quinta-feira, maio 30, 2013

terça-feira, maio 28, 2013

"a pureza do dizer"

Não conheço outra obra romanesca portuguesa do século XIX (e até, provavelmente, do XX) que tenha o halo terrivelmente encantatório de tragédia como sucede com o Amor de Perdição (1862). Comparável, só mudando de género literário -- e aí temos outra realização ímpar, a peça de Garrett, Frei Luís de Sousa (1843), também ela contendo no cerne impossíveis triangulações, como se diria em painel de bola... Mas o que torna único o Amor de Perdição não é, apenas, o drama de Simão, Mariana e Teresa; é também o modo como a narrativa é construída, o seu tempo perfeito, em que Camilo reduz ao mínimo (se a memória não me falha, mas hei-de verificar) as digressões, os apartes e o espicaçar maldoso do leitor (ou, muitas das vezes, da leitora).
Camilo, que era simultaneamente um génio e um bandido, não tinha grandes escrúpulos em servir-se da obra, de onde lhe vinha a subsistência. Daí a dedicatória louvaminheira a Fontes Pereira de Melo, datada da Cadeia da Relação do Porto, em 24 de Setembro de 1861. Camilo serve-se do seu trabalho literário e põe-no ao serviço dos seus interesses e necessidades imediatos. Não terá sido, certamente, a primeira vez que o fez, nem seria a última. Poderia ter sido pior, apesar de tudo, se Amor de Perdição, em vez de dedicado a(o António Maria de) Fontes Pereira de Melo (outro pináculo oitocentista, neste caso da res publica), o fora a qualquer relvático que estivesse em posição melhorada para tirá-lo de apuros. Assim, dedicante e dedicatário acabaram por equivaler-se na grandeza do lugar em que cada um acabou por ser acolhido no cartapácios de história pátria.
Ficando-me pelo paratexto, no «Prefácio da quinta edição» (1879), o autor de Eusébio Macário, que tinha os realistas da nova escola na mira, não resiste a ser mordaz com Eça de Queirós (que então já publicara O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, expressamente mencionados), doravante e para sempre  rivais a vários níveis de recepção. Ironizando, Camilo diz que este seu livro já não resistirá «à luz eléctrica do criticismo moderno»; se quando vira a luz, o Amor de Perdição  fizera verter «lágrimas românticas», agora, alarvemente, o público iria «barrufa[r-se] com frouxos de riso realista»... Doutro tempo era o autor, que advertia (aqui ficando uma pequena amostra de como ele não era para cócegas nem flor que se cheirasse): «Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas.»
Mas isto é anedota e pequena história -- suculenta, decerto -- que nada acrescenta ou diminui Amor de Perdição. O que importa , como é óbvio, é o livro em si, servido que foi pelo que, em 1863, no «Prefácio da segunda edição», Camilo reputava como elemento essencial para a perenidade de uma obra literária: «a pureza do dizer.»

sábado, maio 25, 2013

cárceres (demasiado) visíveis

Francisco Costa, que se situava ideologicamente numa direita católica e conservadora -- ou mesmo reaccionária --, foi um escritor silenciado no pós-25 de Abril, e hoje é um nome esquecido. É verdade que o seu militantismo religioso é um pouco indigesto para quem como eu considera a religião uma fraqueza e, na sua forma organizada e institucional, um abuso que impende sobre os homens livres e um jugo primitivo sobre todos os outros (independentemente de considerar que o exercício da fé é um direito que assiste a todo o indivíduo, devendo essa liberdade ser respeitada desde que não colida com a liberdade dos ateus, dos agnósticos e até, obviamente, dos que não partilham a crença dominante nas respectivas sociedades). 
Mas, apesar do seu proselitismo, Francisco Costa é um romancista de mão cheia -- tal como foi um interessante poeta e ensaísta e um operoso historiador da sua Sintra natal. Jorge de Sena, que não facilitava, classifica-o como «notável romancista católico», embora Costa preferisse considerar-se um católico que escrevia romances, pormenor importante.
Este Cárcere Invisível (1949), Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências, testemunha a grande técnica romanesca do seu autor, muito bebida, de resto e ao contrário da tradição, na literatura anglo-saxónica, da qual era confesso admirador. Para já, ambiente muito pequeno-burguês lisboeta, protagonista (Eduardo Bandeira Bastos, 17 anos, estudante de Medicina), um pouco obcecado pelo valor individual servido por uma inteligência acima da média que contrapõe aos bem-nascidos das suas relações na academia: «nobreza natural: a verdadeira, a única!» Pai, «principal» empregado numa loja do comércio, baço como o são as materialidades; mãe doméstica e autoritária; irmã, Lu (de Lucinda), por enquanto a parvinha romântica e deslumbrada do costume (lê folhetins, na cabeceira Coração Torturado); Dudu, o protagonista, lê Gorki, que pousa no banco do jardim público «com desafio»...
Na dedicatória, Francisco Costa refere-se a «este drama duma vida sem Cristo», e o cárcere, como se irá depreender, é o materialismo, em especial marxista, então na mó de cima (e, felizmente, ainda não recuperado no seu pensamento totalitário do caixote do lixo para onde os povos que lhe sofreram o jugo o atiraram).  Numa nótula prévia, Costa deixa entrever o fascínio que sobre si exerceu a sua criatura, "esse médico invulgar que se fechou por suas mãos". Esta contenda entre criador e criatura, entre outros méritos do romance, aguça o interesse pela leitura -- até para saber quem levará a melhor e, principalmente, como levará a melhor...  

quinta-feira, maio 23, 2013

«Le Métèque»

Avec ma gueule de métèque
De juif errant, de pâtre grec
Et mes cheveux aux quatre vents
Avec mes yeux tout délavés
Qui me donnent un air de rêver
Moi qui ne rêve plus souvent
Avec mes mains de maraudeur
De musicien et de rôdeur
Qui ont pillé tant de jardins
Avec ma bouche qui a bu
Qui a embrassé et mordu
Sans jamais assouvir sa faim
Avec ma gueule de métèque
De juif errant, de pâtre grec
De voleur et de vagabond
Avec ma peau qui s'est frottée
Au soleil de tous les étés
Et tout ce qui portait jupon
Avec mon cœur qui a su faire
Souffrir autant qu'il a souffert
Sans pour cela faire d'histoires
Avec mon âme qui n'a plus
La moindre chance de salut
Pour éviter le purgatoire
Avec ma gueule de métèque
De juif errant, de pâtre grec
Et mes cheveux aux quatre vents
Je viendrai ma douce captive
Mon âme sœur, ma source vive
Je viendrai boire tes vingt ans
Et je serai prince de sang
Rêveur ou bien adolescent
Comme il te plaira de choisir
Et nous ferons de chaque jour
Toute une éternité d'amour
Que nous vivrons à en mourir
Et nous ferons de chaque jour
Toute une éternité d'amour
Que nous vivrons à en mourir.
Avril au Portugal, claro. Mas a primeira de que me lembro a propósito do Moustaki, é esta.



quarta-feira, maio 22, 2013

O Vale do Riff - Delta Maid, «Spend A Little Time»


"alguém há-de pagar o arranjo da merda que fizeste"

Nem mais.

sobre a fortaleza de seiva

Desde 1955 que o leitor pode percorrer, como um prefácio, um dos grandes texto memorialísticos de Ferreira de Castro: a «Pequena História de "A Selva"». O romance já tinha a sua lenda, passados 25 anos sobre a primeira edição, na Livraria Civilização: nunca houvera nada assim no romance português, e muito menos na difusão internacional que ele conseguira; facto inédito na história da nossa cultura, e ainda hoje sabe deus, quando o escritor não se apelida Saramago ou Antunes, nem é um espectro como Camões ou um ícone póstumo como Pessoa. Pois Ferreira de Castro irá contar a génese deste livro único, na que seria a sua terceira edição ilustrada (desta vez, pelo magnífico Portinari) -- a terceira de cinco, ao todo e até hoje -- sem falar em adaptações destinadas a um público juvenil...
Não sendo uma autobiografia, há um pano de fundo em A Selva que o é: desde logo o espaço físico em que decorre a acção, o seringal "Paraíso", no rio Madeira, Amazónia; e é-o também, não tenhamos dúvidas, tudo, ou quase, o que escapa à circunstância da personagem principal -- Alberto, um jovem universitário monárquico exilado após a revolta de Monsanto (1919) --: as impressões e as depressões, pois que há também aqui uma boa dose de catarse.
À distância de quase 40 anos, Castro evoca essa uma hora da madrugada de 28 de Outubro de 1914, em que deixa para sempre o seringal, onde estivera desde 1911, com um manuscrito na bagagem. Não era ainda A Selva, que essa, só numa transversal à Avenida de Berna, em Lisboa, de 9 de Abril a 29 de Novembro de 1929, o autor se atreveria a pegar-lhe, não obstante ensaios recorrentes ao longo dos anos, conforme genealogia do texto estabelecida muito mais tarde por Alexandre Cabral.
E texto denso, tão denso quanto o pode ser uma escrita que tem como objecto a própria floresta, a dominar a narrativa, impondo-se logo no título, como a fortaleza de seiva se impusera aos pobres homens que lá se entregavam à extracção do látex.

terça-feira, maio 21, 2013

o silêncio


Ray Manzarek
em rock, e em americano, quando pensava em teclas era nele que pensava

segunda-feira, maio 20, 2013

ternura e lágrimas

Dizer que o Húmus (1917) é um livro único e ser único Raul Brandão na nossa literatura é uma banalidade que, por sê-lo, não deixa de ser verdadeira. Todos os livros que li dele são enormes, à imagem da grande estatura e da densidade do seu autor.
«A vila», o microcosmos que é o mundo, a vida que se nos escapa por entre as mãos, enquanto vivemos ninharias, enquanto alguns de nós a vêem fugir como numa peneira e a maioria, tendo essa percepção instintiva e animal, nem pensa nisso, entregando a insignificância da sua passagem pela existência à ganância, à convenção, à emulação até à cova de um cemitério.
A vida é demasiado grande e nós incompatíveis com essa grandeza. «Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...» E onde estão as Teles e as Sousas, que se odeiam, as Fonsecas e as Albergarias, Donas Engrácia e Biblioteca, Restituta e Procópia, o Elias de Melo e o Melias de Melo, podemos substituir os seus nomes pelos da maior parte de nós. «O nada a espera e a D. Procópia a abrir a boca com sono, como se não tivesse diante de si a eternidade para dormir». E ainda os outros, paisagem como o Gabiru ou adereços como a criada Joana, vivendo a vida dos outros, como se para outra coisa não tivesse vindo ao mundo: «Sempre a comparei à macieira do quintal: é inocente e útil e não ocupa lugar, e não vem Inverno que não dê ternura, nem Inverno sem produzir maçãs.»
O Raul Brandão é isto: ternura e lágrimas. 

quinta-feira, maio 16, 2013

quarta-feira, maio 15, 2013

o nosso Zola

Escrito em 1895-96, mas só publicado em 1901, eis o naturalismo literário português em toda a sua miséria de patologia social... Botelho é o nosso Zola, sem o talento deste -- mas é o nosso... E, como tal, é preciso lê-lo, tentar resistir ao ínfimo detalhe destes cirurgiões de aleijões sociais e atentar no que tem de bom (porque também o tem). E Abel Botelho, apesar do intrincado da prosa, não deixa de ter vigor, por vezes impiedosamente cru.
Amanhã trata do operariado lisboeta finissecular, do lumpen-proletariado de maus fígados, mau vinho e deficiente nutrição, à beira da miséria -- embora ainda não os mais pobres dos pobres.
Para já, primeiras páginas, apresenta-se-nos Serafim, chegado a casa ao fim duma jornada de trabalho, e Clara, sua mulher ("dois enjeitados da sorte"), a quem é exigido o jantar e o vinho. Surge em seguida Ana, a vizinha, mãe duma rapariguinha "de mal agouradas heptizações na face" (o vocabulário médico-cirúrgico é imprescindível...), cujo pai é o Esticado... Escusado será dizer que a sopa é "uma negra e triste aguadilha" e os purulentos carapaus fritos nadam "numa repugnante e crassa oleosidade". A casa é suja, o mobiliário tosco e, no estuque do tecto "negrejava, por milhares, um constelado planisfério de dejecções de moscas." Inevitável.
Digamos que não é uma leitura leve, mas é imprescindível.

quarta-feira, maio 08, 2013

eh...

Numa entrevista ao Expresso, Harmony Korine diz que está-se "nas tintas para o real". Será um realismo um pouco distorcido, à Tarantino & Rodriguez, mas o que faria se não o estivesse? Já vi coisas sórdidas do Korine -- que era mais "realismo sórdido" do que outra coisa. O «Springbreakers» é talvez um pouco indigesto, mas inofensivo. E há a cena "Britney Spears", de antologia.


look at the traila


segunda-feira, maio 06, 2013

do "espírito de parecer vulgar"

Logo nas primeiras três ou quatro páginas de A Sibila (1954),  temos um universo já delimitado, com várias camadas epocais. Um daqueles milagres de talento, surgido da pena duma jovem escritora, com pouco mais de trinta anos.
Uma das coisas que me agrada em Agustina Bessa Luís é a enorme consistência enquanto autora enraizada na sua matriz histórica e cultural, mas, ao mesmo tempo, plena de mundo e de sofisticação, muito ao contrário do aldeanismo de vários romancistas seus contemporâneos.
Os retratos impressivos das mulheres, interessantes, dramáticas, misteriosas, sensuais: Germa: «Ela tinha o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado [...]» -- como se o narrador falasse da própria Agustina; Quina, o centro de outro tempo, já morta, que será o eixo do romance; Maria da Encarnação, mãe desta, com núpcias pouco ortodoxas com Francisco Teixeira, um "galaró"; Isidra, uma mulher cativante e pouco convencional, amante do dito Teixeira. Muito menos interessantes os homens, do cheio-de-si Teixeira a Bernardo Sanches, burguês aristocratizado por gerações argentárias, suficientemente educado para não deslustrar o ter e o ser, mas demasiadamente plano para Germa(na) -- a tal que tinha «o espírito de parecer vulgar»...
Não é para todos.

sábado, maio 04, 2013

um país de mortos-vivos

Picaresco e fantástico, A Torre da Barbela, de Ruben A., tem uma originalidade que lhe dá um lugar único no panorama romanesco português, tanto quanto me é dado saber. Calculo que a reacção no ano em que foi publicado (1964) deva ter oscilado entre o estranhamento e a indiferença, que é o que sucede a tudo que esteja fora dos cânones. Nem era romance psicológico à presença, nem neo-realista e muito menos procurava imitar os franceses do nouveau roman. Embora não me pareça a obra-prima que alguns nela vêem, tem o atractivo de ser iconoclasta para com o romance português da época, e é-o com humor. E o autor, recorde-se, além de escritor desalinhado do mainstream, era também historiador circunspecto, nomeadamente do século XIX, sabendo muito bem o que estava a fazer -- literária e até, digamos, politicamente.
Absolutamente marcante, portanto. O que esperar de uma catrefa de personagens de várias épocas que coexistem no mesmo espaço e interagem entre si? O guia burgesso e comerciante para turista entreter e, se possível, enrolar, situa-nos no espaço e no tempo; mas logo aparece um Menino Sancho, ser misterioso e disforme, e o lendário Cavaleiro da Barbela: «De cada túmulo, de cada sarcófago ou fosso anónimo eles iam saindo, meio estonteados pelos séculos da História»...
Leio aqui o Portugal profundo de então: um país de mortos-vivos.

outros tons - João Gilberto, «Corcovado»