terça-feira, junho 03, 2014

por caridade

«Retrato de Mónica». Retrato desapiedado duma mulher fútil que vive, não para os outros, mas que se alimenta dos outros, do que consegue extrair dos outros em benefício próprio, o que é muito pouco cristão -- ou nada cristão. A história integra os Contos Exemplares (1962), a primeira incursão de Sophia na ficção adulta, prefaciada pelo célebre bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e está impregnada de ética cristã, de catolicismo social e inconformista.
Para Mónica, tudo está bem como está, cada coisa no seu lugar -- e ela voga no statu quo, serve-se dele para brilhar, para ofuscar na sociedade de ouro falso dos interesses, das convenções, dos negócios. E, por isso, tudo (lhe) serve: do casamento (espécie de sociedade) à caridade, que lhe amplifica a bondade, passando pela cumplicidade com o "Príncipe deste Mundo", numa nada velada alusão a Salazar, "um homem austero e casto".

O início: «Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultâneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.»

Um parágrafo: «É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.»

Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares, 3.ª edição, Lisboa, Portugália, 1970, pp. 113-120.

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