quinta-feira, junho 27, 2024

caracteres móveis VIII - CÁRCERE INVISÍVEL

«Em longos anos de rotina diária, meu pai afeiçoara-se de tal modo ao armazém de panos onde era o principal empregado, que ali fazia inúmeros serões, gozando raivosamente a ausência do patrão. Nessa noite de Julho, ao regressar a casa, deve ter parado, atónito, no meio da rua deserta: embora passasse da meia-noite, havia, na janela da frente, um risco de luz vertical!» Francisco Costa, Cárcere Invisível (1949)

«Acima do portão, na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse nos lutos, ainda lá se lia uma data, 1654, avivada pelo caseiro, por mimo, no tempo da poda, a riscos de caco.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)

«Era a hora do estudo da tarde, e Lelito pensava. As Catilinárias abertas na carreira, o dicionário à direita, o caderno de significados à esquerda e o lápis à mão -- pareciam demonstrar que Lelito preparava a sua lição de latim. Mas Lelito não pensava nas Catilinárias. Na realidade, nem pensava.» José Régio, Uma Gota de Sangue A Velha Casa I (1945)

«Por um claro domingo de Julho, à hora da missa, um landau desembocava a trote no campo da Feira, em Guimarães, indo estacar em frente do palácio dos condes de Vila-Torre -- casarão envelhecido pelas chuvas e sóis de quase dois séculos, cuja frontaria de solar e convento tomava todo um lado da praça, hasteando sobre um portal enorme, de coiçoeiras denegridas, as armas nobres dos senhorios.» Carlos Malheiro Dias, Os Teles de Albergaria (1901)

«A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete.» Eça de Queirós, Os Maias (1888) 

2 comentários:

Manuel M Pinto disse...

«Além da francesia da forma, torna-se visível a quem compulse os seus primeiros escritos, que Eça de Queirós não punha grande recato em aproveitar-se do que era dos outros. Em aproveitar-se, chamando-lhe seu. Uma frase com sainete, uma adjectivação feliz, um pensamento singular; aquilo que é de bom quilate e por azar não brotou ao bico da pena; a imagem que assentaria como uma luva em tal ou tal lance da narrativa e que não ocorreu aos olhos do entendimento; a nota psicológica que vai a matar no indivíduo de tal e lhe dá carácter como o grão de beleza põe especial salero na face duma mulher bonita -- desde menino que se habituou a tirá-los para o seu cofre de jóias lá donde estivessem. E não seria ele capaz de forjar outras iguais, se não superiores? Se era! Pois que as tem de sua lavra, aquela pecha entra para o seu complexo de inferioridades, manifesto desde que pela primeira vez pegou da pena para exercer a maravilhosa sina. Até ao fim da carreira, Eça sofrerá de cleptomania literária.»
Aquilino Ribeiro, " Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais" (1949)

R. disse...

Já dizia não sei quem que os grandes roubam; os medíocres copiam...