domingo, janeiro 31, 2010

dos livros da minha vida

Levantado do Chão, de José Saramago (1980)

O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e, apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim. Não é tal o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos.

[Da 4.ª edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1983. Foi o meu primeiro contacto com os romance de Saramago, continuado por alguns anos, depois interrompido e agora retomado, espero. Deu-mo o meu pai, em Novembro de 1983.]

Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio (1944)
A SERPENTE CEGA
-- Mas não voltas mais cedo...
João garcia garantiu que sim, que voltava.
Os olhos de Margarida tinham um lume evasivo, de esperança que serve a sua hora. Era fundos e azuis, debaixo de arcadas fortes. Baixou-os um instante e tornou:
-- Quem sabe?...
-- Demoro-me pouco... palavra! Cursos de milicianos... Moeda fraca! Para a infantaria, três meses. Senão fecharem os concursos para secretários-gerais, então aproveito. Bem sei que há só três vagas e mais de cem bacharéis à boa vida... Mas não tenho medo das provas. Bastam algumas semanas para me preparar a fundo... rever a legislação.
[da colecção "Unibolso", dos Editores Associados, Lisboa, s. d. O melhor romance português desde que existe romance português? Arriscaria... A Margarida Clark Dulmo é a minha heroína de ficção preferida. Comprei-o em Março de 1990]
Memórias da Grande Guerra, de Jaime Cortesão (1919)
O GÉNIO DO POVO
Março de 1916
Mazina, Kuangar, Naulila... Nomes que soam como bofetadas.
depois hesita-se, dispute-se, combate-se. Já a face arrefece. Alguns querem mesmo oferecer a outra. mais um passo: requisitam-se os navios... E a hora grande bateu: estala a declaração da Alemanha.
Na Câmara a sala, de pé, desde as carteiras até às galerias, ao formigueiro humano, delira e aclama com uma só boca: Viva a República! Viva a guerra!
[das «Obras Completas de Jaime Cortesão», Lisboa, Livros Horizonte, 1969. Um livro espantoso. Cortesão, que viria a ser uma das grandes figuras da História de Portugal, ofereceu-se, enquanto médico, como voluntário para as trincheiras da Flandres. Dessa experiência surgiu este relato impressionante. Comprei-o em Novembro de 1989]

cartoon

Chuck Jones, «The Abominable Snow Rabbit» (1961)

Lobinho

A C., do Marcas d'Água, certificou-me com o Prémio Lobinho -- que traz consigo um questionário inacreditável de extenso. Deveria indicar cinco blogues, mas indicarei todos os da barra lateral. Obrigado C.

a) Tens medo de quê? De quase tudo
b) Tens algum "guilty pleasure"? Avonde.
c) Farias alguma "loucura" por amor/amizade? Já fiz.
d) Qual o teu maior sonho? Acordar bem disposto.
e) Nos momentos de tristeza, abatimento, isolas-te ou preferes colo? Prefiro sentar-me ao colo de mim próprio.
f) Entre uma pessoa extrovertida e outra introvertida, qual seria a escolha abstracta? A que tivesse sentido de humor.
g) Sentes que te sentes bem na vida, ou há insatisfações para além do desejável? Sinto-me burguesmente bem.
h) Consideras-te mais crítico ou mais ponderado? (mesmo sabendo que há críticas ponderadas). Felizmente crítico; o que, é verdade, não exclui ponderação.
i) Julgas-te impulsivo, de fazer filmes, paciente ou... (define o que te julgas no geral). Impaciente e impulsivo, qualidades morigeradas pela idade. Filmes só no cinema.
j) Consegues desejar mal a alguém e eventualmente concretizar? (Responder com sinceridade). Claro que consigo! No momento do agravo, é claro. Mas sou rápido a secundarizar, felizmente.
k) Conténs-te publicamente em manifestações de afecto (abraçar, beijar, rir alto...). Never.
l)Qual o lado mais acentuado? Orgulho ou teimosia? Orgulho-me de não me achar teimoso.
m) Casamentos homossexuais e/ou direito à adopção? A adopção é um tema importantíssimo; o chamado casamento homossexual é uma patetice sobre a qual nem me dou ao trabalho de pensar dois minutos.
n) O que te faz continuar com o blogue? Divirto-me imenso.
o) O número de visitas ou de comentários influencia o teu blogue? Eu acho que não devia, mas é possível...
p) Na tua blogosfera pessoal e ideal, como seria ela? Tal e qual como a descobri: o fascínio das vozes novas.
q) Devia haver encontros de bloguistas? Caso sim em que moldes e caso não porquê? Talvez por afinidades temáticas e vizinhanças...
r) Sabes brincar contigo mesmo e rir com quem brinca contigo? (Não vale responder com ironias).Espero que sim.
s) Já agora, qual ou quais os teus principais defeitos? Todos.
t) E em que aspectos te elogiam e/ou achas ter potencialidades e mesmo orgulho nisso? Todos.
u) Entre uma televisão, um computador e um telemóvel, o que escolherias? Nunca usei telemóvel, nem sei mexer nisso. A televisão, desde que passou a ter mais de dois canais, nunca mais foi a mesma. Olha, escolhia o computador!...
v) Elogias ou guardas para ti? Elogiar o mérito é uma das minhas maiores satisfações. Até me acho pródigo nisso.
w) Tens a humildade suficiente para pedir desculpa sem ser indirectamente? Sou pouco humilde.
x) Consideras-te, grosso modo, uma pessoa sensível ou pragmática? Nada pragmática.
y) Perdoas com facilidade? Tento. É uma questão de bem-estar.
z) Qual o teu maior pesadelo ou o que mais te preocupa? Sair de casa e deixar a chave lá dentro.

sexta-feira, janeiro 29, 2010

bliar

Blair, palhaço triste, continuou hoje a aldrabar diante da comissão que averigua as condições em que o Reino Unido se deixou envolver no Iraque.
Milhares de inocentes perderam a vida por causa deste vígaro ignóbil, de braço dado com o asnático Bush, roberto duns miseráveis delinquentes que nem me apetece nomear.
Na cimeira da vergonha dos Açores, em que Barroso serviu de porteiro, compareceu ainda o cretino Aznar, para quem não tenho palavras.

O Vale do Riff - Lou Rawls, «Lady Love»

quinta-feira, janeiro 28, 2010

capismo

capa de João da Câmara Leme para O Barão, de Branquinho da Fonseca
4.ª edição, Portugália editora, colecção «O Livro de Bolso» #38, 1962
Se uma flor requer orvalho / a mulher, que dirá ela.
Homero Homem

O Vale do Riff - Ray Charles & Travis Tritt, «I'm Movin' On»

quarta-feira, janeiro 27, 2010

História e ponto de vista

Ainda no JL (uf!), Luís Bigotte Chorão, autor de A Crise da República e a Ditadura Militar (Sextante), a Rita Silva Freire: «A historiografia não serve para agradar às direitas ou às esquerdas. Nem para as provocar. Serve para reconstituir a verdade histórica, que não deve servir quaisquer outros objectivos. (...) É necessário ter uma perspectiva, que deverá servir apenas à verdade e ao rigor. Porque a História é uma ciência.»
Como não concordar com quase tudo? Embora eu discorde da História como ciência: há sempre o ponto de vista autoral, e portanto subjectivo. A História é uma narrativa, não é um relatório; e como narrativa que é, há sempre um sujeito que a redige; alguém que por muito sério e rigoroso, não consegue eximir-se à sua subjectividade. A subjectividade que o leva a interessar-se pelos concelhos medievais e não pelo absolutismo ou a revolução liberal em vez da inquisição: há sempre um fascínio ou uma repulsa que impelem o nosso interesse ou, mais importante, o nosso desinteresse.

Europa, segundo VMG

"Europa ou é investigação científica e criação cultural ou não é Europa", escreve Vitorino Magalhães Godinho em Os Problemas de Portugal -- Mudar de Rumo (Colibri), citado por Guilherme d'Oliveira Martins na recensão ao livro, ainda no JL.
E, portanto, Europa é liberdade e pensamento livre, ou não é Europa.

4 kg

António-Pedro Vasconcelos, a propósito de «A Bela e o Paparazzo», também no JL e em entrevista a Maria João Martins, diz-se surpreso pela dimensão do fenómeno das revistas alegadamente cor-de-rosa: «Percebi que as vidas das pessoas são muito tristes e desinteressantes, a ponto de as levar a projectar nos outros uma vida excitante que não têm.»
Ontem, passando por duas mulheres: «Diz que a Alexandre Lencastre emagreceu quatro quilos...»

escrever

valter hugo mãe em entrevista a Maria Leonor Nunes: «Um livro escreve-se sempre a partir de rupturas ou para chegar a elas. [...] Não tenho paciência para livros que não rompam com nada, que não digam mais do que o rame-rame quotidiano.»
Se se escreve porque sim, e é assim que deve ser, só tem sentido publicar se for para acrescentar, com rupturas ou sem.

JornaL

Luís de Sousa Rebelo. Eugénio Lisboa e Júlio Moreira evocam Luís de Sousa Rebelo (Lisboa, 1922 -- S. João do Estoril, 2010) no JL de hoje. Dele tenho ideia da solidez e da discreção dum autor de escol, mais dado ao trabalho académico que à diuturnidade crítica, que falava com propriedade de Fernão Lopes como de José Saramago, que quando vinha a(o grande) público, os seus textos eram lidos com a atenção que se dá aos mestres. Dele tenho apenas A Concepção do Poder em Fernão Lopes (Livros Horizonte), de leitura sempre desgraçadamente adiada. Não o sabia militante do PCP, desde 1948.

O Vale do Riff - Dr.Feelgood, «Lucky Seven»

terça-feira, janeiro 26, 2010

Antologia Improvável #417 - Amélia Veiga

VENTO DE LIBERDADE


Das entranhas da terra
irrompe um vento alucinado
que varre... varre... varre
as folhas secas do mundo...


Vento que geme e uiva fundo
e fere como punhais
o coração dos mortais...

Vento horrível e cruel
que espezinha e enrodilha
e dá guerra sem quartel...


E ora rasteja em gemidos,
ora se eleva em furores
e uiva como um trovão,
mas em todos os sentidos
é VENTO DE LIBERDADE
que o pobre mundo assombrado
pretende reter na mão...

Poemas / No Reino de Caliban II
(edição de Manuel Ferreira)

O Vale do Riff - Cliff Richard & The Shadows, «Move It»

segunda-feira, janeiro 25, 2010

caracteres móveis - Nietzsche

O amor é o estado em que o homem mais vê as coisas como elas não são.


O Anticristo
(tradução de Tavares Fernandes)

O Vale do Riff - Holly Golightly, «On The Fire»

domingo, janeiro 24, 2010

dos livros da minha vida

O Egipto (1869/1926), de Eça de Queirós
Cádis
Domingo.
Ontem dobrámos o cabo de S. Vicente sob um luar digno dos dramas de Shakespeare. O mar infindável, sereno, sem trevas, mas belamente escuro, tremia sob o grande raio luminoso da lua, como os antigos animais sob a carícia dos profetas.
[Das «Obras de Eça de Queiroz», publicadas pela Livros do Brasil, Lisboa, s.d. Na companhia do conde de Resende, o chevalier de Queiroz parte para Oriente a assistir à inauguração da grande obra de engenharia de Lesseps, o canal do Suez. Estas «notas de viagem» só foram editadas postumamente pelo primogénito do escritor, José Maria. Uma jóia da bibliografia queirosiana, da literatura de viagens, das nossas letras em geral. (Deu-mo o meu pai, em Março de 1988.)]

Fanga, de Alves Redol (1943)
Antes da cheia grande
Naquela altura o meu pai fazia fanga e eu tinha começado a ajudá-lo no trabalho, embora pouco ou nada fizesse de proveito. Mas sempre me ia habituando, porque no campo, mal a gente deita fora as fraldas -- isto é um modo de dizer, pois julgo que nunca as usei, a supor pelo que vejo nos cachopitos --, começa logo na lida, até depois de os braços e as pernas não darem jeito a mexer-se.
[Da 4.ª edição, na velha e boa colecção "Os Livros das Três Abelhas», Publicações Europa-América, Lisboa, 1958. O meu primeiro contacto com a prosa límpida e viril de Redol. Muito melhor que o célebre Gaibéus (1939); não me surpreendeu nada que nas «Cinco notas sobre forme e conteúdo», António Vale (aliás, Álvaro Cunhal), tivesse destacado a Fanga, os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, como três dos melhores exemplos da literatura progressista (a expressão é minha) da época. Comprei-o em Dezembro de 1983].
A Farsa, de Raul Brandão (1903)
-- Ai que ma levam!, ai que ma levam!
Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e granito formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão. O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas...
-- Ai que ma levam!
[Das «Obras Completas de Raul Brandão», no Círculo de Leitores, Lisboa, 1990. Comecei pelo teatro de Brandão: O Gebo e a Sombra, O Avejão, O Doido e a Morte; os "romances" de Brandão são únicos, e única é a sua voz. (Compreio-o em Agosto de 1998]

acordes nocturnos

obrigado, vizinha :|

Mais uma atenção da Ana Vidal para comigo e este blogue em particular. Por diversas vezes na Porta do Vento e agora no Delito de Opinião, em que o Abencerragem é blogue da semana...
Muito obrigado, vizinha. Já disse uma vez que o primeiro leitor do Abencerragem sou eu próprio (o que me entretenho a arrumá-lo!...); mas ele é feito também para si e todos os que gostam das músicas, das letras e das imagens que por aqui vou pondo. Eu gosto de preencher os dias assim, com sons & tons. E, depois, transportá-los para aqui, para mim, para si e para quem os quiser apanhar...
Um grande abraço.

sexta-feira, janeiro 22, 2010

acordes nocturnos

caderninho

Para o agnóstico, a morte é uma realidade inadjectivável. / Para outros, será deslumbramento, humildade, redenção porque de uma forma ou outra é continuação e não ruptura. / Que seria das religiões se a morte as não socorresse? Marcello Duarte Mathias
O Destino Velado

O Vale do Riff - Emerson, Lake & Palmer, «Time And A Place»

quinta-feira, janeiro 21, 2010

JornaL

Paulo Henriques. O que levou a ministra da Cultura a afastar um excelente director do Museu Nacional de Arte Antiga? Acho perfeito que haja uma gestão profissional e moderna dos museus, desde que subordinada a uma direcção criteriosa. Não digo que não possa ser o caso da solução encontrada, mas faz-me espécie que se deite borda fora a competência e a seriedade.
Nódoa. A esquerda que aceita que um pai ou uma mãe possam ser obrigados a trabalhar até 60 horas por semana, é uma esquerda rendida. Ou vendida. A direita católica e familial do CDS, esfrega as mãos e dá-as ao PS; o duplamente hipócrita PSD abstem-se.
Manuel Alegre. A conta-gotas vão surgindo os apoios de elementos do PS. Espero que passada a barganha do Orçamento, surja o entusiasmo que se impõe. António Costa, na Quadratura do Círculo, gagueja tristemente.
Geert Wilders. O seu documentário, Fitna, repugna pela unilateralidade e o apelo ao medo; mas, mais repugnantes são o próprio fanatismo religioso que o filme denuncia e o que me parece ser a cobardia das autoridades holandesas, que reincidem neste particular -- como se passou com Ayaan Hirsi Ali, episódio a que me referi aqui.

O Vale do Riff - JFK & The Conspirators, «Wa Da Da»

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Antologia Improvável #416 - Nunes Claro

Quando olho agora para tudo quanto
Busquei, na vida mísera e vulgar,
Vejo um deserto morto, a cada canto,
Em cada esquina, um sonho a agonizar!

De tudo, em breve, se desfez o encanto,
Entre ruínas, junto ao pó do ar;
-- Ó Terra, para que m'enganas tanto,
E me deixaste, ó Sol, assim falhar?

Parti do lar, já vinha imenso o dia,
Pensando que o Amor me pertencia,
E, à tarde, o grande Sol seria meu;

Pouco fiz afinal, pobre e sozinho,
-- Fins uns versos, que ficam no caminho,
Dei um beijo qualquer, que se perdeu!


A Cinza das Horas
(retrato por Eduardo Malta)

O Vale do Riff - James Brown, «Superbad»

terça-feira, janeiro 19, 2010

figuras de estilo - José Régio

Creio ser antes o que se chama doença e não o que se chama saúde, que está em certa base das criações artísticas mais autênticas.


Confissão dum Homem Religioso
imagem

O Vale do Riff - Tom Jones, «It's Not Unusual»

segunda-feira, janeiro 18, 2010

caderninho

O que há de inebriante no mau gosto é o prazer aristocrático de desagradar. Baudelaire
Fogachos (tradução de João Costa)

O Vale do Riff - Joe Williams, «Here's to Life»

domingo, janeiro 17, 2010

dos livros da minha vida

O Barão, de Branquinho da Fonseca (1942)
Não gosto de viajar. Mas sou inspector das escolas de instrução primária e tenho obrigação de correr constantemente todo o país. Ando no caminho da bela aventura, da sensação nova e feliz, como um cavaleiro andante. Na verdade lembro-me de alguns momentos agradáveis, de que tenho saudades, e espero ainda encontrar outros que me deixem novas saudades. É uma instabilidade de eterna juventude, com perspectivas e horizontes sempre novos. Mas não gosto de viajar. Talvez só por ser uma obrigação e as obrigações não darem prazer. Entusiasmo-me com a beleza das paisagens, que valem como pessoas, e tive já uma grande curiosidade pelos tipos rácicos, pelos costumes, e pela diferença de mentalidade do povo de região para região. Num país tão pequeno, é estranhável tal diversidade. Porém não sou etnógrafo, nem folclorista, nem estudioso de nenhum desses aspectos e logo me desinteresso. Seja pelo que for, não gosto de viajar.
[da 4.ª edição, na colecção "O Livro de Bolso", da Portugália Editora, Lisboa, 1962, com um posfácio de José Régio. O início prosaico vai contrastar com a estranha atmosfera que Branquinho logou criar; um ambiente de certo modo fantástico que tem contribuído para que esta obra-prima surja, por vezes, incluída em colectâneas do género. Comprei-o em Julho de 1990.]
Bichos, de Miguel Torga (194o)
Nero
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso... Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo das arcadas das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males... Já que não havia melhor, ficar ao menos ali.
[Da 19.ª edição, do Autor, Coimbra, 1995. Lera-o há muitos anos, e pertencia à minha irmã; só recentemente, 2002, comprei o meu. Do melhor Torga está aqui.]
Davam Grandes Passeios aos Domingos, de José Régio (1941)
O comboio parara finalmente na estação de Portalegre. De novo o cavalheiro amável se dirigiu a Rosa Maria:
-- Chegou. Faça favor de descer que eu passo-lhe as suas coisas.
-- Muito obrigada! -- disse Rosa Maria descendo.
O cavalheiro amável estendeu-lhe a caixa do chapéu, o embrulho do presente da velha Leocádia para a menina Lá-Lá, e a pequena mala de couro em que Rosa Maria trazia o indispensável para o primeiro dia. A mala grande vinha despachada.
-- Muito obrigada! -- repetiu Rosa Maria -- tenha boa viagem. Boa noite!
[Da colecção "Brevíssima Portuguesa", co-edição das editoras Bertrand, Civilização e Contexto, s.d. A primeira vez que o li, estava integrado no volume Histórias de Mulheres,; este exemplar comprei-o em Setembro de 1995. Talvez não seja o meu principal Régio (figura admirável e escritor completo), mas foi o primeiro]

homenagens a Nicot

Max, o Explorador

sábado, janeiro 16, 2010

O candidato natural do PS, e da esquerda

Manuel Alegre será o óbvio candidato do PS, que não quererá repetir a asneira catastrófica das últimas presidenciais. A insanidade soarista está definitivamente arrumada; nomes como António Guterres, Ferro Rodrigues ou Jaime Gama não são para levar a sério neste contexto.
Alegre é um candidato natural, querido pelo eleitorado do partido -- o que não sucede com os carreiristas e as nulidades aparelhistas (e os ressentidos) que já se manifestaram. Espero que Sócrates tenha o nervo necessário para não atrasar a decisão, até porque o Bloco já se agarrou à candidatura.
Se queremos Alegre presidente, em vez de Cavaco, toda a esquerda deve unir-se em torno desta manifestação de vontade. Tacticismozinhos, hesitações e indolência dos socialistas ou o truque do costume do PCP, com candidatos a fingir, terão um resultado certo: o actual presidente terá um segundo mandato.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Alegre candidato

Manuel Alegre disponível para candidatar-se à Presidência da República. Será desta? Espero que sim.

O Vale do Riff - The Doors, «People Are Strange»

quinta-feira, janeiro 14, 2010

oh!, os quadradinhos

Entre a recusa e a participação / Alguma coisa anda no ar. // Um pássaro? / Um avião? (Pedro Bandeira Freire)

O vale do Riff - Frankie Goes To Hollywood, «Rage Hard»

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Antologia Improvável #415 - Sabino de Campos

A MORTE DO SINEIRO

O Antônio "Sexta-Feira", sapateiro,
Passou a ser sineiro porque quis:
E ficou-se a levar o tempo inteiro,
Badalando no sino da Matriz.

Ali, ora festivo, ora agoureiro,
Era o aluno mais feio e mais feliz
De Quasimodo, o célebre sineiro
Lá de Nossa Senhora de Paris.

Na sua tôrre, livre do demônio,
Passavam missas, festas, mortes, tudo,
Na voz do sino, pelas mãos do Antônio.

Quando morreu, velhinho, abandonado,
O sino da matriz, ingrato e mudo,
Nem teve um dobre para o desgraçado!

João Pessoa -- Paraíba -- Fevereiro de 1947.


Natureza
imagem daqui

O vale do Riff - Rude Rich & The High Notes, «Hey Señorita»

terça-feira, janeiro 12, 2010

caracteres móveis - Graham Greene

Não gostava da palavra «sexo». Na sua concepção do mundo, havia empregadas de bar, enfermeiras, prostitutas; e havia o amor, algo bastante maternal com seios fartos. A palavra «sexo» sugeria a existência de algo comum a ambos: isso enfurecia-o.


Assassino a Soldo
(tradução de Fátima St. Aubyn)

O Vale do Riff - Louis Armstrong, «Hello Dolly»

segunda-feira, janeiro 11, 2010

domingo, janeiro 10, 2010

dos livros da minha vida

Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco (1862):

Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:

Simão Antonio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante da Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião da sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, cara redonda, vestido com jaqueta de azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrez. E fiz este assento, que assinei -- Filipe Moreira Dias.

À margem esquerda deste assento está escrito:
Foi para a Índia em 17 de Março, de 1807.

[Da 3.ª edição popular da Companhia Portuguesa Editora, Porto, 1917 (actualizei a ortografia); exemplar que pertenceu ao avô materno da minha mulher, Basílio Manuel Correia (nome muito camiliano), adquirido em 1930]
Agosto Azul, de M. Teixeira-Gomes (1904)

PORTIMÃO -- MARÇO -- 1901*

A sua fantasia trabalhou em vão, isto é, transviada à verdade; eu estou perigossissimamente enfermo, embora o não seja de paixões perversas. Mas o regresso a casa, o silêncio do meu gabinete -- neste pacificador ambiente, quase conventual, alguma vez já defumado a incenso e com escaninhos onde outros aromas predilectos se encelaram, trouxe-me quase uma esperança... Tanto basta a galvanizar-me na ilusão duma vida nova! Fruir, parado, o mundo todo -- a paisagem nas suas linhas e cores, sem perder movimento algum dos seres perceptíveis que a animam -- fruir sem exaltação, saboreadamente, -- como nas serenas contemplações que adoçam as convalescenças demoradas -- sem a angústia da ansiedade juvenil nem os encruamentos da tristeza prevista pela experiência, tal seria agora a minha aspiração ou o meu programa...

* Dirigido a Henrique de Vasconcelos, a quem o livro é dedicado.
[da 2.ª edição, na Seara Nova, Lisboa, 1930 (actualizei a ortografia; comprei-o em Março de 1990).]

Andam Faunos pelos Bosques, de Aquilino Ribeiro (1926)
Rubicundo, pesadão de farto, o estômago bem lastrado com lombo de vinha-de-alhos, padre Jesuíno saiu a espairecer para a varanda que a aragem da serra brandamente refrescava. Manjericos e craveiros floriam dentro de velhos potes, e tão abertos, tão medrados, que do mainel transbordava para a casa e sobre o pátio uma onda álacre de primavera. Tarde de infinita benignidade -- era nas vésperas de Nossa Senhora de Maio, quando ela de andor ao céu aberto avista tudo verde em redondo -- ali apeteceia gozá-la com cristianíssimo ripanço ao passo moroso da digestão. mas não tardou que argoladas fortes soassem à porta de Jesuíno, em tamancos, as calças presas ao abdómen por um negalho, camisa de estopa deixando espreitar pelos bofes a pelúcia de cerdo à mistura com o alcobaça vermelho, cigarro nos beiços, toda a sua pachorra eclesiástica mais rabugenta que cão dormido, foi ver.
Era a Feliciana, e enfadado rosnou:
-- Diabos te carreguem... esqueces sempre a chave.

[sem menção de edição, Livraria Bertrand, Venda Nova, 1979 (comprei-o em Maio de 1991)]

acordes nocturnos

sábado, janeiro 09, 2010

caderninho

O capitalista embolsa com a mesma indiferença o dinheiro molhado de lágrimas, o dinheiro manchado de sangue ou o dinheiro coberto de lama. Paul Lafargue
A Religião do Capital (tradução de J. Mega)

quinta-feira, janeiro 07, 2010

Antologia Improvável #414 - M. António

MONUMENTO A D. JOSÉ, LISBOA

Opulento pedestal
Luxuriante de vida
Tropical
Sobre que pousas
-- Rei europeu
Ou marajá hindu?

«...da Arábia, da Pérsia, da Índia...»
Ausente da pureza deste céu
Rei europeu
Apetecendo palanque e especiaria
Que país foi o teu?

Esta nesga de Europa
Com vinhedos
Ou sonhadas florestas
Onde enviavas a correr
Fidalgos-cavaleiros
Criados de teus paços?

Teus cavalos ligeiros
Ou pesados elefantes
Tropicais?...
-- Tuas glórias distantes
Nunca vistas
Sonhadas
Marajá desterrado!

Rosto de Europa / No Reino de Caliban II
(edição de Manuel Ferreira)

O Vale do Riff - Cannonball Adderley, «Jessica's Birthday»

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Caracteres móveis - Javier Cercas

«Uma vez li uma frase de Pascal que diz que ninguém se entristece completamente com a desgraça de um amigo», escreve Rodney dois meses depois da sua chegada a Da Nang. «Quando a li pareceu-me uma frase mesquinha e falsa; agora sei que aquilo que diz é verdade. O que a torna verdadeira é esse "completamente". Desde que estou aqui vi morrer vários companheiros. A morte deles horrorizou-me, enfureceu-me, fez-me chorar; mas mentiria se dissesse que não senti um alívio obsceno diante dela, pela simples razão de o morto não ser eu. Ou dito de outra maneira: o pavor está na guerra, mas muito antes estava em nós.»


A Velocidade da Luz

O Vale do Riff - Roland Kirk, «I Say A Little Prayer»

terça-feira, janeiro 05, 2010

Mal haja o trovador que vai sentar-se / À porta do abastado
Alexandre Herculano

O Vale do Riff - Colosseum, «Rope Ladder to The Moon»

segunda-feira, janeiro 04, 2010

caderninho

Se me for possível enriquecer mantendo a minha autoestima, a minha fé e grandeza de espírito, ensinai-me então o caminho e hei-de enriquecer. Mas se me pedirdes para deitar a perder os meus valores, em ordem a conseguirdes vós próprios o que não é virtuoso, vedes vós mesmo o quanto sois injusto e ignorantes. O que preferis afinal? Dinheiro ou um amigo fiel e dedicado? Ajudai-me então nisto, e não exijais de mim que aja de modo a comprometer os meus princípios. Epicteto
A Arte de Viver (tradução de Carlos A. Martins de Jesus)

O Vale do Riff - The Blue Aeroplanes, «Bury Your Love Like Treasure»

domingo, janeiro 03, 2010

Kate Winslet

Se bem me lembro, a primeira actriz por quem me apaixonei foi a Jessica Lange -- nem tanto pel' "O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes» e mais por uma adaptação televisiva da peça de Tenesse Williams, «Gata em Telhado de Zinco Quente». Cometi, entretanto, várias infidelidades (Charlotte Rampling, Candice Bergen...). Pingamor, tenho tido, pobre de mim, outras paixões, mais recentes: Juliette Binoche, a girl next door que todos queremos; Nicole Kidman, a perversidade da beleza imaculada; a etérea Cate Blanchet.
Torno agora público o meu deslumbramento por Kate Winslet, uma das actrizes mais carne-e-osso-e-vísceras que me foi dado apreciar. Confesso que pouco dei por ela desde o «Titanic», em que pouco dera por ela... Mas já com um filme recente, «Pecados Íntimos», ela me ficara debaixo d'olho.
Pertencem-lhe dois dos melhores filmes que vi em 2009; pertencem-lhe, porque se apoderou deles sem contemplações, não obstante os seus parceiros na representação -- e que magníficos eles vão! --, e dos próprios realizadores: Stephen Daldry («The Reader») e Sam Mendes («Revolutionary Road»).
É a minha mulher do ano.

Cordilheiras do Riff - 6/6

Van Der Graaf Generator, «Theme One». Rock em fuga, no início de 70. Nunca ele soou tão bem. Postado em 3 de Fevereiro.


Yes, «Beyond And Before». Mais uma grande banda do prog rock, mesmo no início. Quarenta anos depois, só Chris Squire, assombroso baixo, lá permanece. Postado em 19 de Fevereiro (com um abraço à Marie Tourvel, que comentou).


Yo La Tengo, «Nothing To Hide». Excepcionais e já veteranos (um quarto de século de história). Distorção sublime, a guitarra de Ira Kaplan. Postado a 15 de Dezembro.

sexta-feira, janeiro 01, 2010

Cordilheiras do Riff '9 - 5/6

Phil Woods, «And When We're Young». O tom elegíaco assinala a morte de Robert Kennedy, mas há sempre a esperança numa redenção qualquer. Ainda há dias voltei a vê-lo e ouvi-lo no Estoril, com 78 anos gastos, mas bem usados. Postado em a 1 de Dezembro (com um abraço à C. , pelo comentário).



Rory Gallagher, «Walk On Hot Coals». Pelas cordilheiras deste ano passaram Eric Clapton, Jimmy Page, Carlos Santana -- nenhum superior ao malogrado Rory Gallagher, porventura a maior referência do Irish Blues. Aguardem pelo solo, e verão. Postado em 4 de Fevereiro.
Small Faces & P. P. Arnold , «Tin Soldier». A fúria mod de Steve Marriott e o brilho nos olhos de P. P. Postado em 14 de Setembro.