terça-feira, setembro 30, 2014

da bolsa da avó Francisca

«Por baixo da grande saia rodada, a avó Francisca prendia uma enorme algibeira, da qual tirava as coisas mais incríveis: a caixinha de prata do simonte, o branco lenço de linho para assoar, que o tabaqueiro era vermelho, de meio côvado, e com ramagens, metido na cintura sob o avental; um molho de chaves pequenas e vários tamanhos para as gavetas do toucador, dos armários das cómodas; o rosário de caroços de azeitona das oliveiras que deram sombra ao meigo e triste Nazareno, e seu crucifixo de metal amarelo, que o Reitor do Ermeiro lhe trouxe da Terra Santa e foi benzido pelo Patriarca de Jerusalém; a bolsinha de malha de prata para os tostões e as outras moedas de valor, um saquitel de pano com os trocos de cobre e a chave dourada do oratório D. João V que tinha um Cristo de marfim, muita da devoção da mãe da avó Francisca e ao qual a piedosa senhora fizera a promessa de lâmpada perpétua por o marido voltar são e escorreito das guerras do Napoleão.»

João Sarmento Pimentel, Memórias do Capitão (1967)

Hong Kong, duas ou três perguntas

Quando uma ditadura recua, abre um precedente que se instala como um vírus. Não recuando e mantendo-se o braço-de-ferro, pode a China dar-se ao luxo de qualquer coisa parecida com Tiananmen? Que ela tem poder para enfrentar o mundo, tem-no, decerto; mas terá poder para enfrentar os mercados sobre os quais tudo perigosamente assenta? E, por outro lado, exercendo a sua milenar sabedoria, e fazendo jus ao mote de Deng Xiaoping um país, dois sistemas, terá margem para justificar esse recuo? Irá ainda a tempo?  

segunda-feira, setembro 29, 2014

RUSSKIY KOVCHEG / A ARCA RUSSA, Aleksandr Sokurov






“ Uma captura de eternidade ("Estamos condenados a viver eternamente" -- voz off final); "os vivos eternos" referidos numa cena de quotidiano na "Galeria dos Flamengos". ”

a propósito das primárias do PS

Deixa-me cá ver o que ficou da noite de ontem:

* Uma vitória esmagadora de António Costa, muito para além do que eu esperava;
* O entusiasmo de Ferro Rodrigues (já disse aqui que foi o melhor s-g do PS? Já, e digo outra vez);
* A dignidade de Seguro na hora da derrota, que não apaga a péssima campanha que fez;
* O brilho de Ana Catarina Mendes (ACM para líder parlamentar, já: tem o estofo e a solidez);
* O ar bonacheirão de Jorge Coelho; o trabalho da Comissão Eleitoral;
* Os adesivos do costume, que apareceram a saudar a "grande vitória do camarada António Costa", e os habituais compagnons a fazerem-se notados. Cáfila.
* O descaramento de Jerónimo de Sousa e a "farsa" eleitoral. Não está mal, para um partido que tenta manipular eleitorado (de forma muito canhestra, é verdade) com uma vigarice política chamada PEV; s-g do partido que enviou condolências ao povo norte-coreano pelo passamento da camarada ditador anterior (como se sabe, na Coreia do Norte as eleições não são uma farsa).

crónica de outro mundo

Sou da infância como se é de um país -- escreveu o grande Saint-Exupéry, que cito de memória. Um país distante, de que permanecem, nos mais afortunados, as reminiscências da descoberta da vida e do mundo, na presença rediviva dos que nos foram (nos são) queridos.
Este Terra Mãe, que traz o subtítulo Crónicas da Idade Menor, faz-nos participar dessa revelação jubilosa dos primeiros anos, ainda no conforto da segurança (e da disciplina) familiar. É, no conjunto, um relato na primeira pessoa da vida aldeã de lavradores humildes de Maceira, Leiria, saborosíssimos quadros contados com sabedoria,  aprumo  e instinto literários. E refiro-me expressamente a esse aprumo e a esse instinto, pois trata-se de um livro inicial de alguém que, por profissão, lidou durante anos com a linguagem árida dos códigos do Direito. Nada dessa sintaxe obscura nem dessa semântica labiríntica perpassa por aqui; antes um fio de água pura, uma singeleza que não é simplória ou desprovida de humor. Das pequenas transgressões aos medos infantis, umas e outros tomando proporções gigantescas ao palmo-e-meio que o narrador nos deu a conhecer em pouco mais de centena e meia de páginas; o fascínio diante dos oficiais de vários ofícios, de práticas ancestrais (a aldeia portuguesa da década de 1950 permanece, em muitas situações, num contexto de Antigo Regime [não confundir, por favor, com alusões ao Estado Novo!...]); as evocações impressivas da marginalidade, assumida ou forçada, dos pedintes, dos bêbados, dos deficientes mentais; o gozo das prendas da Natureza, a estesia dum nascer do Sol, o impacte do primeiro avistamento do mar, o universo bem delimitado da floresta, com os seus segredos e zonas de sombra; o convívio com pais, avós e demais família que connosco é partilhado. 
Dum ponto de vista mais utilitário, registe-se ainda a fonte que um livro como este é para quem, historiador ou antropólogo, se debruce sobre a vida rural duma aldeia da Estremadura em meados do século XX, facilitado pelo extremo rigor com que são mencionados artefactos, práticas culturais e espécimes animais e vegetais, na sua relação com o homem e no uso que deles se faz, ou fazia.
Crónicas de outro mundo, outro tempo, outro país, escritas por quem, sendo deste mundo, tempo e país logrará, disso estou certo, projectá-los no futuro, já que um livro como este tem um destino marcado, invejável destino: ser periodicamente revisitado ao longo dos tempos, como repositório de património imaterial da comunidade de que se originou.  

Nota: para que se saiba, conheço e tenho estima pelo Autor, circunstância que, mesmo involuntariamente, esteve sempre presente enquanto o lia. Credite-se, porém, a apreciação do texto acima, aos méritos do livro e ao espírito crítico de quem o recenseou.

domingo, setembro 28, 2014

sexta-feira, setembro 26, 2014

quadros de cor rica

«O rapaz magro esteve um momento raspando o chão com a bengalinha -- e foi andando devagar ao comprido da plataforma. Reparara agora no rapaz do campo, que supunha ia a Lisboa embarcar para o Brasil: e, sensibilizado pela face tão desolada da velha, ia pensando que o Emigrante seria um motivo tocante de poesia social: daria quadros de cor rica -- os vastos azuis do mar contemplados duma amurada de paquete, as noites saudosas longe, numa fazenda do Brasil, quando a lua é muito clara e os engenhos estão calados; e aqui no casebre da aldeia, os pais chorando à lareira e esperando os correios... Entrevia mesmo os primeiros versos:

                                                           Ei-lo que deixa o lar, a mãe chorosa,
                                                                        Os verdes campos, o casal risonho...»

Eça de Queirós, A Capital! (póstumo, 1925)

quinta-feira, setembro 25, 2014

para a história da infâmia

 As imagens repulsivas do montanhista Hervé Gourdel, homem franzino, manietado e a instantes de ser degolado, ficarão como documentos de uma das muitas infâmias que homens perpetraram contra outros homens. 
Parece-me que está na altura de os muçulmanos, nomeadamente os que vivem na Europa, se sobressaltarem e começarem a dar caça a estes animais raivosos nas suas próprias comunidades, sob pena de se tornarem ainda mais vítimas deles do que já são; e sob pena, ainda, de se tornarem duplamente vítimas: imagino a sede dos neo-nazis, dos cabeças-rapadas da Frente Nacional & demais  tresloucados...
Se as próprias comunidades islâmicas não tomarem a iniciativa de exterminarem a serpente que já há muito saiu do ovo, não tardará a que assistamos na "civilizada" Europa à perseguição ao muçulmano e a feios desacatos, cujas primeiras vítimas serão pessoas inocentes, com a religião errada na cidade errada.

quarta-feira, setembro 24, 2014

conversações cruzadas

«Às quintas e aos domingos ia aos chás de Adrião. Ficávamos tempo estirado cavaqueando -- e era para mim verdadeiro prazer tomar parte em duas conversações cruzadas sobre moda e câmbio. Algumas vezes Luísa falava de contos, versos, novelas. O marido ferrava no sono. Ou então, com enormes bocejos, lá se ia claudicando, a lamentar que a enxaqueca não lhe permitisse saborear um enredo tão filosófico. Ele entendia bem de comércio; o resto era filosofia.»

Graciliano Ramos, Caetés (1933)

onde, a propósito do frente-a-frente Costa-Seguro, se prefere falar da miséria política

Não vou gastar grande latim com o debate de ontem, até porque não sou eleitor. É claro que prefiro Costa, por óbvias razões, e não apenas pela inanidade de Seguro.
Costa tem o melhor e o pior do PS a acompanhá-lo. É o preço que pagam os potencialmente vencedores, transportarem consigo as lapas, os parasitas, os carreiristas, o que não acrescenta ou retira um átimo às suas qualidades e aos seus defeitos. Não tenho grandes ilusões, mas alimento alguma esperança, apesar de tudo.
Registo apenas, como toda a gente, um óptimo sinal: a barragem de críticas a Costa por parte dos comentadores esportulados,  e os ataquezinhos dos outros partidos: do CDS, tornado uma excrescência do seu líder, logo risível, patético e perigosa; ao PSD, o partido mais português de Portugal, manhoso, boçal e desenrascado (muito parecido, aliás, com o PS segurista); e ao PC, uma revivescência do Portugal salazarista -- a contrario, é claro, mas para pior (a Coreia do Norte, meu deus...). Quanto ao BE, nem sei; mas o BE não serve para nada, como já há bastante tempo dissera o próprio Costa.
Todos gostariam que Seguro ganhasse, e querem-no tanto que nem conseguem disfarçar. Mais uma boa razão para votarem em António Costa no domingo.  

terça-feira, setembro 23, 2014

as vozes dos deuses

«Os deuses falam aos homens com vozes diferentes, conforme eles são capazes de entender. Os jovens ouvem essas vozes no estrépito das batalhas ou no acto do amor, os velhos aprendem a escutar de outra maneira.»

João Aguiar, A Voz dos Deuses (1984)

para caber onde ia

«Ao recordar acontecimentos daquela época tão distante, ainda hoje desfila diante de mim a figura paquidérmica do pai do velho Joaquim Cardoso, marmeleiro na mão esquerda, quinzena desabotoada, e as abas largas a abanar, braço direito estendido e a mão espalmada, no gesto de arredar meio mundo para caber onde ia.»

João Sarmento Pimentel, Memórias do Capitão (1962)

sábado, setembro 20, 2014

sexta-feira, setembro 19, 2014

conspiração de cães

«Viu no fundo duma cova uma conspiração de cães à volta do cadáver dum homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu mas logo retomaram a presa; outros nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto.»

José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães (1982)

o exemplo da Escócia: civilização e barbáries de diferente jaez

Nestes tempos em que a barbárie nos é posta a todas as horas diante dos olhos, o referendo escocês foi altamente higiénico e retemperador, um exemplo para todo o mundo de como as questões políticas, por magnas que sejam, podem ser dirimidas de forma civilizada -- grandemente civilizada --, como o demonstraram escoceses e ingleses. Já houvera outros casos, como o do Quebeque e o da secessão da Checoslováquia. Mas este, pela hipermediatização que protagonizou, constituiu-se como acto político que não deixará de ser lembrado em processos semelhantes -- a começar pela Espanha, aqui ao lado, pese embora a diferença do enquadramento legal.
A verdade é que o eleitorado da Escócia se manifestou, e esse é que é o ponto. O resto é ignorância, estupidez e má-fé -- a começar pelo alívio dos mercados, como, acriticamente, já se papagueou hoje -- sem que percebam (ou queiram perceber) que pôr a política dos interesses permanentes dos povos nas mãos da especulação sem rosto nem pátria, e muito menos valores, só pode conduzir ao desastre -- como tem sucedido e continuará a suceder.
No fundo é um outro tipo de barbárie, menos sanguinária, mas igualmente destrutiva.

quinta-feira, setembro 18, 2014

A voz que se ergue no ermo / Dá uma torre às coisas
Vitorino Nemésio

quarta-feira, setembro 17, 2014

anões velhos

«As palmeiras de pouco porte incharam tanto que fazem pensar em anões velhos, doentes, com as suas cabeleiras, as suas folhas emaranhadas, caindo em arco até ao chão.»

Carlos de Oliveira, Finisterra (1978)

é dizer ao Sr. Putin que me agarrem ou vou-me a ele, ok?


Isto, quem o escreve, é o embaixador José Cutileiro -- homem culto, porém largamente obtuso --, a propósito de Putin.  A estes transportes belicistas, a esta diplomacia galharda e pundonorosa, a este entendimento macho das relações internacionais, prefiro a não menos culta, porém sagaz, opinião de Jaime Nogueira Pinto, que percebe o que está em causa.

mais um Woody Allen


Allen gosta de gozar com tudo o que gira à volta dos espiritismos e demais temas mediúnicos; quase tanto quanto troça dos enfatuados. O encontro entre uma charlatã engraçada e inofensiva e um cromo presunçoso mas simpático são motivo que baste para uma comédia, sempre agradável quando se trata de um filme seu. Colin Firth e Emma Stone, esplêndidos.

taciturnos

«Seguiam sem pressa, um pouco vergados sobre as próprias figuras, olhando mais o piso da estrada do que os amplos horizontes à sua volta. Grave preocupação os prendia, diferente das que lhes atribuiria quem por noivos enleados erradamente os tomasse.»

Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula (1938)

terça-feira, setembro 16, 2014

a vida, um milagre incompreensível

A categoria "romance histórico" está de tal modo gasta e desacreditada, que classificar como tal A Ponte Sobre o Drina (1945), de Ivo Andrić, constituiria um afunilar sem sentido de um grande romance -- um daqueles livros que enformam a cultura europeia e a civilização ocidental.  "Como, ocidental?", perguntarão os mais apressados que saibam do que se trata, -- "como, se o pano de fundo é a Bósnia, durante séculos otomana, tornada austríaca já muito dentro do século XIX, iugoslava, finalmente, após a Grande Guerra?"
"Ocidental, pois", digo eu, porque se desenrola numa zona de fronteira, em que se entrecruzam e convivem as três religiões do Livro, e porque desde o conceito do limes romano a Europa sempre se construiu no confronto-entendimento com o outro tornado próprio (os chamados bárbaros germânicos são disso a melhor ilustração).
Existe essa ponte (hoje, património da Unesco), mandada construir por Mehemed-Paxá, um antigo janízaro (tropa de elite de infantaria do sultão, recrutada coercivamente por entre as crianças cristãs); um sérvio que se alcandorou a grão-vizir (primeiro-ministro) do Império Otomano, cargo que ocupou durante catorze anos (1565-1579), até à sua morte, e durante a época de ouro imperial turca. Mehemed-Paxá era natural duma aldeia nas cercanias de Višegrad (hoje integrante da República Sérvia da Bósnia), e a ponte edificada torna-se via obrigatória de circulação entre Oriente e Ocidente. Sob a sua égide se desenrola este romance, abrangendo cerca de quatro séculos e uma multiplicidade de histórias de vida: «Muitos, muitíssimos de nós sentámo-nos ali, pousados sobre esta pedra bem talhada e polida, e, perante eternos jogos de luz nas montanhas e das nuvens do céu, desenredámos os fios dos anónimos destinos das gentes da cidade, eternamente os mesmos, mas eternamente emaranhados de uma nova maneira.»  
 A Ponte Sobre o Drina, ao longo da suas 380 páginas, faz-nos reflectir também sobre a acção do tempo, tão corrosiva no que respeita a sistemas de governo e a ideologias e tão lenta no transformar da essência humana, sabiamente reflectida naquilo que o escritor nos dá como «a filosofia inconsciente da cidade: a vida é um milagre incompreensível, porque se consome e dilui sem cessar, todavia continua rija e sólida "como a ponte sobre o Drina".» Andrić (Prémio Nobel de 1961) é um escritor fino, inteligente e brilhante;  

e Deus, onde está?

«Será este, Senhor, o dia do teu juízo, em que os cadáveres permanecerão insepultos; em que o céu se retira como um livro que se enrola; em que os anjos vaguearão nos ares e sete pragas lançarão; em que os selos serão quebrados; em que o fogo descerá sobre nós e em que os quatro cavaleiros, Senhor, os quatro cavaleiros do fim dos tempos, nos revelarão o estigma da nossa própria iniquidade? Onde estão, Senhor, os teus sinais? Os teus sinais, Senhor, que ninguém vê nunca, quando os julga ver em toda a parte?»

Sérgio Luís de Carvalho, Anno Domini 1348 (1990)

segunda-feira, setembro 15, 2014

A Escócia e os escroques do costume


À medida que quinta-feira se aproxima com toda a sua incerteza, cresce a pressão dos rapinantes do costume. Companhias e bancos ameaçam abandonar a Escócia, se ganhar o 'sim' à separação do Reino Unido. Como se um país com população semelhante em número à da Irlanda republicana, com as reservas petrolíferas que detém e com uma cultura universalmente reconhecível e admirada pudesse estar sujeita aos caprichos dos mercenários da finança e dos mercados...
Mesmo que vença o 'não', será, tudo o indica, uma vitória tangencial, o que significará que metade do eleitorado, a que se junta, no lado unionista, uma percentagem inquantificável que votará 'não' por desígnio político e não meramente utilitário -- significará que mais de metade dos escoceses  responderá com o devido desprezo aos argentários a soldo, gente de má fama.

P.S. A postura da rainha tem sido politicamente sábia -- além disso, a questão do regime, de momento, não está em causa. Obviamente, ela é contra a secessão; mas também sabe que a legitimidade histórica da sua dinastia não é inglesa, mas escocesa, pois Isabel II é uma Stuart. Questão politicamente complexa, simbolicamente nem por isso.

o segredo

«Foi justamente você quem no começo deste ano me revelou um segredo de que eu nunca tinha chegado a suspeitar. E me confiou mesmo a fórmula de certas circunstâncias indispensáveis à existência de um "amor feliz":
"Uma pessoa casada... só com outra pessoa casada."»

David Mourão-Ferreira,Um Amor Feliz (1986) 

sábado, setembro 13, 2014

estampa CLXXXIII - Willem de Kooning


Duas Mulheres no Campo (1954)
Hirshhorn Museu and Sculpture Garden, Washington

nas dobras da ventania

«O caudal da chuva parecia ter aumentado, a avaliar pelo som contínuo e crescente que se ouvia num trepidar rufado para lá dos vidros, mas trespassava-o a sereia de uma ambulância a desenrolar-se desesperadamente nas dobras da ventania.»

Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda (1988)

sexta-feira, setembro 12, 2014

o Alfa Romeo num saco de plástico

«O engenheiro reagia como se tudo ali no prédio lhe pertencesse, desde a porteira às caixas do correio e ao guarda-nocturno. A sua tirania abrangia os decibéis de quem regulasse o aparelho de rádio ou a TV para ouvir uma orquestra mais puxada à barulhaça. Todo fanicos, o tipo. Mas tinha um Alfa Romeo  de se lhe tirar o chapéu, que protegia metodicamente dos orvalhos com um resguardo de plástico. Enquanto os vizinhos se mofam, de manhã, para espevitar os motores, ele, triunfante e sarcástico, punha aquilo a estrondear ao primeiro contacto.»

Fernando Namora, O Rio Triste (1982)

quarta-feira, setembro 10, 2014

o nosso íntimo pessoal

«O nosso íntimo pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio. É o seu único caminho. O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é ajudá-lo a entregar-se a si mesmo. Com o seu íntimo pessoal cada um poderá estar em toda a parte, sejam quais forem as condições sociais, as mais favoráveis e as mais adversas. Sem ele, nem para fazer número se aproveita ninguém.»

Almada Negreiros, Nome de Guerra (1938)

terça-feira, setembro 09, 2014

dois fora-de-série

Dois fora-de-série, dois geniais, Chico Buarque e Gilberto Gil (vi ambos no Coliseu, com uns trinta anos de intervalo...). A autoria está repartida, embora me pareça que a letra é claramente buarquiana quanto ao fundo, mas também pela forma exímia da rima interna. A música é limpidamente de Gil, com uma alegria e um balanço inconfundíveis.
Do álbum Chico Buarque (1989).



Fender vs. Gibson: Rick Parfitt e Andy Powell



domingo, setembro 07, 2014

sábado, setembro 06, 2014

Mistérios a pouco e pouco vão morrendo
Edmundo de Bettencourt

sexta-feira, setembro 05, 2014

ninguém como ele, Satchmo dixit

Louis Armstrong terá dito que ninguém tocava como Bix. E se ele o disse, está chancelado. Ouçam bem esta fera de curta vida (1903-1931) e à trompete, em gravação de 5 de Outubro de 1927. 

sem fazer batota

«Russell, com a sua prosa esbelta, voltaireana e saudavelmente impertinente, lavava-me dos contorcionismos característicos do pior que se fazia nas universidades e desnudava, sem pudor, uma inteligência destemida, que não precisava de uma toilette pedante e, afinal, pirosa, para se impor. Por essa altura também desencantei numa estante não muito ostensiva da "Minerva Central", que voltei a visitar com regularidade, um exemplar, de poche, que ainda conservo, do romance La Peste, de Camus. A beleza descascada do seu estilo solar (mas que não evitava a sombra), a honestidade nua e sedutora daquela linguagem e daquelas emoções -- tudo, mas tudo ia direito ao alvo, sem fazer batota.»

Eugénio Lisboa, Acta Est Fabula -- Memórias-III-Lourenço Marques Revisited (1955-1976) (2013)

quinta-feira, setembro 04, 2014

Beethoven

Da grande traição  que foi a surdez, a 5.ª alterna entre a revolta e a confiança. Este scherzo parece-me ser a transição entre os dois estados de espírito dessa grande força que foi Beethoven. A minha versão é a de von Karajan, talvez mais luminosa que a de Toscanini, que deixo em baixo.

quarta-feira, setembro 03, 2014

nenhum era o menino jesus

«Nunca fora um daqueles mendigos certos, submissos, de carreira e clientela. Havia-os aos bandos, ou calcorreando em bicha de segunda a sábado, por esse Portugal. Aos domingos paravam às portas das igrejas. A missa estimulava a bondade. Trocavam entre si a memória de lamúrias e desenganos, para contar às pessoas sensíveis. Algumas famílias tinham o seu pobrezinho de estimação, reservando-lhes as melhores moedas, com um prato  de sopa e um naco de pão. Os miseráveis atraíam mais os miúdos, que os esperavam à porta de casa em excitação e curiosidade. Mas não era, nenhum deles, o Menino Jesus.»
José de Matos-Cruz, os EntreTantos (2003)

L'amour looks something like you

Do álbum de estreia, The Kick Inside (1978), cheio de músicos da cena prog e transbordante de aplomb, como este L'Amour... demonstra.
Junto uma versão do Quintana Ensemble -- precedida duma composição do compositor barroco morávio Gottfried Finger -- com a bela voz da harpista checa Katerina Ghannuda e uma interessantíssima versão dum harpista italiano, que, no YouTube, se identifica como Jongleurz.


terça-feira, setembro 02, 2014

um estado crónico e manso

«Foram quatro anos de luta incessante. Depois, a hostilidade prolongou-se, mas num estado crónico e manso, como sucedia geralmente às guerras europeias antes do fim do século XVIII.»

Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I (1891)

o zumbido do mar

«Toda a memória lhe vem das janelas em guilhotina da 1.ª Classe, para onde tantas vezes olhou em vão, na esperança de que viessem socorrê-la. As irmãzinhas haviam-na abandonado num camarote sem ar e sem vigias: uma luz mortuária por cima da cabeça, sacos de plástico para o enjoo arrumados numa bolsinha fatídica, o beliche estreito e a mistura dos cheiros que só existem nos barcos -- salitre, tintas quentes e o amoníaco entorpecente das latrinas muito próximas. Dos porões, chegavam-lhe aos ouvidos atordoados o choro das vacas e das cabras, os urros dos vómitos e o lamento contínuo de muitas outras mulheres. Depois entrara nela o zumbido que o mar transmite às paredes trémulas dos barcos.»
João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas (1988)

segunda-feira, setembro 01, 2014