sexta-feira, setembro 27, 2024

tempo de novela

«Um indivíduo assomou-se à janela duma das carruagens paradas e escarrou com estrépito. / -- Vê lá quem vai passando...! -- disse doutra janela uma voz rouca, num modo meio repreensivo meio de escárnio. / Rosa Maria fora obrigada a correr uns passinhos, e o embrulho da velha Leocádia escorregou-lhe; sentiu-se dolorosamente vexada, pensou: «Se a minha mãezinha fosse viva...» José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941)

«A mulher volvera à sua lembrança. Continuava a vê-la sentada ao sol, os pés sem tocar no chão, as pernas a badalar, a irem e virem sob o banco, como se estivessem num trapézio. Dir-se-ia que as suas pernas tinham, nessa hora, uma felicidade independente do tronco, todo um desejo de folgar que começava dos joelhos para baixo.» Ferreira de Castro, A Missão (1954)

«Infelizmente, corcovo -- do muito que verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade aos domingos, o uso de alguma roupa branca e vinte mil réis mensais.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

« -- Foi lebre ou foi cabrito o que Hanab comeu? -- cortando o despique, interrogou o juiz para a segunda testemunha, de ar tão pária como o réu, coveiro de ofício.
-- Foi lebre.
-- Como sabes?
-- Passei à porta dele e cheirou-me.
-- Perjuro, ladrão de sapatos de defunto, cheirou-te!... Tens a certeza que te cheirou e que era lebre?! Vê lá bem se não seria antes o traseiro dalgum cadáver, dos que costumas rebolar na cova para lhes roubares a mortalha, safado! -- rompeu Hanab a gritar. -- Acusas-me porque Hulda te rogou. Não andas metido com ela, não tendes o casamento tratado, cachorros, morcegos das sepulturas?»
Aquilino Ribeiro, "As Três Mulheres de Sansão". Novela.(1932)