quinta-feira, agosto 17, 2023

a arte de começar

 «Era a hora do estudo da tarde, e Lelito pensava. As Catilinárias  abertas na carteira, o dicionário à direita, o caderno de significados à esquerda e o lápis à mão -- pareciam demonstrar que Lelito preparava a sua lição de latim. Mas Lelito não pensava nas Catilinárias. Na realidade, nem pensava. Melhor fora dizer que vogava ao sabor de um vago devaneio melancólico, através do qual a saudade de casa transparecia num persistente vaivém de recordações, aliada a uma como viscosa, angustiosa, obscura sensação de pavor. Tal pavor, ainda Lelito fugia de o confessar a si próprio; mas há três dias que o perseguia; e há seis que Lelito chegara. Há seis que neste mesmo salão fingia, a esta mesma hora, preparar as lições do dia seguinte.» José Régio, A Velha Casa I -- Uma Gota de Sangue (1946)

4 comentários:

  1. António Pedro
    [Cidade da Praia, Cabo Verde, 1909 - Moledo do Minho, Caminha, 1966]
    Poeta, romancista, autor e encenador teatral, crítico de arte, jornalista, editor e também caricaturista, pintor, escultor e ceramista.
    Faleceu há 57 anos: 17-08-1966.
    António Pedro da Costa foi o primeiro a dar o título de "Mestre" a Aquilino Ribeiro!

    Dedicatória da sua obra "APENAS UMA NARRATIVA", datada de Novembro de 1941: «DEDICATÓRIA ao senhor Aquilino Ribeiro»

    «Mestre:

    «Toda a gente vai ficar espantada com a dedicatória deste livro e com este invocativo que tomo em gosto tornar público, não com sanha de discípulo que não sou, mas com respeito de homem de ofício que sabe quem no merece. Toda a gente vai ficar espantada e pouco isso me importaria se entre essa toda-a-gente não estivesse, como está por certo, o meu Amigo. Eis a razão por que não honro apenas com o seu nome esta folha e me parece necessário explicar-lhe porque o faço.
    Há ainda quem tenha a mania de distinguir arte moderna e arte antiga e quem nesta distinção se compraza, ou viva desta distinção. Aqui, público e raso, me confesso do pecado de a ter já feito para tornar mais clara certa confusão entre bom e mau. O que há com arte, com artistas e com tudo, cabe apenas nestas duas espécies. O meu Amigo é dos bons e eu faço por merecer-lhe a companhia. O resto são diferenças que dizem respeito à sua educação e à minha, ao seu gosto e ao meu, à sua Beira de desvirgadas, padres, lobos e almocreves e ao meu Minho de cantorias e emigrantes, milho verde, leiras pequenas, sovinas e fantasmas líricos; o resto, e sobretudo, são coisas que dizem respeito àquelas pulgas que cada um tem seu modo de matar; o resto, ainda, perdoe-me dizer-lho, tem com a sua idade e com a minha idade. E se, com tão oposta educação estética, tão diferente gosto, cenário de infância tão díspar, tão discrepante forma de matar pulgas, idade para ser seu filho, quiser saber porque o admiro, deixe-me lembrar-lhe que escreveu o romance da raposa raposeca, senhora de muita treta, e do galo galaroz, perninhas de retroz, que contou como era a terceira classe da arca de Noé e, também, às vezes, se deixa empapar em sonho, como ninguém, em certas páginas da Aventura Maravilhosa e de outros livros – um sonho por vezes revesso nas palavras saborosas que só tolos vêem por fora, como chuvinha bonita em que não sabem molhar-se.
    Não há arte moderna nem antiga. Os artistas é que são modernos e antigos com relação ao momento, e os antigos para o seu momento são sempre maus e sempre errados. O seu momento, Aquilino Ribeiro, ninguém o honrou como V.. Foi a volta à terra depois da especulação, a volta ao gosto infantil depois da pedagogia parva, a volta ao sonho é a epopeia depois da crítica e da caricatura. A Academia com que o insultaram (e em que companhias, Deus do céu!) mais a mereciam certos "modernos" que conhecemos – soldados uniformizados, como os outros, satisfeitos de abotoarem o mesmo dólman com botõezinhos de outra cor.»
    Lisboa, Novembro de 1941.»

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  2. É um belíssimo texto do António Pedro. E como teria recebido o Aquilino essa narrativa?

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  3. AQUILINO RIBEIRO
    No programa de rádio «O Perfil de Um Artista», de Igrejas Caeiro, 1957.
    Nessa entrevista, emitida em 16 de Julho de 1957, Aquilino disse:

    «I. C. — O que é que sentiu, quando pela primeira vez o trataram de Mestre?
    A. R. — Ah, não senti coisa nenhuma. Acho que é absurdo. Acho que o Mestre, devemos reservar essa palavra para os sapateiros. [Ri.]
    I. C. — Mas não há dúvida nenhuma que hoje se diz sempre Mestre Aquilino.
    A. R. — Nááá, isso é uma homenagem que eu não mereço, mas eu sinto-me sempre confundido com essas homenagens e não as peço e não as solicito, não.»

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  4. Não é fácil falar dos elogios. Também depende de quem os faz. Vindo de António Pedro, e nos termos em que foi feita, era uma grande consagração, vinda do mais destacado dos surrealistas.

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