá do burgo que agitem o espantalho do antissemitismo. Não sei se é por não terem princípios (suspeito que sim) ou se caem facilmente na esparrela montada pela propaganda governamental. Mas estão ao nível dos coitados que ainda dizem que a guerra na Ucrânia se deveu à invasão russa (É não perceber um boi...).
Quanto mais olho para os oficiais do exército israelita, mais os acho parecidos com nazis.
Por mim, e continuando a impunidade dos pulhas que têm o poder, o estado israelita não só pode, como deve acabar.
Quando digo isto, é isto.
«Este é o bode de Deus / que põe o pecado no Mundo / o sátiro dos bosques / com cheiro putrefacto»
«A Última Ceia», De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (2004)
«Ecoam os passos na eira deserta, abre-se a porta da cozinha e o criado atura ao lume um braçado de poda: entre estalidos, a labareda ilumina as figuras atentas, o homem seco como as vides e a cabeça toda branca; a senhora Emília metida na sombra, calada como se não existisse; os filhos, o José que é ladrão, a Rosa que acabou nas vielas; e o criado, o Manco, sempre a cantar, como aqueles grilos a quem se tira uma perna para cantarem melhor.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)
«És o nome em que tropeço / a água que me prende»
«És o nome», Nascente da Sede (2000)
«em outra língua trago um sabor / a merda ressequida -- é o medo // roendo-me às ocultas como traça»
«Ouve o meu desabafo» Sonetos de Amor Ilhéu (1992)
Fartei-me aqui de falar sobre Sócrates e dos atrasos de vida no sistema da Justiça em Portugal. A justiça acompanha o jornalismo e a política partidária na pocilga em que transformam o país. Incompetentes, medíocres e até maus.
Estou-me nas tintas para o julgamento de Sócrates. E nauseado também. Depois de tanto tempo (nem me vou dar ao trabalho de ver quantos anos já passaram), é agora que vai haver julgamento? E, provavelmente, com a expertise que têm demonstrado, correndo o risco de ver o julgamento anulado. É mesmo isso que parece estarem a pedir.
Para já, Sócrates mandou-os à merda. É isto.
«A tarde afoga-se na marina do Vieux Port, / acontecem desavenças por tão pouco, / rosas que murcham no íntimo de Maio:»
«Como regressei de Marselha, incólume, quase», O que Vai Acontecer? (1997)
![]() |
Rafael Bordalo Pinheiro |
Escritor
completo, cultivou todos os géneros literários: é o efabulador romântico de Romance de um Homem Rico (1861) e Amor de Perdição (1862), o escritor
realista de A Queda dum Anjo (1866) ou
O Retrato de Ricardina (1868), o
romancista “histórico” de A Filha do Regicida (1875), o autor
ironicamente à la page com o
naturalismo em Eusébio Macário (1879)
e A Corja (1880); é o poeta de Nas Trevas (1890); o dramaturgo de O Morgado de Fafe em Lisboa (1861); o
folhetinista de cordel de Maria! Não me
Mates que Sou Tua Mãe (1841); o polemista de O Clero e o Sr. Alexandre Herculano (1850) ou Vaidades Irritadas e Irritantes (1866); o memorialista das Memórias do Cárcere (1862); o crítico de
Esboços e Apreciações Literárias
(1865); o biógrafo de D. António
Entre as convulsões da Guerra Civil e a agonia do Ultimato, o Portugal do século XIX, dos Cabrais à Regeneração, espelha-se na obra de Camilo. Mas, erudito, vem de trás, das crónicas vigiadas de Fernão Lopes aos cartapácios fantasiosos de Frei Bernardo de Brito; prosador exímio e mestre da língua, é herdeiro do Padre António Vieira e está também na génese de Aquilino Ribeiro; instável, sarcástico, violento e ao mesmo tempo lírico, encerra uma verdade envolta em fingimento que não deixa indiferente o leitor do século XXI.
É um dos génios tutelares da cultura portuguesa. O seu nome próprio, Camilo, tem dimensão idêntica aos de Camões, Vieira, Bocage, Garrett, Antero, Eça, Cesário ou Pessoa. Amor de Perdição emparceira em peso e relevância canónicos com Os Lusíadas, Menina e Moça, Viagens na Minha Terra, Os Maias, O Livro de Cesário Verde, Só, Clepsidra, Mensagem, Andam Faunos pelos Bosques, A Selva, Mau Tempo no Canal, Sinais de Fogo, Para Sempre – clássicos absolutos. Escritores como Teixeira de Pascoais, Aquilino, Vitorino Nemésio, José Régio, João de Araújo Correia, entre muitos outros de primeira água, sentiram-se interpelados pelo génio do «colosso de Seide», dedicando-lhe estudos de amplitudes várias; também artistas plásticos como Roque Gameiro, Stuart Carvalhais, Francisco Valença, Leal da Câmara, Diogo de Macedo, Tom, João Abel Manta ou Mário Botas não lhe ficaram indiferentes.
O tempo, ele próprio – em boa parte graças aos jornais e às bibliotecas itinerantes, primeiro, ao audiovisual e aos curricula escolares, depois – encarregou-se de tornar o acervo literário de Camilo em elemento identitário dos portugueses, o que se verifica quando a cultura popular se deixa impregnar pela criação erudita, e vice-versa. Esse intercâmbio fecundo é a glória dos criadores: por um lado assegura a perenidade do seu nome e de parte da sua obra; por outro, acrescenta densidade à comunidade nacional em que o autor e os seus livros se fizeram.
O
legado artístico camiliano constitui-se como património incomparável. O mesmo
se passa com outras manifestações seculares equivalentes em importância: das
cantigas de D. Dinis e os autos de Gil Vicente à obra romanesca dos nossos maiores
escritores contemporâneos; das gravuras rupestres do Vale do Côa aos projectos
de Siza Vieira, passando pelos painéis de Almada Negreiros; das sonatas de
Carlos de Seixas às sinfonias de Luís de Freitas Branco e à guitarra de Carlos
Paredes; dos retábulos da escola de Nuno Gonçalves às telas de Júlio Pomar, dos
retratos de Columbano aos cartoons do
seu genial irmão, Rafael Bordalo Pinheiro – a cultura portuguesa não é susceptível
de ser apreendida sem estas, e outras, manifestações do espírito. Assim com
Camilo Castelo Branco.
Texto inédito, datado de 31-V-2010
Segue-se a norma adoptada em Angola e Moçambique, que é a da ortografia decente.