domingo, junho 15, 2014

o nada não me serve

Nas livrarias, passo sempre ao largo da secção "espiritualidades". No livro em apreço, singelas florinhas debruadas em tons suaves, numa colecção chamada "Talismã", fazem logo recear o pior.
Porque li, então, o Jiddu? Porque nas páginas da Renovação -- revista da década de 1920, publicada pela anarco-sindicalista Confederação Geral do Trabalho (CGT), Ferreira de Castro escreveu sobre este para-guru, dando nota da perspectiva crítica que era a sua. Peguei, então, neste livrinho (podia ter sido outro qualquer); e embora não fosse tão mau quanto temia, percebi bem as razões das reservas do futuro autor de Selva.
Krishnamurti recomenda a impassibilidade, o nada -- nada querer, a nada aspirar -- como forma de chegar à felicidade. Ora isto é profundamente problemático em sociedades radicalmente desiguais, como o são a generalidade das modernas comunidades humanas, a começar pela indiana, de onde o autor era originário, embora desde muito cedo se radicasse no Ocidente). O efeito prático das ideias de J.K., embora aliciantes em abstracto (quem não aspira a nada está receptivo a acolher tudo o que de bom ou substancial a vida pode dar...), acaba por ter um efeito perverso: quando o fraco não reage ao forte, agrupando-se, unindo forças, não passará da condição de capacho. É uma evidência que nenhuma fé na remissão por alegadas vidas futuras ou recompensas espirituais presentes poderá contrariar. Ferreira de Castro não podia, pois, caucionar estes conceitos de pura desistência e amorfismo -- pelo menos, na aparência.
O que extraio deste livrinho é, basicamente, isto: segundo Krishnamurti, o homem deverá forjar para si uma outra realidade, paralela à existente e por esta intocável. É evidente que o despojamento, numa sociedade de consumo, é uma atitude benéfica e inteligente; o combate ao egocentrismo, idem; o mesmo para a comunhão íntima com a Natureza. Castro subscreveu estas ideias ao longo da sua obra, mas a diferença fundamental é que ele sabe que nada é concedido e que a dignidade deve ser (re)conquistada -- pela força, se necessário, embora o seu idealismo almeje por uma mudança de mentalidades. Para Krishnamurti, a mudança interior auto-impõe-se, voluntariamente, portanto; mas ao recusar o conflito, em vez de criar um paraíso  terrestre, está a arregimentar legiões de escravos, de dependentes -- é impossível ser de outro modo.
"Feliz é o homem que é nada." -- acaba por ser a declaração que melhor ilustra o pensamento do autor. Ideia inaceitável. Inaceitável num mundo em que pontifica o bicho-homem; e também porque do nada nunca a humanidade teria usufruído de um Beethoven, por exemplo.
Jiddu Krishnamurti, Cartas a uma Jovem Amiga.

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