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domingo, setembro 10, 2023
"O Essencial sobre Bocage", de Daniel Pires
Quem me dera poder lá estar, mas um compromisso no mesmo dia, impedem-me de ouvir e saudar Daniel Pires, um dos grandes investigadores da história literária portuguesa.
«Abalámos, eu e D. Estefânia numa só bancada, apesar dos rogos de meu mestre, que reclamava para si o dever de ir menos comodamente que ela. Eu nunca viajara de automóvel e aquele, magnífico, macio de molas e de estofo, deslizava imperceptivelmente sobre a terra. E dava-me a impressão de veludoso, como quando nadava na água dormente duma represa. Aquele perfume inebriante que ensopara minha cama numa noite de Quaresma, deparava-se-me ali na luxúria do carro, vestido de almofadões e perfumoso de flores como um ninho de pecado. Era ele, embora o atravessasse o aroma daquela braçada de violetas que iam na anilha ao lado de meu mestre. E a recordação da noite aziaga fez-me rir. A casamata e, horas depois aquele conforto pareciam jogo da natureza, que pagava a tortura da primeira com a voluptuosidade do segundo. (...) A estrada estava deserta, e o vu-vu do automóvel corria sobre ela deixando-a a dormir. Os postes telegráficos saltavam rápidos, cortejando-nos. Parecia que as giestas piorneiras fugiam admiradas. Meu mestre, depois de celebrar a bondade da fidalga e os processos da mecânica, abriu o Breviário. E, apoiando-se à portinhola para colher toda a claridade fugitiva do crepúsculo, pôs-se a rezar as Horas. D. Estefânia desdobrou um xaile-manta e deitou-lho sobre os joelhos; desdobrou um segundo e comigo se envolveu nele. Ia escusar-me mas no espelho defronte, o grande sorriso dela protestava a vanidade dos meus rebates. Seu corpo encostara-se ao meu, mais que tudo a perna, que eu sentia quente e roliça para lá da meia subtil. O xaile-manta unia-nos em roscas sedosas de cobra; e, não me sendo lícito nem possível esquivar-me, era-me caro o gozo que me penetrava. À medida que o calor da sua carne se infundia em minha carne, o abrasamento trepava em mim, secando-me os lábios, fazendo-me tamborilar as meninges. Figurava-se-me que sua coxa premia a minha; mas não; mais vagaroso apenas, o sorriso dela, entreaberto, enrubescia o espelho.» Aquilino Ribeiro, "A Via Sinuosa" (1918)
«Abalámos, eu e D. Estefânia numa só bancada, apesar dos rogos de meu mestre, que reclamava para si o dever de ir menos comodamente que ela. Eu nunca viajara de automóvel e aquele, magnífico, macio de molas e de estofo, deslizava imperceptivelmente sobre a terra. E dava-me a impressão de veludoso, como quando nadava na água dormente duma represa. Aquele perfume inebriante que ensopara minha cama numa noite de Quaresma, deparava-se-me ali na luxúria do carro, vestido de almofadões e perfumoso de flores como um ninho de pecado. Era ele, embora o atravessasse o aroma daquela braçada de violetas que iam na anilha ao lado de meu mestre. E a recordação da noite aziaga fez-me rir. A casamata e, horas depois aquele conforto pareciam jogo da natureza, que pagava a tortura da primeira com a voluptuosidade do segundo.
ResponderEliminar(...) A estrada estava deserta, e o vu-vu do automóvel corria sobre ela deixando-a a dormir. Os postes telegráficos saltavam rápidos, cortejando-nos. Parecia que as giestas piorneiras fugiam admiradas.
Meu mestre, depois de celebrar a bondade da fidalga e os processos da mecânica, abriu o Breviário. E, apoiando-se à portinhola para colher toda a claridade fugitiva do crepúsculo, pôs-se a rezar as Horas. D. Estefânia desdobrou um xaile-manta e deitou-lho sobre os joelhos; desdobrou um segundo e comigo se envolveu nele. Ia escusar-me mas no espelho defronte, o grande sorriso dela protestava a vanidade dos meus rebates. Seu corpo encostara-se ao meu, mais que tudo a perna, que eu sentia quente e roliça para lá da meia subtil. O xaile-manta unia-nos em roscas sedosas de cobra; e, não me sendo lícito nem possível esquivar-me, era-me caro o gozo que me penetrava.
À medida que o calor da sua carne se infundia em minha carne, o abrasamento trepava em mim, secando-me os lábios, fazendo-me tamborilar as meninges. Figurava-se-me que sua coxa premia a minha; mas não; mais vagaroso apenas, o sorriso dela, entreaberto, enrubescia o espelho.»
Aquilino Ribeiro, "A Via Sinuosa" (1918)