«-- Compreende? / Digo que sim, que compreendo, intrigado pela confidência e aquele olhar que mostra o desespero de quem anseia por absolvição. Mas custa a acompanhá-lo no emaranhado de casos e pensamentos, de mágoas, o comezinho misturado ao trágico, a indiferença de tornar simultâneos o passado e o presente.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (1903)
«A torre -- a porta da Sé com os santos nos seus nichos --, a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando tudo.» Raul Brandão, Húmus (1917)
«Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida. / O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que quando calhava jantar pelas sete horas quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst., 1982)
«Camões, fidalgo ou plebeu, cortesão ou homem da rua, Céladon de moças da rainha ou fragoeiro de rascoas, morigerado ou amigo da arruaça -- tudo é pouco à face das Rimas e muito mais dos Lusíadas. O que me não consente o ânimo é que, havendo-me debruçado sobre o mar de dor, fel e vinagre, que foi a sua existência, sem tentar olhar até os limbos, se dê o processo por concluso, julgado como está por Caifaz. Então o poeta "viveu e morreu pobre e miseravelmente", isto é, réprobo ao professor, ao poeta do Paço, ao sacerdote, ao áulico, e havíamos de aceitar que todos eles, inclusive os homens de bem, apagassem a torpeza cometida, que mais não fosse a torpeza de tê-lo ignorado, e viessem à praça exibir-se como seus epígonos? O mesmo seria aceitarem as almas crentes que a cambada que julgou Cristo, fariseus, saduceus, potestades do sinédrio e da sinagoga, saíssem à varanda a limpar as mãos na toalha branca, ilibando-se:
ResponderEliminar-- Vejam, Vejam! Não o matámos. Isso foi um pesadelo. Deixámo-lo bem ágil, bem fresco, bem disposto subir ao Céu.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões-Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)