domingo, outubro 06, 2024

correspondências

(Raul Brandão a Teixeira de Pascoais) Meu Exm.º Amigo // Li ontem dum fôlego o Verbo Escuro. Eu gosto imenso de livros assim, mas o seu, tão profundo e tão belo, há-de ser compreendido por poucos leitores. É o livro dum grande poeta e dum filósofo. / Felicito-o e abraço-o. Creia-me sempre / De V. Ex.ª/ad.or e a.º agr.º / Raul Brandão // Alto / 27 Março / 1914» Correspondência (1)



(1) Raul Brandão - Teixeira de Pascoaes, Correspondência (ed. António Mateus Vilhena e Margarida Marques Mano, 1994.

vária

«E por esses pomares, entre sebes de silvados e canaviais, que florações simpáticas, feitas com gotinhas de néctar e salpicos de sangue arterial! / Conhecem talvez o pilriteiro? É um arbusto dos valados, peculiar às regiões montanhosas do Alentejo, que se defende  com os espinhos de que se arma e não gosta de habitar jardins.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

sábado, outubro 05, 2024

tempo de romance

«Felizes tempos esses em que pastoreava a cabra pelas barrocas, roubava maçãs na quinta do Almeida e seguia, na Primavera, o voo dos pássaros de ramo em ramo! / Fincou a mão enegrecida e calejada sobre a caruma e, retesando os músculos, ergueu-se. Logo, porém, uma dor vivíssima o obrigou a sentar-se de novo.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

«O melhor prólogo é o que contem menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesmo é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. / BRÁS CUBAS.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) 

o que vai acontecer

«Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma cousa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão", -- equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; -- ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

tempo de novela

«No escuro e no silêncio, luziu a alguns passos o fogo de um cigarro. / -- O comboio já passou -- disse o camarada a despropósito. / Como em resposta, por três vezes o pequeno clarão do cigarro piscou no escuro. Aproximaram-se. O vulto do fumador precisou-se melhor, aproximando-se também. / -- É este o amigo -- disse o camarada. / Não se sabia se falava deste, do fumador ou dos dois.» Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites (1975)

quinta-feira, outubro 03, 2024

por aí


Félix Nadar, retrato de Piotr Kropótkin

 

o que vai acontecer

«Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção. / Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

«Depois, morre a erva, já pouca, queimada pelo gelo, seca o leite das fêmeas, e cresce a fome dos pastores. / Manuel Libório era homem rico, senhor de terras e de muitas cabeças. Melo Bichão era pastor velho e pobre, a quem já ninguém confiava o gado.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949)

«Agarrou numa camisinha de seda, diáfana, com rendas. Quem diria que aquela senhora, sempre de preto, ar inconsolável de viúva, usava por dentro coisas tão supérfluas? / Começou a lavar. A Alice conhecia pelas manchas da roupa a vida do freguês e o seu carácter.» Miguel Barbosa, «A dança»Retalhos da Vida (1955)

é para 'isto' que Israel tem direito a existir? tragicamente não é -- e há responsáveis

Como de costume, esta é uma guerra em que as vítimas e os inocentes são os povos: os palestinos, os israelitas, os libaneses. Não verto lágrimas nem por aiatolas xiitas nem por fanáticos religiosos, árabes ou judeus. Nada disto é preciso para reconhecer crimes quando ocorrem. 

Que o governo israelita é constituído por criminosos de diversa índole, é um facto. Que está à margem da lei ao ocupar território que não lhe pertence, é outro. 

Ao contrário do que se possa pensar, a política de Netanyahu é altamente lesiva para os interesses israelitas.

Alguém como eu, que sempre nutri uma forte simpatia por Israel, por varias razões, dou por mim a pensar: é para isto que Israel tem direito a existir? A resposta é simplicíssima: não tem -- ou deixou de ter. Quem não se dá ao respeito, não pode ser respeitado (banalidade acertadíssima); quem massacra civis põe-se do lado de fora da humanidade,  e isto serve para o Hamas, como para o governo israelita que -- tragicamente -- é composto por partidos que tiveram a maioria dos votos do eleitorado.

Como não se pode dizer que o eleitorado foi ao engano. Ao fim de mais de 30 anos de sabotagem dos Acordos de Oslo, com este Netanyahu à frente, o eleitorado israelita tornou-se co-responsável pela actuação reiterada do seu governo.

Resumindo: com esta actuação continuada, Israel perde a sua legitimidade primeira: a do direito à existência. Claro que isto não absolve os teocratas do Líbano e do Irão -- mesmo que estejam, supostamente, do lado do povo palestino -- ou seja, do lado certo, nesta altura do campeonato. Os teocratas do Irão são para ser derrubados e corridos a chicote lá para as alfurjas das mesquitas -- e, claro, não para serem substituídos por aventureiros chulos, como o último xá. O Irão tem na sua história, grandes e bons exemplos. 

Quanto à última diatribe deste governo israelita fora da lei contra Guterres, proibindo-o de entrar em Israel, tal é mais uma medalha para o secretário-geral da ONU. É que há acusações e animosidades que só nos dignificam. Ora, os indignos, pela sua própria natureza, são inaptos, jurídica e moralmente, de produzir conteúdo que seja entendido como tal. Ou seja: têm mais significado os latidos da minha cadela, do que as proclamações (ainda por cima com mentiras) do ministro dos estrangeiros israelita. Um bicho nunca pode ser desqualificado pelos seus actos; já um ser humano...  Quem, que não seja um tontinho, quer ver-se associado a uma quadrilha destas? 

4 versos de Sebastião da Gama

«Um vento manso traz o aroma das cidades. // E eis que a cidade toda é um presépio. / Ouve-se a tropeada dos camelos, / o riso dos pastores...»

«Crepuscular» Pelo Sonho É que Vamos (póst. 1953)

terça-feira, outubro 01, 2024

por aí


Lucien Clergue
Nu do Mar. Camargue (1958=

 

ai, F-16, F-16...

Dizem à opinião pública que é com os 34 F-16 que a Ucrânia receberá que agora é que vai ser. Quem não se lembra dos tanques Leopard a evoluírem nos ecrãs da cnn-internacional, esse órgão oficioso da democracy?...

E nós, os papalvos que supostamente andamos aqui para comer e calar (com o contributo inestimável da homuluncaria política e do jornalismo servil), engolimos estas patranhas, como, de resto, é de uso.

Será uma dúzia de pilotos ucranianos recém-formados no manejo do F-16 que irá defrontar a força aérea russa, com centenas de caças e outras aeronaves?

Aqui, uma tangente de um Sukhoi russo a um F-16 americano, que interceptava um Tupolev estratégico, também russo, perto do Alasca. Giro, não é?




2 versos de Alberto de Lacerda

«Tão poucas as lembranças que nos ficam / da beleza imortal que foi de outrora!»

«Véu», 77 Poemas (1955)

toda a escrita

«De logo quero avisar que não assumo qualquer responsabilidade pela precisão das datas, sempre fui ruim para as datas, elas me perseguem desde os tempos de colégio interno. Estudante de história, interessado nas figuras e nos feitos, esquecia as datas e eram as datas que os professores exigiam. A referência a ano e a local destina-se apenas a situar no tempo e no espaço o acontecido, a recordação.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)

«Os murmúrios da água, que pelos regatos vai, como um sangue robusto, espalhando juventudes na cultura, dizem às velhas árvores histórias duma suavíssima poesia; e pelos ramos tufados de verdura húmida, tenra, tamisada de cintilas solares, entra a repovoar-se a cidade dos ninhos, grande cidade moderna, com avenidas, concertos, five o'clock e toilettes de plumas, e exibições de caudas roçagantes. Ontem me dizia na Tapada um velho pintassilgo.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

«Nessa manhã hostil toda a campesina está deserta. À beira da estrada, as duas filas de altas e esbeltas árvores, martirizadas pelo frio, parecem sentinelas que não se fatigam nunca, guardando e vigiando este pedaço de terra francesa... / O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert» (A Capital, 29-III-1917), Repórteres e Reportagens de Primeira Página (s.d.)