SEGUNDA-FEIRA, 31 DE AGOSTO (1914) «Chega-me nova batelada de jornais portugueses. À primeira vista parece que Portugal se tornou uma tortulheira de agentes provocadores ao serviço da França e da velha aliada. Uma gazeta publica com não fingida sisudez o seguinte: “Dizem os jornais de Paris que no actual momento histórico as nações pequenas são obrigadas a pronunciar-se a favor dum dos grupos beligerantes, pois no ajuste de contas as indecisas terão de haver-se com os vencedores. Um desses artigos é assinado por Pichou, ministro dos Negócios Estrangeiros. Assim garante-se que mais tarde ou mais cedo a Turquia pagará com língua de palmo a sua incerteza”. O telegrama traz a marca digital do Jornalista adscrito à publicidade da Legação. Este expediu-o, João Chagas inspirou-o, tão certo como ser o seu teor invenção pura. Nem os jornais de Paris deram curso a disposições que seriam descabidas e de todo impolíticas na hora em que o argumento máximo invocado contra a Alemanha está na violação da Bélgica, nem a Turquia é ameaçada pela sua perplexidade, mas, sim, por afoitamente pender para os Impérios Centrais; tão-pouco Pichou escreveu, nem é homem para escrever, com pena tão farisaica e alvar. (...) Outra gazeta anuncia em parangona: "Os aliados derrotam o inimigo em frente de Charleroi". Mais adiante, porque se esqueça ou o cálamo tenha mudado de mãos, epigrafa: "Os alemães ocupam Charleroi". Esta graciosa contradição lembra-me certa anedota que ouvi contar. Tem por teatro uma das várias republiquetas da América Central em guerra com o vizinho. O comandante-chefe, vitorioso como todos os comandantes, telegrafa ao governo neste teor: “O inimigo retira, nós adiante dele.” (...) Em matéria internacional, por efeito da mistificação dos seus noticiaristas, falta de qualidades de análise e ignorância histórica, Portugal, na sua maioria, tem tomado sempre o partido dos vencidos. Não é deslustre tomar este partido desde que se faz com determinada consciência. Mas é que as simpatias do português, por uns pruridos de pimpão que nutre ainda, não vão ao fraco nem ao que representa a causa da justiça; vão em geral ao teso, ao brutamontes, àquele de quem, em identidade com o seu paladar de inconsciente, lhe disseram que devia vencer. Assim a Espanha ia passar uma boa rasteira aos ianques; os bóeres dariam xeque ao leopardo; os russos iam comer os japoneses em calda de caviar. E o pobre bacoco, com Cervera no fundo, com os sul-africanos feitos em postas, com os russos artisticamente fornecidos em pasto aos tubarões, esperava ainda a vitória do seu almejo, da sua gana, com que sonhara, pela qual se batera na botica, no café, na repartição. Desgraçado, como não havia de esperar, se lho inculcara a gazeta, se as derrotas lhe eram apresentadas como triunfos, se cada passo do seu favorito aproximava o grande dia da glória! Como não havia de esperar, ninguém lhe tendo dito nem havendo por moto próprio chegado à conclusão de que o jornal português, por via de regra, lido às avessas é que está certo!?»
Aquilino Ribeiro, "É A GUERRA-Diário", (Paris, 1914). Publicado em 1934.
SEGUNDA-FEIRA, 31 DE AGOSTO (1914)
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Outra gazeta anuncia em parangona: "Os aliados derrotam o inimigo em frente de Charleroi". Mais adiante, porque se esqueça ou o cálamo tenha mudado de mãos, epigrafa: "Os alemães ocupam Charleroi". Esta graciosa contradição lembra-me certa anedota que ouvi contar. Tem por teatro uma das várias republiquetas da América Central em guerra com o vizinho. O comandante-chefe, vitorioso como todos os comandantes, telegrafa ao governo neste teor: “O inimigo retira, nós adiante dele.”
(...) Em matéria internacional, por efeito da mistificação dos seus noticiaristas, falta de qualidades de análise e ignorância histórica, Portugal, na sua maioria, tem tomado sempre o partido dos vencidos. Não é deslustre tomar este partido desde que se faz com determinada consciência. Mas é que as simpatias do português, por uns pruridos de pimpão que nutre ainda, não vão ao fraco nem ao que representa a causa da justiça; vão em geral ao teso, ao brutamontes, àquele de quem, em identidade com o seu paladar de inconsciente, lhe disseram que devia vencer. Assim a Espanha ia passar uma boa rasteira aos ianques; os bóeres dariam xeque ao leopardo; os russos iam comer os japoneses em calda de caviar.
E o pobre bacoco, com Cervera no fundo, com os sul-africanos feitos em postas, com os russos artisticamente fornecidos em pasto aos tubarões, esperava ainda a vitória do seu almejo, da sua gana, com que sonhara, pela qual se batera na botica, no café, na repartição. Desgraçado, como não havia de esperar, se lho inculcara a gazeta, se as derrotas lhe eram apresentadas como triunfos, se cada passo do seu favorito aproximava o grande dia da glória! Como não havia de esperar, ninguém lhe tendo dito nem havendo por moto próprio chegado à conclusão de que o jornal português, por via de regra, lido às avessas é que está certo!?»
Aquilino Ribeiro, "É A GUERRA-Diário", (Paris, 1914). Publicado em 1934.
Ontem como hoje.
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