II. História do macaco trocista e do elefante que não era para graças
«Aquela companhia de saltimbancos trazia entre outros animais um elefante, uma girafa e um macaco. O elefante era o arre-burrinho de todos; tocava-lhe fazer os trabalhos pesados e mais difíceis, pois além de muito forte e submisso não era peco em inteligência. Ia à lenha para o lume, à fonte buscar água que transportava numa caldeira suspensa da tromba, e quando mudavam de terra a ele cabia carregar com barracas, gaiolas e caixas em cima do lombo, enquanto a girafa puxava uma leve carrocinha e o macaco não fazia outra coisa senão divertir-se e mostrar-se engraçado a torto e a direito. Este bicho irrequieto não parava um instante; tão depressa subia pelo pescoço da girafa como, pendurado pelo rabo, saltava para a cernelha do elefante, não achando nada melhor do que ir sentar-se no planalto das suas orelhas, donde se baloiçava e despedia as chufas do costume: -- Patudo, orelhudo, nada lãzudo, tromba de canudo, andas ou fazes que andas? Minha lesma de paquiderme!... O elefante gostava pouco daquelas facécias e mais de uma vez estivera para atirar com ele ao chão; valera-lhe a intervenção da girafa que aparecia sempre com a bandeira da misericórdia nas disputas que estalavam entre os dois. Mas tantas vezes vai o cântaro à fonte que deixa lá a asa. Um dia o elefante perdeu as estribeiras com a mofa: furioso agarrou no símio pelo rabo e fê-lo andar à volta com toda a velocidade como se tratasse de lançar a pedra duma funda. E animado do fôlego todo jogou-o ao ar. O macaco, como era leve, subiu, subiu muito alto e direito ao céu; descreveu, em seguida, graciosa e lenta trajectória e foi cair por cima duma macieira camoesa que estava mesmo a vergar com as maçãs. (...)» * * «... -- Não é a primeira vez que o elefante perde as estribeiras com o bigorriha do mono sábio. Noutro dia, como vim a descobrir, fê-lo viajar pelos espaços interplanetários... -- Que horror! -- soltou a nora. -- Se não é a alma de acrobata com que nasceu, estoirava... -- E que prejuízo não era! -- exclamou o ginasta. -- O elefante escandaliza-se com as partidas deste farsante das dúzias e anda mal. Pois se foi bicho que veio ao mundo para rir de si e dos outros, arremedar os doutores e os asnos, imitar os pedantes e os mentecaptos, ser doido varrido do sol-nado ao sol-pôr, admira que lhe zombe da tromba, que parece, sim, um canudo, e é mais hábil que a mão dum relojoeiro; lhe faça troça das orelhas, que podem servir de alpendre, e são os pavilhões mágicos que lhe canalizam para o ouvido os ruídos subtis e longínquos da floresta; lhe meta a ridículo os pés, que de facto não chegam em elegância aos do Florêncio, bailarino, mas são capazes de entrar num armazém de louça, dar volta e sair sem quebrar um prato; não possa levar à paciência a casca de sobreiro que lhe reveste o corpo e, todavia, tal epiderme é mais susceptível às moscas e aos parasitas do que a samarra do macaco?!! -- Castiga, homem -- sentenciou a mulher.--Quem dá o cacau dá o catatau. -- Não; atendendo a que foi o elefante quem salvou o bugio, desta feita não se castiga. Mas se torna a fazer com ele a roda infernal, se torna a jogá-lo à lua, está oito dias sem comer uma só cesta de maçãs! E quanto a ti, irmão degenerado -- acrescentou, virando-se para o bugio -- se implicas novamente com o elefante tonitruante, oito semanas não avezas cascas de banana. Quero as pazes feitas e já! Dêem um abraço... Embaçado mas submisso, o elefante travou do camarada, enrolado na tromba como menino de berço. E, de mansinho, por três vezes, o elevou ao ar e baixou. Incorrigível ou contrafeito, o símio guinchava: -- Não me apertes, alma de Belzebut, descendente de mamute! --Caluda, macaco sem caco -- dizia o elefante -- que apanhas para o tabaco. -- Ai, larga-me, tromba de bacamarte, orelhas de estandarte! Larga-me!!!»
Aquilino Ribeiro, "Arca de Noé, III Classe" (1935). Contos para crianças.
II. História do macaco trocista e do elefante que não era para graças
ResponderEliminar«Aquela companhia de saltimbancos trazia entre outros animais um elefante, uma girafa e um macaco. O elefante era o arre-burrinho de todos; tocava-lhe fazer os trabalhos pesados e mais difíceis, pois além de muito forte e submisso não era peco em inteligência. Ia à lenha para o lume, à fonte buscar água que transportava numa caldeira suspensa da tromba, e quando mudavam de terra a ele cabia carregar com barracas, gaiolas e caixas em cima do lombo, enquanto a girafa puxava uma leve carrocinha e o macaco não fazia outra coisa senão divertir-se e mostrar-se engraçado a torto e a direito. Este bicho irrequieto não parava um instante; tão depressa subia pelo pescoço da girafa como, pendurado pelo rabo, saltava para a cernelha do elefante, não achando nada melhor do que ir sentar-se no planalto das suas orelhas, donde se baloiçava e despedia as chufas do costume:
-- Patudo, orelhudo, nada lãzudo, tromba de canudo, andas ou fazes que andas? Minha lesma de paquiderme!...
O elefante gostava pouco daquelas facécias e mais de uma vez estivera para atirar com ele ao chão; valera-lhe a intervenção da girafa que aparecia sempre com a bandeira da misericórdia nas disputas que estalavam entre os dois. Mas tantas vezes vai o cântaro à fonte que deixa lá a asa. Um dia o elefante perdeu as estribeiras com a mofa: furioso agarrou no símio pelo rabo e fê-lo andar à volta com toda a velocidade como se tratasse de lançar a pedra duma funda. E animado do fôlego todo jogou-o ao ar.
O macaco, como era leve, subiu, subiu muito alto e direito ao céu; descreveu, em seguida, graciosa e lenta trajectória e foi cair por cima duma macieira camoesa que estava mesmo a vergar com as maçãs. (...)»
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«... -- Não é a primeira vez que o elefante perde as estribeiras com o bigorriha do mono sábio. Noutro dia, como vim a descobrir, fê-lo viajar pelos espaços interplanetários...
-- Que horror! -- soltou a nora.
-- Se não é a alma de acrobata com que nasceu, estoirava...
-- E que prejuízo não era! -- exclamou o ginasta.
-- O elefante escandaliza-se com as partidas deste farsante das dúzias e anda mal. Pois se foi bicho que veio ao mundo para rir de si e dos outros, arremedar os doutores e os asnos, imitar os pedantes e os mentecaptos, ser doido varrido do sol-nado ao sol-pôr, admira que lhe zombe da tromba, que parece, sim, um canudo, e é mais hábil que a mão dum relojoeiro; lhe faça troça das orelhas, que podem servir de alpendre, e são os pavilhões mágicos que lhe canalizam para o ouvido os ruídos subtis e longínquos da floresta; lhe meta a ridículo os pés, que de facto não chegam em elegância aos do Florêncio, bailarino, mas são capazes de entrar num armazém de louça, dar volta e sair sem quebrar um prato; não possa levar à paciência a casca de sobreiro que lhe reveste o corpo e, todavia, tal epiderme é mais susceptível às moscas e aos parasitas do que a samarra do macaco?!!
-- Castiga, homem -- sentenciou a mulher.--Quem dá o cacau dá o catatau.
-- Não; atendendo a que foi o elefante quem salvou o bugio, desta feita não se castiga. Mas se torna a fazer com ele a roda infernal, se torna a jogá-lo à lua, está oito dias sem comer uma só cesta de maçãs! E quanto a ti, irmão degenerado -- acrescentou, virando-se para o bugio -- se implicas novamente com o elefante tonitruante, oito semanas não avezas cascas de banana. Quero as pazes feitas e já! Dêem um abraço...
Embaçado mas submisso, o elefante travou do camarada, enrolado na tromba como menino de berço. E, de mansinho, por três vezes, o elevou ao ar e baixou. Incorrigível ou contrafeito, o símio guinchava:
-- Não me apertes, alma de Belzebut, descendente de mamute!
--Caluda, macaco sem caco -- dizia o elefante -- que apanhas para o tabaco.
-- Ai, larga-me, tromba de bacamarte, orelhas de estandarte! Larga-me!!!»
Aquilino Ribeiro, "Arca de Noé, III Classe" (1935). Contos para crianças.