conservador-libertário, uns dias liberal, outros reaccionário. um blogue preguiçoso desde 25 de Março de 2005
quarta-feira, janeiro 31, 2024
preparem-se que vêm aí os russos! - ucranianas CCXXI
Hoje, à hora do almoço, televisão do restaurante sintonizada na RTP3, canal estatal, entro ao mesmo tempo que o José Estaline. Campainhas soam. Ainda ontem no carro, ouvira, na rádio Observador, um dos vários bufarinheiros do Pentágono que para aí peroram (ou exibem a incompetência) dizer que, tratando-se a Rússia de uma potência agressiva, a Europa tinha de rearmar-se, isto para não haver surpresas numa possível invasão, até porque um bufarinheiro sénior europeu alertava para uma próxima guerra entre a Nato e a Rússia.
A propósito da agressividade russa, não ocorreu ao bufarinheiro falar da provocação da Geórgia, quando Putin assistia ao Jogos Olímpicos de Pequim, nem na golpada na Ucrânia: o que ele e outros como ele pretendem é preparar as mentes para uma de duas, ou ambas, até: uma, justificar dessa forma os gastos militares; a possibilidade de um confronto na Europa, no quadro da eleição de Trump, que adoptará uma política isolacionista ou virada para o Pacífico.
Estava a entrar no restaurante e percebi que havia coisa, ainda para mais agora que as imagens mostravam a invasão soviética de Budapeste '56, seguida da de Praga '69, com as imagens de Dubcek -- um dos meus heróis, como sempre digo quando o menciono ou escrevo o seu nome. Mais um bocado, claro, Putin, inevitavelmente, e a mensagem -- subliminar para os ignorantes da aldeia: vêm o perigo?, a ameaça?, a necessidade de canalizar fundos para o complexo militar-industrial?... Aliás, o bufarinheiro de ontem dizia-o claramente: é preciso fazer ver ás pessoas etct., etc.
Fui ver se havia alguma efeméride sobre a revolta de Budapeste ou a Primavera de Praga que me estivesse a escapar. Não há, é claro; é apenas a Televisão do estado português a entrar obedientemente no processo de sensibilização ou de lavagem cerebral, melhor dizendo.
Por outro lado, é notável como indirectamente assumem o fracasso da sua política trágica relativamente á Ucrânia, a sua derrota em toda a linha, a sua incompetência, desonestidade e vigarice. Quem os ouvia há meses e quem os ouve agora, aterrorizados com a Rússia na falta receada do próximo patrão americano. Que pulhas, que bandalhos!
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«Calaram-se os dois, num silêncio incómodo, mas o ruído de um alguidar de água, que alguém despejava no saguão, pareceu reanimar subitamente a voz de Macedo:» Ferreira de Castro, A Selva (1930)
«Depois, num Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes morreu, tão quietamente, Deus seja louvado, como se cala um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póst., 1901)
«O revérbero entre as nuvens colhe-o de surpresa e extingue-se, mas chega para abrir uma fenda (irreparável) na memória.» Carlos de Oliveira, Finisterra -- Paisagem e Povoamento (1978)
terça-feira, janeiro 30, 2024
como os imigrantes tornaram um sítio chulo num local aprazível
Por falar em mínimos, já deveria ter escrito sobre o caso do Martim Moniz e da operação de intimidação dos neonazis. A CML também os cumpriu, apesar de tê-lo feito de forma pífia, escudado-se num parecer da polícia para proibir uma provocação de âmbito criminal -- e apesar do seu voto unânime de repúdio pelo que se preparava.
Há uma série de tinhosos o lumpen social a vegetar na grande Lisboa, em relação aos quais não vale a pena gastar latim. São meros delinquentes, e a delinquência, ou se reconverte -- missão morosa -- ou se interna.
Quando eu era jovem, o Martim Moniz era um lugar chulo e porco; hoje é um aprazível espaço cosmopolita. Eu gosto sempre de passar por lá. Com isto não quero dizer que o país não deva ter uma política de imigração. Claro que deve, apesar das dificuldades; e que todos os imigrantes possam gozar dos direitos e deveres dos restantes cidadãos. Se há para aí uns quantos cadastrados em função de crimes graves. é para deportar. mas só uma amiba se deixa ir atrás da conversa que instila o medo pelo outro. Quem conviva com eles diariamente -- e todos convivemos -- sabem que são pessoas como nós, mas mais frágeis e desprotegidas. Mais uma razão para não haver complacência com a xenofobia.*
É preciso espicaçar estes políticos medrosos a fazer o que é seu dever sem se escudarem por detrás da legalidade. Esperar pelo parecer da polícia quando um bando de energúmenos desanalfabetos queria atemorizar os imigrantes e também os nossos concidadãos, numa espécie de faroeste, em que as quadrilhas entravam aos tiros pela main street é duma mariquice inqualificável. Não é só a sociedade civil que deve estar vigilante -- e esta estava, daí a contramanifestação convocada --, mas o Estado, a Câmara, o Governo, o Ministério Público, o Tribunal Constitucional. Será pedir muito?
* Mantenho que em Portugal o racismo é classista e não de outro tipo, com excepção para os ciganos. Mas que há xenofobia, isso é evidente, e ela atinge o nepalês, o ucraniano e o brasileiro -- a não ser que apresente uma compostura sustentada por sinais exteriores de riqueza. A xenofobia, ao contrário de racismo, é um fenómeno eminentemente de pobres.
Marcelo cumpre os mínimos,
ao travar a tralha da chamada "autodeterminação de género" inculcada às criancinhas. Ouvir os pais, os professores? Definir parâmetros em relação a partir de que idade é razoável haver uma abordagem para problemas, que, apesar de ultraminoritários, existem e não devem ser escamoteados? O que interessa isso para estes trastes, quando se trata de impor, à revelia dos cidadãos, uma série de preceitos legais e coercivos que vinculem a sua mundividência desgraçadamente doentia e deprimente?!...
Uma miséria escandalosa, os partidos políticos, em que só o Ventura disse duas ou três coisas de jeito -- é o estado a que isto chegou. O PSD não se encontra em maré de levantar ondas; o PCP acha, erradamente, que isto é secundaríssimo, e já levou pancada que chegue sobre a Ucrânia dos restantes partidos, apesar de ser o único que tem razão, para abrir outra frente; no PS, os que para lá andam ainda com um pingo de bom senso encolhem-se, até para não terem que levar com o histerismo pasionario de Isabel Moreira e os seus "direitos fundamentais". Dos outros nem vale a pena falar. É terrível que a contestação política a estes abusos seja deixada ao populismo de direita, com larguíssimo campo para se espraiar.
Marcelo cumpriu os mínimos. Se fosse outro, teria, na altura própria, corrido a pontapé a nódoa deste ministro da Educação cessante, o tal que, quando era secretário de estado, andou a perseguir os dois jovens irmãos de Santo Tirso.
segunda-feira, janeiro 29, 2024
vermelho e negro
«Nenhuma ideia justa -- como nenhuma semente -- se perde; e todas elas vão ter a sua repercussão na consciência geral; essa repercussão, mais cedo ou mais tarde, transforma-se em facto.» Eça de Queirós, «Revista crítica dos jornais», Distrito de Évora (1867) / «Os governos dum país civilizado, a título de exportarem a civilização para os povos selvagens, levam-lhes o canhão que os mata e o comércio que os rouba.» Mário Domingues, «Colonização», A Batalha (1919) / «Rigorosamente não era um sistema de ideias que te determinava, era um feixe de cólera que te galvanizava.» Manuel Ribeiro, «A um herói da Rotunda», O Sindicalista (1911-12)
* Prosas Esquecidas, ed. Alberto Machado da Rosa (1965); ** A Liberdade não se Concede, Conquista-se. Que a Conquistem os Negros!, ed. António Baião (2023); *** Na Linha de Fogo (1920)
domingo, janeiro 28, 2024
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«E depois queixam-se do destino, deduzia Diogo Relvas, quando eles próprios o talham com a preguiça, o aborrecimento e a poltranice que lhes amerdalha o sangue.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961)
«Mas também era certo haver enigmas no mundo dos fenómenos, para os quais a melhor forma de decifração são ainda as chaves absurdas... -- e o senhor abade assim matutava quando Feliciana apareceu com a moça a pedir os exorcismos.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)
«Pintou-lhe o melhor que pôde a vantagem de ser brevemente uma viúva rica e a liberdade que teria então de escolher um marido mais galhardo.» Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago (1854)
sexta-feira, janeiro 26, 2024
curtas
«-- [...] Eu parecia um desses artistas que realizou, certo dia, uma descoberta feliz e passou, depois, o resto da vida a lutar desesperadamente para dar a ilusão de que não se repetia, quando, em realidade, não fazia outra coisa senão plagiar-se a si próprio.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) / «Nem por ocasião da recolha do gado, a perseguição e correrias conseguiam arrancá-los à prostração nostálgica do mais além, que lhes dava a imensidão do Oceano e certa inveja por aqueles que abalavam para continentes longínquos, vidas que desfrutavam de uma constante renovação de prazeres e vertiginosamente corriam entre espectáculos dos mais variados.» Assis Esperança, «O dinheiro» (1932) / «O Norberto ouviu tudo, mesmo morto, o que não é de pasmar, se escutássemos o Assobio com a atenção que ele merecia: o Assobio falava com os mortos quando qualquer situação o impunha, levava recados para eles, da D. Ifigénia ou da D. Constância, trazia terra das campas para acamar nos vasos de flores que se punham nas janelas, vivia do comércio dos cemitérios sem entrar em concorrência com os cangalheiros.» Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez (1984)
quinta-feira, janeiro 25, 2024
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«A densidade calcária decresce tanto que podem ambos flutuar (a criança e o osso de baleia) sobre murgos biliosos, caules de gisandra, líquenes, doenças vagarosas.» Carlos de Oliveira, Finisterra -- Paisagem e Povoamento (1978)
«Acompanhava-o a restolhada dos passos, lenta e pesada, um soluço ou outro, irreprimido pelos familiares do defunto, e a nuvem de poeira que o cortejo deixava na estrada, encontrando-se ainda com a que fora levantada pelas carruagens postas à disposição da gente da cidade, incapaz de dar mais de dois passos pelo seu próprio pé.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961)
«Vagueei pelas salas que teriam sido elegantes no tempo de Marcos e Raquel, mas que definhavam agora numa atmosfera de abandono e desolação, não porque Carlota estava morta, mas porque Carlota, que era filha da adolescente do retrato, se desinteressara de tudo, se fechara numa reclusão definitiva e magoada, só a grande estufa de begónias despertava os gestos dos seus dedos cobertos de anéis.» Helena Marques, O Último Cais (1992)
quarta-feira, janeiro 24, 2024
terça-feira, janeiro 23, 2024
curtas
«As rugas sulcando milimetricamente a pele emaciada, entrecruzando-se num xadrez miudinho capaz de, por si só, se tornar inacreditavelmente expressivo.» A. M. Pires Cabral, «O saco», O Diabo Veio ao Enterro (1984) / «Ela quase murcha ia-se consolando pelo olhar vago e longínquo do estudante vestido de negro --, a capa e batina dava-lhe um tom de luto que muito preocupava a tenra Branquinha.» Ruben A., «Branca», Cores (1960) / «O colo da Rosa era na cozinha e era muito engraçado porque ele entrava no colo e ela continuava a descascar as batatas para um alguidar.» António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor (1984)
segunda-feira, janeiro 22, 2024
domingo, janeiro 21, 2024
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«À distância, choupanas de colmo, negras e escorridas, figuravam, pelo cair da tarde, guedelhas, lanuça de maltês.» Romeu Correia, Calamento (1950)
«Em seu entendimento, ficava escrito que a rapariga fora brutalizada sem de maneira nenhuma ser cúmplice o seu instinto de mulher.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)
«Macedo contrariou-se, mas resistiu, encarcerando e substituindo as palavras de exaltação que ferviam dentro dele.» Ferreira de Castro, A Selva (1930)
sexta-feira, janeiro 19, 2024
vermelho e negro
«Ânsia sublime de liberdade, que despedaça o ferro, que afronta as balas, que ludibria a própria morte!» Ferreira de Castro, «Evadidos!», A Batalha (1924)* / «Era tão bom que todos nos habituássemos a ser mais indulgentes para os simples erros ou lapsos alheios e olhássemos para a obra, apreciando-a no seu conjunto, avaliando a sua utilidade, e guardássemos os rigores para o que nós próprios fazemos!» Emílio Costa, «Os críticos implacáveis», Filosofia Caseira (1947) / «Qualquer contacto de sexos, que noutra hora seria ternura, no Carnaval há-de ser violência e sangue e estupro.» Jaime Brasil, «Carta do Povo sobre a loucura do Carnaval», A Batalha (1924)**
*Ecos da Semana -- A Arte, o Artista e a Sociedade (edição de Luís Garcia e Silva) ** Voz que Clama no Deserto (edição de Elisa Areias e Luís Garcia e Silva, 2007)
quinta-feira, janeiro 18, 2024
comentário a um comentário
(Posso fazê-lo, pois ao contrário de Agostinho Costa, Carlos Branco, Mendes Dias, Marcos Farias Ferreira, Tiago André Lopes e mais alguns que merecem ser ouvidos com atenção, não sou analista de nada, apenas um europeu com medo que o céu lhe esteja prestes a cair sobre a cabeça).
Já se sabia que Daniel Oliveira não gostava do Putin, paladino profano que é da cruzada lgbt, cruzada à qual o lóbi -- para amalgamar, e com isso se tornar a importante causa mais palatável -- arrebanha as mulheres e as pessoas "racializadas" (palavra horrível), como se toda a calça desse para cada cu. Obviamente detestam o Putin porque, entre outras coisas, certamente menores, ele teve a desfaçatez de impedir que as questões momentosas da identidade/disforia de género fossem ministradas às criancinhas de todas as idades. O mesmo se passou com o Orbán na Hungria, o que levou o Expresso a envergar um lutuoso fumo das cores arco-íris (pobres duendes dos potes de ouro...). Só isso explica que Oliveira equipare Netanyahu a Putin, como [dois] "dos maiores perigos para a segurança internacional"... Netanyahu e Putin, parecidíssimos, como se sabe; e vindo dali eu esperaria (não sei bem porquê, se não leio o Expresso e raramente passo pela sic) alguma assertividade em relação ao papel dos Estados Unidos na situação internacional. Mas vejo que não está para aí virado -- aliás, a última frase é deveras significativa. Eis aí alguém na boa companhia dos germanos, isidros e outras dianas. Ainda hei-de ouvi-lo falar na luta das democracias liberais contra as autocracias (não estás perdoado, Lula!) e na defesa dos nossos valores, em parelha com úrsulas e sub-borréis.
quarta-feira, janeiro 17, 2024
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«E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandando à candeia, atiçando fogueiras de S. João, enfeitando presépios de Natal, por ali me passaram docemente sete anos, tão atarefados que nunca logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que apenas me recordo, quando, em vésperas de S. Nicolau, o abade caiu da égua à porta do Brás das Cortes.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póst., 1901)
«Henrique sentiu-se pouco à vontade com as elucidações de cicerone; olhou para ele com desconfiança e quase julgou ver moverem-se sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
«O arcediago, comovido pela exclamação do seu futuro genro, subiu ao segundo andar e procurou, meio colérico, a filha rebelde, que ensinava o papagaio a dizer: é o rei que vai à caça. Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago (1854)
terça-feira, janeiro 16, 2024
na cabecinha de uma delegada de propaganda bélica
A convite da FLAD, esta senhora, do American Enterprise Institute, conselheira da campanha de John McCain e Sarah Palin, e, obviamente, apoiante de Joe Biden, veio perorar sobre o que vai pelo mundo, e certamente reciclar as lívia, as sandras, as sónias e todos os outros poejos que têm tão bem servido para esclarecer a opinião pública nacional. Lendo a entrevista, das duas, uma: ou é mais um atraso de vida, epígono de epígonos; ou está a cumprir muito bem o seu papel. Deixo as averiguações para quem tenha curiosidade, que não é o meu caso; mas sempre lembrando que a generalidade das lideranças ocidentais, figuras de excelência como António Costa (ou Montenegro), Sánchez, Macron, Sunak (lídimo herdeiro desse segundo Churchill que é Boris Johnson,seguindo o diapasão dos patetinhas de cá), Scholz, Von der Leyen, Borrell, Michel, como os Bidens e as Hilarys, andam a toque de caixa desta espécie de delegados de propaganda bélica que se passeiam, não pelos consultórios médicos, mas pelos gabinetes onde as luminárias acima citadas decidem sobre as grandes causas da Humanidade...
[dando de barato as características grotescas do Trump e o perigo que representa para o sistema político americano, a verdade é que este não começou nenhuma guerra (até pode ter sido um feliz acaso; pelo contrário, travou o confronto com a Rússia, que já estava preparado com o estafermo da Hilária -- confronto em relação ao qual já estamos a ser ensaboados, mas isso fica para outro post...]
curtas
«Enquanto ia falando, o homem olhava para o chão, como se não desejasse ver nos meus olhos o efeito das suas palavras.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) / «Há sempre um pingo que cai ou um surro que se forma ou qualquer outra coloração que disfarça a brancura evidente do branco.» Ruben A., «Branca», Cores (1960) / «Não chego a saber, por muito que cisme, o que mais me fascina no tio Zé das Candeias: se a arte consumada de fabulador, se a mímica prodigiosa das suas mãos e sobretudo do seu rosto, onde tudo é móvel e participa na arte de contar.» A. M. Pires Cabral, «O saco», O Diabo Veio ao Enterro (1984)
segunda-feira, janeiro 15, 2024
ainda há boa gente neste país, apesar do cheiro a taberna e mau vinho deste fim-de-semana
Mesmo sem querer, fui ouvindo com intermitências as aleivosias e bestialidades do Ventura, dirigido ao analfabetos, ressabiados e invejosos (riscar o que não interessa); alguns que até sabem estar a ser ludibriados, mas que já nem se importam (e aí a culpa não é do Ventura nem das mascotes que lhe andam atrás).
Felizmente, o país ainda não é isto, esta boçalidade primária, esta emanação vocal nauseabunda. Há gente boa, e até o negregado futebol, dos escalões amadores, pelo menos, nos dá consolo pelo exemplo, depois de dois dias de trastes à solta. E viva também o bom jornalismo!, neste caso do Diário de Notícias.
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«Ela faz que não ouviu; apesar da penumbra do quarto, Elói adivinha o que lhe vai na cara.» João Gaspar Simões, Elói ou Romance numa Cabeça (1932)
«Golpe num pé, infecção, Santa Casa, falecera de tétano aos dez dias de internado a uivar pela mulherzinha da sua alma.» Aquilino Ribeiro, Volfrâmio (1943)
«Uma estudantina ruidosa, com grande acompanhamento de pares, tocadores de guitarras e violas a abrir a marcha, levando os instrumentos cheios de fitas de seda, arrastara-o até ao Rossio, como se não pudesse fugir à avalanche de alegria que desembocava de todos os lados da praça.» Alves Redol, Os Reinegros (c. 1944/1972)
sábado, janeiro 13, 2024
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«Dois filhos a criar, outro a vir, a casa num brinco, o marido um fidalgo, montes de roupa a lavar, passajar e engomar -- os dias, Senhor, tão curtos, as horas vão-se num rufo.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)
«Os poucos homens que o cumprimentaram arrastaram uma sílaba indecifrável, a esmorecer.» José Luís Peixoto, Nenhum Olhar (2000)
«Um dos mais esforçados da linhagem, Lourenço, por alcunha "O Cortador", colaço de Afonso Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de cavaleiro, velara as armas na Sé de Zamora), aparece logo na batalha de Ourique, onde também avista Jesus Cristo sobre finas nuvens de ouro, pregado numa cruz de dez côvados.» Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires (1900)
sexta-feira, janeiro 12, 2024
se alguém é suficientemente crédulo para acreditar que o Putin vai atacar um país da Nato, agora ou nas próximas gerações, quando ele for já um fantasma, que ponha o dedo no ar -- ou António Costa a comendador (ucranianas CCXX)
1. Agora que a Guerra no Médio Oriente parece estar a escalar e quando quase todos pareciam esquecer-se da Ucrânia, fui alertado pelo comentário do major-general Carlos Branco para a facilidade com que alguns interveniente no espaço público falam sobre a possibilidade de uma guerra da Nato contra a Rússia.
Bem, ela está aí: os ucranianos já foram sacrificados por dirigentes crédulos e/ou comprados pelos Estados Unidos e agora estão na situação maravilhosa que estamos a ver. Como o Putin nunca mais morre ou é apeado (achando certamente essas luminárias que seria substituído por um factótum ao serviço do Pentágono).
2. O que realmente me enoja, e o que sempre me enojou nesta guerra, são os vigaristas e incompetentes do comentariado. A conversa agora é de não deixar a Ucrânia de mãos a abanar, acenando, muito americana e pentagònicamente, com a ameaça de que o Putin não vai ficar por ali. O último que ouvi, em análise de fiel-de-armazém, um certo tenente-general Marco Serronha, a quem dificilmente voltarei a escutar, terminou a intervenção, uma noite destas, dizendo explicitamente que a Rússia não iria parar naquele apetecido território que um belo dia os americanos e vassalos acharam que poderiam controlar.
Consciente ou inconscientemente o que este comentador está a fazer é a juntar-se ao coro dos que preparam as opiniões-públicas europeias para uma espécie de inevitabilidade de uma guerra com a Rússia. Não estou a ver como isso poderá acontecer e gostaria que avançassem com argumentos minimamente sofisticados. Então acham mesmo que a Rússia vai arriscar uma guerra com a nato sem ser atacada por tropas nato? Com armas nato já ela está a sê-lo, diga-se. Mas parece que ainda não chegou, querem mais armas (mais dinheiro para o complexo militar-industrial norte-americano) mais mortos, mais destruição do país, para este lindo resultado com que os ucranianos foram enganados -- como fomos nós todos, povos europeus, pelo patifes sem escrúpulos do costume e pelos idiotas inúteis que os assistem, no governos e nos mérdia.
3. Este agitar de espantalhos que fazem das pessoas estúpidas é velho e até tem funcionado vezes sem conta (o que não sucedeu com o Iraque, recordemos, pois ninguém engoliu as mentirolas da administração americana da época). Já só falta o passo seguinte, uma vez que os ucranianos com aptidão para combater são cada vez menos e já vamos nos velhos e nas crianças: a Europa e os USA porem boots on the ground, em estrangeiro soa melhor -- ou então, como diz o patusco e informado Mendes Dias: pôr a nossa gente a "jorrar sangue" pela "Ucrânia". Aí é que eu gostava de ouvir o saudoso António Costa dizer outra vez que "temos primeiro de derrotar a Rússia" (já nem falo em Marcelo, que Deus tem, e o seu penduricalho da liberdade, imposto às escondidas ao Zelensky)
quinta-feira, janeiro 11, 2024
curtas
«Até que a comadre, não suportando já as minhas hesitações, levou à frente das palavras um dedo sujo, antes que eu pudesse fingir uma reacção, enfiando os dedos nesse mistério impenetrável.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) / «Era coisa nova na época e D. Branca apetecia-lhe experimentar um estudante republicano, tinha mais cor, era mais vivo, fervia mais nos seus ideais avançados.» Ruben A., «Branca», Cores (1960) / «Ou por falta de paciência para os desfazer um a um ou por lhe ser anojoso partir aqueles símiles de membros humanos, que lhe acordariam, porventura, remotas superstições, ele acercou-se do murozito e lançou os ex-votos, de uma só vez, para a profundidades do desfiladeiro.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)
quarta-feira, janeiro 10, 2024
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«De manhã, enquanto faço o café e me sento depois a tomá-lo defronte da janela que dá para o vale, pergunto-me às vezes porque me casei.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)
«E ele próprio adoptara uma máscara de orgulho: os lábios mais franzidos, o bigode mais retorcido e mais sóbrios os gestos.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)
«Os miúdos que passeavam na rua ainda não eram nascidos quando eu saí do bairro, algumas lojas tinham fechado, outras mudado de gerência, tinham asfaltado ruas e inaugurado um moderno e funcional mercado, quase todas as varandas tinham sido fechadas com marquises de alumínio.» Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (2013)
terça-feira, janeiro 09, 2024
vermelho e negro
«Por esse conduto de crimes, toda a rixa acaba numa facada, toda a ambição num furto, toda a carícia numa violação.» Jaime Brasil, «Carta do Povo sobre a loucura do Carnaval», A Batalha (1924)* / «Quem quiser compreender profundamente a situação dos negros americanos que repare na analogia tremenda da luta dos pretos espoliados dos seus direitos contra os brancos que lhos negam e a luta dos trabalhadores enganados contra a burguesia que os engana.» Mário Domingues, «Colonização», A Batalha (1919)** / «Tu rugias quando a Ordem te maltratava a república nas pessoas sagradas dos seus caudilhos, e o que te levou à Rotunda, hás-de concordar, não foi o programa do partido republicano -- conheceste-lo tu mesmo? -- o que te levou lá foi a ânsia de desagravar uma amante dos ultrajes dum bêbedo.» Manuel Ribeiro, «A um herói da Rotunda», O Sindicalista (1911-12) ***
* Voz que Clama no Deserto (edição de Elisa Areias e Luís Garcia e Silva, 2007) ** / A Liberdade não se Concede, Conquista- se. Que a Conquistem os Negros!, edição de António Baião (2023) / *** Na Linha de Fogo Crónicas Subversivas (1920)
segunda-feira, janeiro 08, 2024
a propósito de AD '79 e AD '24
Estou convencido de que Pedro Nuno Santos e o PS ganharão as próximas eleições (sem o meu voto, claro). Não é difícil. Compare-se não apenas as lideranças (Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Ribeiro Teles com Montenegro, Nuno Melo e Câmara Pereira). Claro que historicamente PNS nunca poderá almejar, em tempos normais, a ser uma figura central na história contemporânea como foi Soares, que, apesar de eu nunca o ter achado grande espingarda, esteve bem e do lado certo, antes e depois do 25 de Abril (não, amigos e palhaços, o lado certo não estava no Gulag nem na Albânia de então...). Também o mesmo se poderia aplicar a Cunhal e a Raimundo, se bem que a máquina do PCP seja tão bem oleada, que até anda sem maquinista.
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«De salto perpassou no seu espírito uma série de ridentes panoramas, recreados pela figura airosa da mocinha com quem jogara as escondidas, de pequeno.» Aquilino Ribeiro, Volfrâmio (1943)
«Mudara de fato e saíra, metendo ao bolso umas moedas para beber o seu copo e arranjar, se calhasse, uma moça para passar o tempo, pois, em noite de bailaricos e fogueiras, as mulheres acessíveis são ainda mais fáceis.» Alves Redol, Os Reinegros (1944/1972)
«Trazia ainda no corpo a roupa ruça do sol, na pele a luz ocre da terra, trazia no rosto um sorriso reverente.» José Luís Peixoto, Nenhum Olhar (2000)
domingo, janeiro 07, 2024
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«As mulheres procuravam, agora, fazer caminho rente à casa de Manuel da Bouça, para mexericar junto de Amélia o grande acontecimento.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)
«Comparo o efeito íntimo de determinadas derrotas pessoais ao que os japoneses, enquanto povo, terão sentido quando viram o divino imperador juntar-se aos mortais e acenar a bandeira branca da capitulação.» Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (2013)
«Levantar-se todos os dias para o mesmo fim, com os mesmos gestos, as mesmas cerimónias sórdidas, as mesmas misérias corporais.!» João Gaspar Simões, Elói ou Romance numa Cabeça (1932)
sábado, janeiro 06, 2024
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«Deram as onze na Sé, depois no relógio aguitarrado da casa de entrada, e as duas mãos param um instante na toalha branca, sob o comando da reflexão.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)
«Porque se sei o que não tive, não sei o que perdi, nem do que precisaria para me preencher o vazio que se me criou no íntimo.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)
«Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos senhores que Entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do "Borguinhão".» Eça de Queirós, A Ilustra Casa de Ramires (1900)
sexta-feira, janeiro 05, 2024
curtas
«Além disso, os tempos eram confusos e revolucionários: e nada torna o homem recolhido, conchegado à lareira simples e facilmente feliz como a guerra.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst. 1902) / «Houve um enterro, como sempre acontece nestas questões de navalhas e gargantas, e o Navarro animou o velório funesto com a sua imaginação desenfreada, contando histórias líricas e sacaninhas à base de borboletas eventualmente citadinas, requerimentos para nada, manequins chutados de Paris, armazéns de caixotes de sardinhas às quais faltava o gelo, motores hidráulicos aos quais faltava a água, letras do Linhares Barbosa, solstícios e viagens sem regresso.» Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez (1984) / «Naquela imensa serenidade da natureza em festa a formosa inglesa, aspirando as frescas baforadas do mar, pensava com prazer como era bom caminhar, na vida, que se lhe revelava sem nuvens, ao lado daquele rapaz tão belo, tão inteligente, tão seu!» Conde de Sabugosa, «A aliança inglesa». De Braço Dado (1894)
quinta-feira, janeiro 04, 2024
quarta-feira, janeiro 03, 2024
caracteres móveis
«De encontro ao céu, as oliveiras e os sobreiros hão-de parar os ramos mais finos; num momento, hão-de tornar-se pedra.» José Luís Peixoto, Nenhum Olhar (2000)
«O próprio gato, depois de ter brincado algum tempo à roda das saias da dona -- "Sape-gato, já me arranhaste!" -- pulou de leve para o lar da chaminé, e dorme agora enroscado na auréola de calor do fogareiro.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)
«Porque pensou nas horas, ouve pela primeira vez o "tic-tac" do despertador que o observa da mesinha-de-cabeceira, e, no mesmo instante, sente a cabeça arrastada por ele.» João Gaspar Simões, Elói ou Romance numa Cabeça (1932)
vermelho e negro
«A actividade do jornalismo nunca deve abrandar, a sua consciência deve ter sempre o mesmo vigor, a sua pena o mesmo colorido, o seu sentimento moral a mesma justa intensidade.» Eça de Queirós, «Revista crítica dos jornais», Distrito de Évora (1867) / «Como Reclus teria sido para todos os Fígaros um sábio completo, se em vez de anarquista e de homem a contas com a polícia, tivesse sido um sábio neutro, ou consentisse em pôr o seu saber ao serviço duma função governamental!» Emílio Costa, «Recordando...», Seara Nova (1930) / «O funambulesco general, digno de opereta, se não levasse a cingir-lhe a cabeça bronca um diadema sinistro, um diadema de sangue mártir, de sangue da Liberdade, protesta contra a entrega à Rússia de determinados vasos de guerra, que à Rússia pertenciam...» Ferreira de Castro, «Sadoul, e Wrangel», A Batalha (1924)
terça-feira, janeiro 02, 2024
caracteres móveis
«A aldeia era terra sem futuro e o exemplo dos que enriqueciam no Brasil mostravam-se mais numerosos do que barbos em pego onde se deita dinamite.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)
«Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe, era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal.» Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires (1900)
«Por carácter não sou dado a fazer balanços ou a repisar as ocasiões falhadas, mas durante longas caminhadas pela serra acontece às vezes que os olhos se me param numa vista, e antes de me dar conta o espírito se perde a divagar..» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)
segunda-feira, janeiro 01, 2024
histórias curtas
«A mãe teve colo até ele fazer sete anos porque, como estava combinado pelas pessoas grandes que ele havia de ser uma pessoa grande, sua mãe deitou fora o colo dela porque -- dizia "ele ali ao colo não se fazia um homem".» António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor (1984) / «Infelizmente para ele, não lhe resta senão um dente canino na maxila superior e os destroços de outro, igualmente canino, na inferior, mas com tão pouca sorte que estão em lados opostos da boca.» A. M. Pires Cabral, «O saco», O Diabo Veio ao Enterro (1984) / «Os cantares, transmitidos de avós para netos, resumiam-se a meia dúzia de canções com sabor de cativeiro, o baile de roda por única manifestação ruidosa, embora amortecida de alegria pelo negro dos trajos.» Assis Esperança, «O dinheiro», O Dilúvio (1932)