quinta-feira, março 31, 2005

Escrever na areia - Garrett e este miserável país

A casa onde morreu Almeida Garrett está em risco, por abandono e especulação. Somos um país de alarves, ainda atiramos lixo pela janela do carro, não temos civilização para respeitar a memória espiritual de quem foi enorme no seu tempo, apesar de todas as humaníssimas fraquezas. Somos um país de lepes, canalha de mão estendida a quem encheram os bolsos sem antes ensinarem a mastigar de boca fechada. O resultado é esta vileza. Demolir aquilo é como arrasar a casa de Dickens em Londres, onde ele só viveu escassos meses, mas está lá, para ser visitada; é como destruir a casa de Balzac em Paris, onde o homem viveu com um nome falso, e mesmo assim não se livrava dos credores, e também lá está. Mas é pior, muito pior para nós, periféricos, provincianos, tão atrasados que até envergonha. Eles, ingleses e franceses têm tanto, e tantas casas, de Dickens, de Balzac, de Thackeray, de Hugo, de... E nós temos tão pouco...
Fiama, fotografada por Luísa Ferreira Posted by Hello

Antologia Improvável - Fiama Hasse Pais Brandão

CAMPO DE REFUGIADOS

A fugitiva disse que na terra
outrora sua havia árvores
e a sombra. Que outra fala
mais bela do que a sua,
mulher no chão seco,
solo sob o sol sem fim?

As Fábulas

quarta-feira, março 30, 2005

Caracteres móveis - Loti

Há anos que eu observo estas relações da gata e da tartaruga, sempre no meio dos mesmos cactos: todo este pequeno mundo de animais e de plantas continua a sua tranquila existência no lar, enquanto eu parto para longe, a correr e a consumir a minha vida; enquanto as pessoas veneradas e queridas que rodearam a minha infância desaparecem pouco a pouco e fazem com que a casa fique maior e mais vazia...
Suleima

terça-feira, março 29, 2005

Piratas

A figura do Barba Ruiva exerceu sempre sobre mim um fascínio a que não foram alheios o traço de Victor Hubinon e a destreza narrativa do grande Jean-Michel Charlier. Apesar disso, o poder caricatural duma certa dupla Albert-René foi tal, que não consigo pegar num álbum de aventuras do comandante do «Falcão Negro» sem que me venha à memória aquela angustiosa interjeição: «Os gau!... Os gaugau!...»

Caracteres móveis - Drummond

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Carlos Drummond de Andrade, Procura da Poesia

Antologia Improvável - Eugénio de Castro

EPÍGRAFE

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...

A Sombra do Quadrante

domingo, março 27, 2005

Aforismo

Só os fortes têm a capacidade de ilusão. Aos fracos resta-lhes a vontade, nunca plenamente conseguida, de se iludirem.

sábado, março 26, 2005

Caracteres móveis - Malraux

«O sofrimento não pode ter sentido senão quando leva à morte, e leva quase sempre.»
A Condição Humana

José Tolentino Mendonça

A entrevista ao último JL mostra que um dos nossos maiores poetas é também um humanista, muito provavelmente um ser de excepção. Reconfortante.

John Bonham

Ouvir «Fool in the rain» outra vez, do último LP de originais dos Led Zeppelin. Conceder que a morte de Bonham teria de significar o fim daquele quarteto fantástico. Quando, em 1979, me preparava para começar a apreciá-los.

sexta-feira, março 25, 2005

Escritório

e pareceu-me que não devia deixar para trás os sons e as imagens que me vão acompanhando
registá-los é pagar o tributo que a mim próprio devo pelas escolhas que fiz
oh, nada de excessivamente intenso, e muito menos de exclusivo, vereis,
mas a minha vida seria outra se nunca ouvisse o tempo infindo que vai do ataque orquestral à entrada do piano no primeiro concerto de Brahms, Barbirolli e Barenboim, no caso,
ou o coral sintetizado de Tony Banks em Selling England by the Pound,
e toda diferente, não fora a leitura dos dois volumes da edição Castilho da Correspondência do Eça, entre o Estoril e o Cais do Sodré, ainda sem metro, e do Tintim (com m) no País do Ouro Negro, em velha tiragem da Flamboyant
este o registo, entre um soneto de Antero e um solo de Jimmy Page
o mais será escrever na areia

Ricardo António Alves