segunda-feira, outubro 31, 2005

domingo, outubro 30, 2005

Antologia Improvável #69 - Jorge de Sena (2)

NÃO HÁ SAÍDA

Não pode a maior parte
suportar mesmo o que admira.
No mais sincero e puro admirar
uma raiva flutua, uns dedos se crispam,
um gosto sorridente de poder, podendo,
pousar na grandeza pelo menos um pé sujo
que manche o limiar lavado pela paciência
dos séculos e de um homem só. Não
tenhamos ilusão alguma. Quando louvam,
é só se podem dar com uma mão e tirar com a outra.
Nada pode haver de limpo neste mundo podre.
E morremos todos manchados de lama
que irá pegada a nós dentro do tempo.
Abrindo-nos as páginas futuras, alguém há-de
ver delas soltar-se um seco pó que tomba
e que ele sacode, assopra, rindo
da humanidade torpe que abusou de nós.
Ninguém porém nos pode garantir
que ele mesmo, o que nos limpa, o não faça
para no tempo limiar deixar bem nítidos
senão seus pés ao menos os dedos do seu cuspo.

11/10/1973

Visão Perpétua

Jorge de Sena

sábado, outubro 29, 2005

Camilo

Correspondências #19 - Camilo Castelo Branco a desconhecido

Ex.mo Snr.

Se vê que a minha carta não tem muito descuidos gramaticaes, pode publical-a. Não me lembro se ha lá coisa que moleste o proximo; se vê que ha trace. V. Ex.ª não deve ignorar que eu acato o proximo e só por descuido lhe tenho assacado aleives que me trazem assaz penitenciado.
Agradeço-lhe a estimação que dá ao futilissimo livro dos Brilhantes do Brazileiro. Parece-me que só tem uma duzia de paginas soffriveis, são as ultimas que me sahiram da alma com lagrimas. As outras são pura chalaça -- o espirito portuguez, unico a meu ver, que pode sahir das nossas officinas de caricaturista.
A nossa sociedade não dá para mais. Se tirarem a Portugal, o brazileiro e ao Jardim das Plantas, de Paris, os ursos, não ha ahi que ver. (Esta carta faça-me o favor de a não publicar. Isto entre nós é maledicência muito á puridade).
Dê-me as suas ordens.
De V. Ex.ª
adm.or affectivo e ob.do
Camillo Castello Branco
S. M. Seide, 17 de Abril 70.
In António Cabral, Homens e Episódios Inolvidáveis

sexta-feira, outubro 28, 2005

Depois de ler O Aprendiz Secreto, de António Ramos Rosa

O construtor sabe que veio do nada e vai para o nada. Provém do magma imemorial das origens e sente que não existe outro futuro para além da poeira cósmica resultante da decrepitude inevitável do planeta. Não lhe basta o instinto vital da procriação. Frui cada corpo como matéria primeva e análoga a si. E luta, incessantemente luta o construtor por uma estética do bem que acolha a beleza e a fealdade imanentes, o sémen e os excrementos que fertilizarão a massa informe resultante da nova agregação do pó. Até à eclosão dum outro universo. Depositário das partículas de nada do construtor.
29-V-2003

quinta-feira, outubro 27, 2005

Antologia Improvável #68 - Alberto de Lacerda (3)

Na rua desde há muito bem amada
As árvores estão carregadas de flores
E o chão
Onde vão caindo luminosas

O azul é ténue sereníssimo envolvente

Algo sugere
Que a tarde azul e ouro
É um porto seguro

O dia faz sentido finalmente

Enseada
Do coração
Londres
11 de Maio 99


Horizonte

quarta-feira, outubro 26, 2005

Tarzan dos Macacos


Foi com o Russ Manning que comecei a seguir as aventuras do Tarzan. As historinhas saíam aqui nas publicações toscas da Agência Portuguesa de Revistas, enquanto que a brasileira EBAL anunciava as edições de Burne Hogartn, «tudo em cor», artista que o Vasco Granja me ensinaria ser «o Miguel Ângelo das histórias em quadrinhos». Lamento, mas eu gostava muito mais de ler o Russ Manning, com todas aquelas inverosimilhanças -- parece que muito fiel ao Burroughs --, do que o perfeccionista Hogarth, com os seus correctíssimos estudos anatómicos para atingir uma BD plena de euritmia.

Auto-retrato

S, de GLÓRIA!

terça-feira, outubro 25, 2005

Caracteres móveis #44 - Fidelino de Figueiredo

«...só nos insurgimos com vital impulso contra o que em nós trazemos.»
«A arte é estilo»
...um pobre homem da Póvoa de Varzim...

O jovem Fidelino

Devotos

O meu mais absoluto desprezo para esses devotos que desistiram do mundo, e nele estão com cinismo.

Regresso ao Tibet

Kid Ordinn Posted by Picasa

segunda-feira, outubro 24, 2005

Antologia Improvável #67 - Ana Hatherly (2)

Estou à beira do lago:
é o fim do Verão.
Sentada de baixo de uma grande árvore
algumas folhas já amarelas
caem de vez em quando sobre mim.
São poucas
discretas
mas nelas sinto já
o princípio do regresso à terra funda.

Itinerários

Hatherly

domingo, outubro 23, 2005

Cristina da Suécia




















Pintura de Bourdon

Correspondências #18 - Cristina da Suécia a D. João IV

Nós Cristina por graça de Deos Rainha eleita, e Princeza herdeira dos Suecos, Godos e Vandalos: Grande Princeza de Finlândia, Duqueza de Ethonia, e de Carelia, Senhora de Ingria, &c. Ao Serenissimo Princepe, Irmaõ, parente e amigo nosso muito amado D. Joaõ, o quarto do nome, Rey de Portugal, dos Algarves, daquem e dalem mar em Africa, Senhor de Guiné, e das Conquistas, navegaçaõ, e Comercio em Ethiopia, Arabia, Persia, e India, &c. Saude, e prosperos sucessos.
Serenissimo Princepe, Irmaõ, parente, e amigo muito amado, o Embaixador do Conselho de V. Magestade, o Illustre, Magnifico, e generoso, de nós sinceramente amado, D. Francisco de Souza Coutinho, ha pouco, que chegou, pera nos manifestar alguns negocios, que lhe foraõ cometidos. Nós pello grande parentesco, e amizade, que por muito seculos ouve entre nossos predecessores gloriosissimos, os Reys de Suecia, e de Portugal, e entre huma, e outra naçaõ, conhecendo o divino beneficio da restituiçaõ feita a V. Magestade de seu hereditario Reyno, retido por alguns annos injustamente dos Reys de Castella, recebemos de boa vontade, o dito Embaixador, e delle ouvimos com muito gosto, o que pareceo a V. Magestade cometerlhe, assi pera nos declarar a rezaõ, e pera explicar o modo de restituiçaõ na dita Coroa, como também pera que acabada toda a antiga inimizade, por cuja culpa até agora esteve suspensa a amizade, e o comercio, se restituisse de ambas as partes, a sincera confiança, e firme amizade, e tornassem à antiga liberdade, o trato, e comercio antigo. Todas estas couzas, e as que dellas se seguem, e as maes, que o Embaixador de V. Magestade com destreza, prudencia, e discripçaõ, nos propos, e mostrou por escrito, declaramos naõ só como pedia a rezaõ, e o bem de nossas couzas; mas tambem como pareceo, que convinha ao grande afecto, que temos a V. Magestade, e a toda a sua Real Caza. E como naõ duvidemos, que o mesmo Embaixador relatará a V. Magestade com igual destreza este nosso afecto, e animo muy sincero, amigavelmente pedimos, o queira V. Magestade bem entender do dito seu Embaixador, e persuadir-se, que nós pella amizade restaurada, e pello trato do comercio restituido entre os subditos, e vassallos de huma, e outra naçaõ, avemos de fazer por amor de V. Magestade quanto nos for possivel por consolidar, e augmentar toda a boa correspondência. No maes com muito affecto encomendamos à divina protecçaõ a V. Magestade. Feita em nosso Paço Real Hocholmense, aos 30 de Julho de 1641.
Os Tutores, e Administradores da Sacra, e Real Magestade, e do Reyno de Suecia.
Petrus. Cõde em Jacobo de la Guardie Carolo Gylde 'hielm
Wissingsborg. R. S. Manichus. R. S. Ammirantins.
R. S. Drotzetus.
Aurelius Erenstierna
R. S. Cancelario
Gabriel Exenstiern. L. B. in
Marebij, & Lindholm
R. S. Thesaurario.
In Luís de Freitas Branco, D. João IV, Músico

O Restaurador

sábado, outubro 22, 2005

Antologia Improvável #66 - Augusto Oliveira Mendes

AMÉRICA

Brave new world encantador de franquias corrosivas
na mala-posta do desleixo
Não foi excessivo o som eléctrico de 1968
Bastou o canto inacabado de rapariga sofrida nos melancólicos campos do sul
Lara lá laralálá laralá laralálálá
Me and Bobby Mcgee
Vamo-nos encontrar afáveis
Perigosamente feridos como epílogo

In «Aracnismos», Bíblia, nº 12

Contracapa















Ainda para a Joana, esta fotografia de J. Shea da
contracapa do Night in the Ruts, dos Aerosmith:
da esq. para a dir.: Tom Hamilton, Steven Tyler,
Joey Kramer, Joe Perry e Brad Whitford (1979)

Night in the Ruts

Em 1979, os Aerosmith preparavam-se para entrar no vigésimo ano de existência. Em 2004 publicaram um álbum de covers , Honkin' on Bobo, uma revisitação a um património blues que nunca lhes foi alheio. Hoje quero falar deste meu LP, datado daquele ano. Primeiro, porque é do melhor bluesy-hard-rock americano da época, ainda muito pouco contaminado pela tralha mtv; depois, porque marca um fim de ciclo, a fase final dessa inocência do grupo de Boston, puros músicos duma certa América. Esta é a formação clássica dos Aerosmith, um quinteto composto por Steven Tyler (voz, harmónica, piano), Joe Perry (guitarras), Brad Whitford (guitarras), Tom Hamilton (baixo) e Joey Kramer (bateria). Tyler e Perry são dois executantes e dois compositores de excepção, funcionando regularmente em dupla. Nos nossos dias são peças do star system musical, mas do mais competente, mesmo assim, que este sistema tem. O mergulho nos blues e nos espirituais negros acima referido, mostra-nos essa fidelidade às raízes musicais.
Raízes que acabam por não ser exclusivamente americanas, como sabemos, através de um normal processo de transferência cultural. Quando grupos ingleses como os Beatles, os Rolling Stones, os Animals ou os Led Zeppelin -- que tinham bebido na música negra americana, dos blues ao rock, de Muddy Waters a Chuck Berry --, quando estes bifes talentosos penetraram nos Estados Unidos, influenciando uma série de jovens músicos desse lado do Atlântico, alguns deles aprenderam bem a lição e devolveram com acrescento o que os não menos jovens mestres europeus lhes haviam transmitido.
Night in the Ruts é, neste contexto, exemplar disso mesmo: do puro blues de «Refer head woman», com Tyler a evidenciar as excelentes capacidades na harmónica, até «No surprise», um r'n'b muito stoniano. O disco tem todo ele um pedal que passados estes anos continua a entusiasmar-me: por exemplo as guitarras poderosas de Perry e Whitford, um nada negligenciável guitarrista de apoio, em «Chiquita», «Three mile smile», «Remember (walkin in the sand)», e «Think about it» (mais covers, mais blues...), em que se percebe porque razão Joe Perry é um dos grandes lead guitarrists de toda a história do rock; e porque para além da pose que tanto encanta as adolescentes Steve Tyler (tem o carisma do cantor, ele é o rosto dos Aerosmith, tal como Jagger o é para os Stones e Bono para os U2), evidencia uma espantosa capacidade vocal, quase diria gutural, que se estende até ao que parece ser o limite das suas cordas vocais -- mas sem exibicionismo, pelo menos nesta fase ainda, antes com autenticidade.
Como circula cá em casa uma aerofã, a minha filha Joana, com todos os cd's de originais deles (teve inclusive o desplante de desdenhar do velho LP do seu velho pai, comprando o respectivo cd!...), posso dizer que embora os Aerosmith registem na sua discografia muitos e bons álbuns, todos eles com músicas marcantes, de «Dream on», do primeiro disco, Aerosmith (1973), a «Same old song and dance», de Get Your Wings (1974), passando por «Dude (looks like a lady)», de Permanent Vacation (1987), e por «Janie's got a gun», de Pump (1989), entre tantas outras ao longo destas décadas, apesar disso Night in the Ruts é um dos seus melhores trabalhos. Rock'n'roll?, hard-rock?, hard-blues? Who cares... It's only rock and roll, and I like it.

Aerosmith: Tyler e Perry

quinta-feira, outubro 20, 2005

Antologia Improvável #65 -Sophia de Mello Breyner Andresen (3)

PONTE DE SPOLETO

Sob os claros arcos da ponte romana
Onde ressoa ainda o passo das legiões imperiosas
Lá em baixo o leito do rio
Selvático e penumbroso
Interior às memórias insondáveis da alma

Maio de 1994

Musa

Sophia

quarta-feira, outubro 19, 2005

Gabo

Caracteres móveis #43 - Gabriel García Márquez

Olhou-me nos olhos, avaliou a minha reacção ao que acabara de me contar, e disse-me: Portanto, vai procurar agora mesmo essa pobre garota, mesmo que seja verdade o que te dizem os ciúmes, seja como for, que o que já viveu não te tira nada. Mas atenção, sem romantismos de avô. Acorda-a, fode-a até pelas orelhas com esse pau de burro com que te premiou o diabo pela tua cobardia e a tua mesquinhez. A sério, terminou com a alma: não vais morrer sem provar a maravilha de foder com amor.
Memória das Minhas Putas Tristes
(tradução de Maria do Carmo Abreu)

terça-feira, outubro 18, 2005

Adubo

O talento dos autores a que nos dedicamos é uma espécie de adubo que nos faz medrar. A nossa pequena notoriedade ganha-se à sua custa.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Antologia Improvável #64 - Joaquim Gomes Mota

MALAGUENHA

Noite, ampla viola e madrugada
Que o silêncio guarda e amadura,
Voz sem garganta, voz escura,
Que sonha em tudo sem pensar em nada.
Que mão caiu assim já tão cansada,
Que ao cair feriu com essa estranha
Palavra a boca, larga malaguenha
Corda sem som de dor já desplumada!?

Barcelona, 1944
Pássaro Azul

Castro em Vila Franca (6 e final)

Toda a obra de Ferreira de Castro está, pois, impregnada desse anarquismo. Ele é um libertário destacado, todos o sabiam na I República pelas posições tomou; todos continuaram a sabê-lo durante o Estado Novo, tanto na situação como na oposição. E sabiam-no os leitores.
O ponto de vista libertário está nos seus livros, não apenas desde Emigrantes, um manancial de assuntos, a começar pela questão da propriedade até ao tema da (ir)relevância da nacionalidade do proletário. Mas este questionamento, esta incomodidade de um escritor que se fez a si próprio num mundo espúrio, vem já desde esse ingénuo Criminoso por Ambição. E esse ponto de vista contempla o desdém pelo jogo político, o antitotalitarismo, o antimilitarismo, o anticolonialismo.
Idealista, fez uma profissão de fé num futuro redentor. Esse idealismo não estará, contudo, isento dos perigos das utopias que transformaram ideias libertadoras em sistemas de encarceramento. Parece-me, porém, que o libertário Ferreira de Castro, rebelde e inconformista, duma rebeldia viril sem autocomiseração, dificilmente cairia na armadilha dos pensamentos únicos.

Nota:
Serão lidas passagens de Emigrantes, Os Fragmentos e das «Mensagens» de apoio às candidaturas do MUD (1946) e de Norton de Matos (1949).

domingo, outubro 16, 2005

Jorge Amado

Correspondências #17 - Jorge Amado a Ferreira de Castro

Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1934.

Meu caro Ferreira de Castro.

Acabo de voltar ao Rio e encontrei na Ariel a sua última carta. Agradeço os seus conceitos sobre Cacau e Suor.
Venho de passar quatro meses na Baía, recolhendo um resto de material para um romance sobre negros. Chamar-se-á Jubiabá, nome de um macumbeiro de lá e espero fazer um livro forte, fixando nas duas primeiras partes -- Baía de Todos os Santos e -- Grande Circo Internacional -- todo o pitoresco do negro baiano -- música, religião, candomblé e macumba, farras, canções, conceitos, carnaval místico -- e toda a paradoxal alma do negro -- raça liberta, raça das grandes gargalhadas, das grandes mentiras e raça ainda escrava do branco, fiel como cão, trazendo nas costas e na alma as marcas do chicote do Sinhó Branco. A terceira parte -- A greve -- será a visão da libertação integral do negro pela sua proletarização integral. Que acha v. do plano?
Lhe envio um Boletim de Ariel onde falo em V. Aliás a nota está besta. Mas vale a intenção. V. recebeu meu artigo sobre Terra Fria? Acuse o recebimento.
Mande dizer o que v. está fazendo. Qual o livro que o preocupa no momento? V. tem um grande público aqui no Brasil. Aliás porque v. não envia pro Ariel uma nota sobre a nova literatura de Portugal? Aqui há um certo movimento intelectual que está fazendo alguma coisa. O público nos apoia intensamente. Compra nossos livros. A crítica, é natural, se divide em descompusturas e elogios. Mande o artigo. Porque v. não aparece aqui de novo? Pelo que depreendo dos seus livros v. esteve por aqui em 24. Gostaria de ser seu cicerone numa viagem longa através do Brasil. Vendo as casas coloniais da Baía. Material que em suas mãos daria romances como A Selva.
Me escreva. Agora não saio do Rio tão cedo. O Lins do Rego está em Maceió onde reside. Mandei em carta suas lembranças para ele.
Abrace o seu amigo e admirador
Jorge Amado
Boletim de Ariel
R. Senador Dantas -- 40 -- 5.º
Rio.
In Ricardo António Alves, Anarquismo e Neo-Realismo -- Ferreira de Castro nas Encruzilhadas do Século

Ferreira de Castro

Castro em Vila Franca (5)

Tendo, em parte dos seus livros, o povo como tema, não o povo pitoresco, mas indivíduos pertencentes a determinados grupos sociais desfavorecidos, do emigrante ao seringueiro, da bordadeira ao contrabandista, passando pelo marçano, o pastor ou o operário têxtil, Ferreira de Castro foi o primeiro grande escritor içado do proletariado a operar uma transformação na perspectiva ideológica duma cultura, conseguindo, dessa forma, inscrever o seu nome individual no património literário nacional comum -- o que, convenhamos, não é pequeno feito.
António José Saraiva sustentou que ele «é o primeiro escritor português que não usa gravata.» (Iniciação na Literatura Portuguesa, Mem Martins, p. 158). Isto, que é um altíssimo elogio num país de literatos amanuenses, não significa a ausência de um apuro formal mais do que apropriado à intenção que ele tinha de comunicar-se intensamente. Tal como Régio, ele sentia-se acima de tudo escritor, e via as suas ideias veiculadas pelos livros como formas de servir a arte, e não o contrário... Lembremos as passagens avassaladoras sobre a floresta amazónica em A Selva, as cumeeiras do Barroso em Terra Fria, a tempestade, em A Lã e a Neve, os intensos diálogos interiores em A Curva da Estrada ou em A Missão, a investida dos índios ao acampamento de Nimuendaju em O Instinto Supremo, o primor dos textos memorialísticos, entre outros. Como escreveu Manuel Rodrigues Lapa, na sua clássica Estilística da Língua Portuguesa (4ª ed., Coimbra, p. 124), Castro é «um dos nossos mais elegantes prosadores».
Façamos também aqui um parênteses a propósito de um qualificativo que se tem colado a Ferreira de Castro, que de tão repetido se tornou num lugar-comum. A designação costumeira de «precursor do neo-realismo». No contexto nacional ela é imprecisa e irrelevante. Porque ou há várias maneiras de entender o neo-realismo, em que está sempre subjacente um conflito, um desajustamento social, a luta de classes, uma «tensão de devir», como diria Mario Sacramento, ou o neo-realismo tem de ser visto como a expressão artística de um desígnio político, que é o estar pelo menos de acordo com as posições do PCP sobre os diversos domínios em que a vida se exerce. Num contexto lato, direi, então, que Castro foi talvez o primeiro escritor neo-realista português , e não apenas um precursor; se o entendimento for restritivo, Castro que sendo um comunista libertário, um anarquista kropotkiniano, nunca quis pertencer ao PCP, não é neo-realista, nem precursor do neo-realismo, nem o seu romance A Lã e a Neve, que muitos costumam referir como uma das obras referenciais desta corrente, a começar pelo próprio Álvaro Cunhal, pode, desta forma emparceirar com Fanga, de Alves Redol, ou os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes.
Claro que isto se prende com a matriz ideológica do escritor, essencial para o percebermos, e aos seus livros.
Como disse inicialmente, Castro foi um libertário, um anarquista. O que distingue os anarquistas de outros sectores revolucionários da esquerda é a sua resistência a tudo o que possa restringir a condição livre do ser humano, a única que lhe é natural. E esse tudo manifesta-se nas formas corecivas de organização social, cuja expressão última é o Estado, mas também nas organizações «adjacentes»: igrejas, forças armadas, partidos políticos, tudo enfim, que de alguma forma possa coarctar a expressão da individualidade. Daí que, regra geral, os anarquista se associem por grupos de interesses sócio-profissionais, tendo sido precisamente na área sindical que registaram maior êxito organizativo.
Mas culturalmente também, o anarquismo foi muito forte entre nós, durante a I República. Está ainda por conhecer por dentro o grupo de intelectuais que se exprimia em jornais como o Suplemento Literário Ilustrado do diário A Batalha, a revista Renovação e também o histórico semanário O Diabo, escrito e dirigido pelos anarquistas do grupo de Ferreira de Castro: Julião Quintinha, Jaime Brasil, Assis Esperança, Roberto Nobre, Mário Domingues, Nogueira de Brito, Pinto Quartim e vários outros.
(continua)


(rectificado em 18-X-2005)

sábado, outubro 15, 2005

Castro em Vila Franca (4)

Seguiu-se A Selva (1930). Livro intenso, poderoso, escrito com as entranhas, fruto da vivência dramática do seu autor, A Selva, aborda também um gravíssimo problema económico e social, o dos «retirantes» fugidos à seca no Ceará e no Maranhão em demanda de outros lugares que lhes permitissem viver, mas que no fundo só conheceriam um quotidiano de exploração e miséria. Tratando este assunto, Castro acabou porém por consagrar a floresta virgem como verdadeira e principal personagem, a realidade totalitária que esmaga o indivíduo, tornado um mero títere ao sabor do relacionamento imprevisível que os elementos vegetais estabelecem entre si naquele universo.
Narrativa única na nossa literatura, intensa, veio confirmar um notável escritor que com Emigrantes se houvera destacado da nulidade de um certo meio literato de jornalismo e cafés em que Lisboa era fértil. Ao mesmo tempo, começava a sucessão inusitada de edições d'A Selva noutros idiomas. Só para referir os anos trinta, aqui ao lado, Espanha, em 1931, uma casa de Barcelona lança a primeira versão castelhana. No ano aziago de 1933 sairia a edição alemã, com tradução de Richard A. Bermann, pseudónimo do escritor judeu austríaco Arnold Höllriegell, amigo de Stefan Zweig, que viria a evadir-se do seu país natal já após a anexação, vindo a morrer tuberculoso em Nova Iorque, em 1939, poucas semanas antes da data que combinara com Ferreira de Castro para ambos se reencontrarem ali, a salvo, na grande maçã... Esta tradução alemã foi fundamental para a difusão internacional do romance e do seu autor. Em 1934 temos edições no Brasil, na Checoslováquia (em checo) e em Itália; em 1935, no Estados Unidos e em Inglaterra; no ano seguinte, na Holanda e na Suécia, e até ao fim da década, uma tradução em servo-croata e a versão francesa de Blaise Cendrars, de 1938. É impressionante como um livro dum jovem autor de 32 anos, publicado numa editora de província de um país pobre e periférico, em 1930, conseguiu de forma tão rápida e tão incontestável um estatuto internacional.
Castro é um romancista consagrado. Os seus livros continuaram a granjear uma larga audiência e foram publicados no estrangeiro, com várias edições, sob várias formas (edições de bolso e clubes do livro): Eternidade (1933), Terra Fria (1934), A Tempestade (1940), A Lã e a Neve (1947), A Curva da Estrada (1950) A Missão (1954) e O Instinto Supremo (1968) foram as restantes ficções que publicou em vida.
As narrativas de viagens Pequenos Mundos e Velhas Civilizações (1937-38) e A Volta ao Mundo (1940-44) surgiram pela impossibilidade criadora a que Ferreira de Castro esteve sujeito pela Censura do Estado Novo. Impedido de escrever sobre o que lhe interessava, teve de enveredar por um género de tradição na literatura nacional. Também As Maravilhas Artísticas do Mundo (1959-63) acabaram por participar desse périplo planetário do escritor, constituindo-se agora como uma viagem interior pela progressão do Homem através da arte.
Há textos abundantes de Ferreira de Castro sobre a Censura, declarações e entrevistas em que se lhe opõe veementemente. Os seus livros póstumos testemunham-no: Os Fragmentos (1974), incluem o romance O Intervalo, escrito cerca de 1936, parte de um projecto mais vasto intitulado «Biografia do Século XX» e que Castro se viu forçado a abandonar pela impraticabilidade de publicação, uma vez que essa biografia mais não era que o relato ficcionado das ideias de emancipação dos homens seus contemporâneos. Outro texto castriano censurado, tendo ficado inédito durante quase sessenta anos, foi a peça Sim, Uma Dúvida Basta, que aborda o tema, ainda hoje actualíssimo, da pena de morte.
(continua)

Antologia Improvável #63 - Ana Maria Soares

VELHO AO PORTÃO

O tempo atravessa-o de saudade
E por isso espreita o portão fechado
Da antiga casa em ruínas

Restam grades
Arcadas em ferrugem
Muros de tela verde
E um imenso espaço devastado
Pelo caos de terraplanagens

Ofuscados pela Luz

Uma amiga que parte

Estou a passear pelos meus blogues favoritos e leio a notícia brutal num texto belo e triste. A Cristina Futscher Pereira, autora de «O Divino Almeida Garrett»
(http://odivino.blogs.sapo.pt/) morreu. Não a conhecia, mas acompanhava o seu Garrett desde que comecei a frequentar estas paragens. Notável o seu trabalho e dedicação. Cheguei inclusivamente a pensar criar um blogue semelhante para o meu Ferreira de Castro. Um dia, quem sabe, talvez siga o seu exemplo. Por agora, fica a minha homenagem e a minha lembrança.

Foto tirada de Arukutipa (http://arukutipa.weblog.com.pt)

sexta-feira, outubro 14, 2005

Jorge Reis

Tão calão, meu deus, e estupidamente distraído, que não tive a sensatez de escrever as duas linhas que se me impunham sobre o Jorge Reis, há dias enterrado no Père-Lachaise, e com quem privei várias vezes aqui em Cascais, onde ele tinha uma casa. Que figura!, que histórias!, que cultura!, que vida! O Matai-vos Uns aos Outros, prefaciado pelo Aquilino Ribeiro, é o seu livro mais conhecido, um thriller interessante, a escrita cuidada, noblesse oblige, pois então... Encomendem e leiam A Memória Resguardada (Editorial Escritor): o exílio e a clandestinidade: sobre a nudez forte da fantasia, o manto diáfano da realidade... Jorge Reis (pseudónimo de Atilano dos Reis Ambrósio), militante do PCP nos anos 40, muito indisciplinado ao que parece; sempre compagnon de route; amigo até às lágrimas de Vasco Gonçalves; maçon de grau trinta e... Uma vez convidei-o para falar, numa conferência cá em Cascais, sobre o autor de Andam Faunos pelos Bosques, que ele muito justamente idolatrava. «Paris, berço da língua de Aquilino?», era a pergunta e a tese dessa palestra, noite memorável na velha Torre de São Sebastião (Museu Condes de Castro Guimarães), casa cheia, Aquilino Ribeiro Machado presente, o Jorge Reis a falar sabiamente, apaixonadamente, calorosamente. Durante a conferência tirou uma pequena garrafa de uísque do bolso, e durante toda a sessão, enquanto falava com os circunstantes, tinha-a bem segura nas mãos, despejando de vez em quando o conteúdo no copo destinado à água do Luso.... Esta conferência está publicada, felizmente. O espólio dele -- o Jorge era de Vila Franca de Xira, terra de escritores!... --, espera-se que vá para o Museu do Neo-Realismo, que oportunamente lhe consagrou uma merecida exposição. Lembro-me doutra conferência memorável dele sobre o Dom Quixote, que pelo menos está gravada. Adorava os filetes de pescada do «Correio», na Areia, os melhores do mundo, dizia-me. O Jorge Reis deixou uma grande obra por fazer, notam os comentadores. Em quantidade, certamente. O que se dirá daqui a cem anos do Matai-vos Uns aos Outros e de A Memória Resguardada? Não estaremos cá para ler...

Castro em Vila Franca (3)

Sem qualquer conhecimento no meio jornalístico, resolveu permanecer em Lisboa, recomeçando do zero. Durante anos free lancer, condição em que foi eleito presidente do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa, colaborou incessantemente com reportagens, crónicas, contos, entrevistas nos principais órgãos da imprensa portuguesa dos anos vinte. Esta fase da sua vida, Ferreira de Castro evocou-a algumas vezes, uma das no texto em que recordou o grande amigo Reinaldo Ferreira, o célebre «Repórter X»:
«Sem honorários fixos, mal retribuídos os trabalhos avulsos, tínhamos de escrever por mês, para vivermos, dezenas e dezenas, mais, muito mais duma centena de artigos, novelas, contos e crónicas, que publicávamos em numerosíssimas revistas e jornais de Lisboa, ilhas, colónias e Brasil.» (O Livro do Repórter X, Lx., 1936)
Ao mesmo tempo ia editando uma série de títulos que viria a eliminar da sua tábua bibliográfica, por terem deixado de representar a sua maneira de se exprimir. Mas... (1921), Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil, Sangue Negro (1923), A Boca da Esfinge (com Eduardo Frias, 1924), A Morte Redimida, Sendas de Lirismo e de Amor (1925), A Epopeia do Trabalho, O Drama da Sombra, A Peregrina do Mundo Novo (1926), A Casa dos Móveis Dourados e O Voo nas Trevas (1927) são os livros desta primeira fase, hoje só encontráveis em alfarrabistas, com raridade.
Estes livros reflectiam, por um lado a contemporaneidade conturbada da década, os anos da velocidade, a idade do jazz-band, como lhe chamou António Ferro, outro dos seus grandes amigos de então, um frisson magazinesco que corria em paralelo com temas que hoje classificaríamos como «fracturantes»: feminismo, racismo, eutanásia... Por outro lado, assistimos a uma motivação ideológica que se manifesta principalmente em jornais como A Batalha e revistas como Renovação, ambos da central sindical anarco-sindicalista CGT.
Esta tensão virá a desembocar no final da década (1928) no romance Emigrantes, em que o autor pretende dar voz aos que não têm voz, historiar aqueles que não têm lugar nas crónicas oficiais. Daí o nome colectivo do romance e da personagem principal,Manuel da Bouça, uma personagem arquetípica. No prefácio da 4ª edição escreverá:
«Biógrafos que somos das personagens que não têm lugar no Mundo, imprimimos neste livro despretensiosa história de homens que, sujeitos a todas as vicissitudes provenientes da sua própria condição, transitam de uma banda a outra dos oceanos, na mira de poderem também, um dia, saborear aqueles frutos de oiro que outros homens, muitas vezes sem esforço de maior, colhem às mãos cheias.» [Emigrantes, 24ªed., Lx, pp. 14-15.]

(continua)

quinta-feira, outubro 13, 2005

Roberto Nobre, «Salomé»















Museu de Faro

Caracteres móveis #42 - Roberto Nobre

Fazer arte é mentir com talento.
Horizontes de Cinema

Castro em Vila Franca (2)

«Foi esse momento tão extraordinariamente grave para o meu espírito, que desde então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como, após a evasão frustrada, se volta, de cabeça baixa e braços caídos, a um presídio.» [«Pequena história de "A Selva"», A Selva, 32ª ed., Lx., p. 19]
Apesar de ter feito o seu tirocínio na extracção gomífera, até 1914 Castro exerceu essencialmente as funções de caixeiro do seringal, pela feliz circunstância de saber ler, escrever e contar, subtraindo-se, assim, ao rigor da extracção do látex no meio da brenha, condicionalismo que talvez fosse fatal para uma criança ainda tão pequena.
Na Amazónia começou a escrever para jornais regionais, portugueses e brasileiros, e lá redigiu o primeiro romancinho, intitulado «Amor de Simão», cujo título definitivo viria a ser Criminoso por Ambição, o primeiro da sua bibliografia, dado à estampa em fascículos em Belém do Pará no ano de 1916, vendidos pelo autor de porta em porta...
Logrando sair da selva, ao contrário de muitos que por lá ficaram presos às dívidas que contraíram ou debaixo daquela terra perigosa, o jovem Ferreira de Castro teve muito que penar antes de conseguir alguma estabilidade. Foi um sem-abrigo em Belém, recorreu a diversos biscates, colou cartazes, embarcou num navio que fazia o curso de cabotagem entre a capital do Pará e a Guiana Francesa. O tempo de que dispôs, empregou-o na biblioteca pública belenense, onde se autoeducou lendo os clássicos.
A pulso enveredou pelo jornalismo, tendo, em 1917, fundado e dirigido um semanário destinado às comunidades lusas de Belém e Manaus, intitulado Portugal. Entretanto havia publicado uma pequena peça, Alma Lusitana (1916), com o conflito luso-alemão de Naulila em pano de fundo.
O regresso de Ferreira de Castro não está ainda completamente esclarecido, tanto mais que conseguira alguma projecção como jornalista e literato nesses estados brasileiros de forte presença portuguesa. A explicação mais plausível e natural será a do peso da saudade que sobre ele se terá exercido, saudade da família e da terra natal que visitará logo após a sua chegada a Lisboa, em 1919.

(continua)

quarta-feira, outubro 12, 2005

Antologia Improvável #62 - José Luís Peixoto

SETEMBRO, FIM DE TARDE

a varanda era o respeito e o silêncio de onde a casa se erguia.
a minha mãe talvez fosse a sua própria voz. eu era muito novo.

a paisagem e a vida diante de mim. os pombos levavam o
meu peito em círculos no céu.

e havia uma fonte, porque há sempre uma fonte distante
na voz da minha mãe.

A Casa, a Escuridão

José Luís Peixoto

Lá vem ele outra vez

A Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo e a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira vão levar a cabo uma exposição sobre o Ferreira de Castro e tiveram a gentileza de convidar-me a proferir umas palavras sobre o autor de A SELVA. Dia 18 de Outubro de 2005, às 18 horas, na Biblioteca Municipal (estão todos convidados).
A exemplo do que fiz para o Congresso Internacional sobre os 75 Anos de «A Selva», vou maçar-vos e alinhavar aqui umas generalidades, tal como generalista é o tema proposto: «Ferreira de Castro, Vida e Obra».

Castro em Vila Franca (1)

Na primeira metade do século XX houve um nome que se destacou por uma atitude cultural, cívica e moral, tornando-se num ponto de referência sem paralelo duma ética libertária entre nós. E por diversas razões:
Em primeiro lugar, a circunstância de este nome, que é o de Ferreira de Castro, ser simultaneamente um autor de larguíssima audiência interna, e também o mais lido o mais traduzido do seu tempo, proeminente durante cerca de quarenta anos -- um tempo imenso. Esta difusão dos seus livros, além dos seus textos de ocasião, das suas entrevistas, dos seus depoimentos amplificavam a mensagem essencial de liberdade que perfilhou.
Outro aspecto que contribuiu para tornar Ferreira de Castro num caso à parte foi a circunstância de ele, anarquista e escritor, aparecer, senão isolado, pelo menos muito minoritário na cena cultural portuguesa, em que dominavam, por um lado, a acção oficial e oficiosa do Estado Novo, em especial através de António Ferro e do Secretariado da Propaganda Nacional, e por outro uma cultura de oposição em que se procurava hegemonizar um cânone neo-realista, configurado pelos jovens intelectuais ligados ao PCP. Após o 28 de Maio de 1926, o anarquismo e a sua vertente sindicalista, muito forte entre nós, definha inexoravelmente; na década de trinta, o atentado contra Salazar, protagonizado por Emídio Santana, e a greve-geral da Marinha Grande, já com o concurso de militantes comunistas, são uma espécie de canto do cisne do libertarismo organizado. Isto sem embargo das correntes minoritárias, com maior ou menor importância cultural e literária, dos republicanos históricos aos antigos integralistas, e de gente que circulava entre um e outro lado. E havia ainda os que não se misturavam, não por sobranceria mas por razões de princípio. Lembremos o caso de José Régio, um caso exemplar, um dos mais notáveis escritores portugueses do seu tempo e a forma como ele teve de lidar com as pressões de um e de outro lado, pese embora os protestos da maior admiração e respeito que ambos os lados faziam, o que, ironicamente, por vezes era até verdade...

José Maria Ferreira de Castro nasceu a 24 de Maio de 1898 nos Salgueiros, uma aldeia da freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, filho de caseiros humildes.
A infância, marcada pela morte do pai, decorreria, contudo, com uma previsível normalidade, até à altura em que, engrossando a tradicional corrente migratória para o Brasil, se decide pela ida para a antiga colónia, corria o ano de 1911. Ao que parece, uma paixoneta juvenil não correspondida por uma rapariga muito mais velha, Margarida, levaram-no à audácia duma decisão inusitada para uma criança ainda imberbe de doze anos incompletos.
Chegado a Belém do Pará já no período da crise da borracha, recomendado a um vago parente que não o amparou como seria de esperar, foi o pequeno Zeca mandado para o seringal «Paraíso», em plena floresta virgem, nas margens do rio Madeira, braço do Amazonas. Nesse magnífico texto de memórias que é a «Pequena história de "A Selva"», Castro lembrou, dolorosamente:

(continua)

terça-feira, outubro 11, 2005

Caracteres móveis #41 - Jane Austen

Pese embora os meus atributos estéticos estejam hoje em dia consideravelmente suavizados e, de algum modo, debilitados pelos desafortúnios que sofri, fui em tempos bela. Porém, por muito bela que tenha sido, as graças pessoais eram a menor das minhas perfeições. De todos os feitos comuns ao género feminino, eu detinha a mestria.
Amor e Amizade
(tradução de Inês Fraga)

Jane Austen

segunda-feira, outubro 10, 2005

Jordi Savall

Stella splendens

Devo a Jordi Savall alguns dos momentos de mais intenso prazer estético de toda a minha vida. Não me posso esquecer de que o primeiro contacto que tive com a música de Jean-Baptiste Lully, o compositor de Luís XIV, se deu através do seu ensemble Le Concert des Nations. Neste preciso momento estou a ouvir a voz etérea de Montserrat Figueras entoando Maria Matrem, composição do Llibre Vermell de Montserrat, manuscrito da abadia medieval catalã do mesmo nome. E volto a face do LP desta outra formação célebre de Savall, o Hespèrion XX, e ouço o tutti em Stella splendens, com a abertura do alaudista Hopkinson Smith, seguida dos sopros e das percussões. Quão humana, meu deus, é esta música celestial...

Montserrat Figueras

domingo, outubro 09, 2005

Antologia Improvável #61 - Sophia de Mello Breyner Andresen (2)

PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não.
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Mar Novo

Sophia

sábado, outubro 08, 2005

M. Teixeira-Gomes




















Retrato por Marques de Oliveira
(http://pinturaportuguesa.blogs.sapo.pt)

Correspondências #16 - M. Teixeira-Gomes a João Chagas

Londres, 11 de Agosto de 1911
Querido Amigo:
Cruzaram-se as nossas cartas de ontem. -- Antes de sair de Lisboa, falando ao Camacho na possibilidade de se lembrarem de mim, em qualquer aperto para a pasta dos Estrangeiros, declarei-lhe categoricamente que nunca a aceitaria, e a haver quem, por tal motivo, me acoimasse de mau patriota, eu recolheria definitivamente ao meu buraco, de onde não sairia mais. Ficou assim o B. Camacho com procuração bastante para decidir o assunto e dou-lhe também a você no mesmo sentido, acrescentando que essa pouca energia e o resto de saúde que eu ainda conservava em Lisboa, se esgotaram quase completamente, tendo hoje como certo que, posto na alternativa de aceitar a pasta dos Estrangeiros, ou dar um tiro na cabeça, preferiria, sem a mínima hesitação, o tiro. Isto é positivo e daqui não haverá influências humanas ou divinas que me demovam. Aceitando o posto que ocupo dei ao País muito mais do que podia e devia dar.
O homem que está indicado para os Estrangeiros é o A. de Vasconcelos. Fala-se nele; é que ele aceita e quer. Com as suas amarras ao Bernardino, ao Camacho e ao Costa, considere-o você já ancorado no Terreiro do Paço. É inteligente, activo e culto; fará portanto bom papel político e de quando em quando operação cirúrgica rendosa, o que também tem importância.
A situação aqui vai de mal a pior. Naturalmente a impressão que eu dou aos portugueses que passam pela Legação é optimista, mas a verdade é que a situação é péssima.
O F. de Andrade, que esteve aqui mais 15 dias e conversou com toda a gente que tem negócios connosco, é da mesma opinião.
Que quer, não se faz coisa alguma para nos aplanar o caminho. Se eu ainda não consegui que se nomeasse vice-cônsul um homem de grande influência e respeitabilidade, que tem aguentado a Câmara Anglo-Portuguesa (atacado por todos os lados pelos nossos inimigos) e nos tem prestado relevantíssimos serviços, entre eles a organização de representações ao Governo inglês para fazer o modus-vivendi no sentido em que o desejamos. Esse homem suspira por essa honra vertiginosa há 10 anos, mas o grande Batalha de todos os Reis, que lhe não convinha por motivos de pecúnia, a existência dum vice-cônsul -- sempre lhe deu para trás e continuará dando. A propósito desse nome faustoso: falei-lhe tempos atrás na esperança que ele acalentava (em família) de ir a ministro dos Estrangeiros. Riu-se você sem dúvida desdenhosamente. Pois riu-se fora de propósito. Ele aduz em favor dos seus direitos, além da brilhante carreira diplomática universalmente conhecida, a circunstância de, aí pelas alturas de 1520 (sic), quando se preparava uma das infinitas revoluções platónicas de que José Elias Garcia e outros tiraram privilégio de invenção, ter sido solicitado para entrar no primeiro Ministério, sobraçando aquela pasta, para o que, expressamente o viera a Londres convidar o nosso tão venerável quanto profético Junqueiro. Dessa vez recusou com a mesma nobreza com que agora a requer.
Queixa-se você do calor e que ainda tem banhas. Já derreti as minhas, de modo que não há perigo de ver a pena escorregar-me pelos dedos, que são verdadeiras tenazes de coiro batido.
Seu do coração
Correspondência I -- Cartas para Políticos e Diplomatas
(edição de Castelo Branco Chaves)

João Chagas

sexta-feira, outubro 07, 2005

Caracteres móveis #40 - Primo Levi

[Hermann Langbein] Escreveu numerosos livros, um dos quais é soberbo, «Hommes et Femmes à Auschwitz» onde evoca não apenas as condições de vida dos presos, mas também as dos outros, dos que viviam fora do campo. Eles também eram mulheres e homens, e os relatos que ele faz dos casos clínicos mais ou menos sérios dos SS parecem-me algo de novo, de importante e de raramente evocado. Ele mostra-nos como, num universo odioso, quase todos se comportavam sem, no entanto, serem monstros, poucos doentes mentais e torcionários, a maioria cumpria a disciplina com uma indiferença cansada. Não os encantava terem de matar pessoas, mas eles aceitavam-no, eram o produto de uma escola.

O Dever de Memória

(tradução de Esther Mucznik)

Primo Levi

quinta-feira, outubro 06, 2005

Antologia Improvável #60 - Agostinho Neto

ÓPIO

Casaram-me com a tristeza!

A minha terra
negra e de sol
-- a minha Mãe --
que entoa magoadas melodias
em noites de festa
quando a lua ri
e a enigmática floresta
farfalha ritmos de jazz,
-- a minha Mãe --
deu-me Tristeza em casamento
quando nasci.

Não tive infância
nem mocidade
não tive a alegria
da primeira idade
por causa deste noivado prematuro
e senil.

Meus pesados dias são ilusões
meus prazeres amarguras
a Felicidade e a Vida
sonhos.

A Renúncia Impossível

Agostinho Neto

quarta-feira, outubro 05, 2005

Não há volta a dar-lhe

Fazer nome à custa dos grandes autores é uma forma de parasitismo. Mesmo pelas melhores intenções, por mais satisfatórios que sejam os resultados.

Yes

Isabelino

Há quem chame rock progressivo à música dos Yes. Eu prefiro a designação «rock isabelino». Rock com madrigais dentro.

Provas de existência

A grande evasão

Mas o que eu delirava com os Patinhas que os meus pais me traziam aos sábados!... Como eu adorava aquelas capas! Que escapadela à chatice da escola: o brejo do Quincas, do Zé Grandão e do Lobo Mau, a Paris dos Aristogatos, Patópolis, o Mundo...

terça-feira, outubro 04, 2005

Antologia Improvável #59 - Tiago Gomes

SAÍDA DAS FÁBRICAS

Lá vamos os dois
com a multidão
ao cair da tarde
saindo das fábricas
a caminho de casa
até ao fim do nosso pedaço de terra
onde começa o abismo
que nos corrói a pele.

Viola-me Eléctrica

Um Sobrevivente do Tarrafal

Vejo-o velho
anarquista digno
e austero casaco
abotoado sem
gravata nem
dentes.
Quase pede licença para falar.
Chega-me um
hálito de morte
com a sua voz
sumida. Não me importa
tanto o que diz
nem como o diz.
A figura é tudo.
24-V-2003

Ditado


Cada sentença, sua cabeça.

Renault 8












Também aqui a minha recordação é ténue. O carro pertence ao meu Avô Zé, ele está no lugar do condutor, eu ao colo do meu Pai, no chamado lugar do morto. Parados. Era cinzento, não me recordo se metalizado ou fosco. A viatura da minha evocação será aí de 1967, o ano de fabrico do que está acima reproduzido.

Ferro

Figuras de estilo #12 - António Ferro

A Europa, assustada pela sirène lúgubre, no pavor dos aviões inimigos, viveu na treva, durante a guerra. O jazz-band foi a sirène da Paz. A América, minhas Senhoras e meus Senhores, é, neste momento, a luz eléctrica do Mundo!
A Idade do Jazz-Band

StuartJazz

Posted by Picasa

O velho Anatole

Caracteres móveis #39 - Anatole France

Naquele tempo, muito mais intimamente do que hoje, os demónios metiam-se na vida caseira. Visitavam com assiduidade, as casas; escondidos na caixa do sal, na panela da manteiga ou em qualquer outro retiro, espiavam as pessoas e esperavam a melhor ocasião para as tentarem e para as induzirem no mal. Também os anjos, então, faziam entre os cristãos mais frequentes aparições.
O Milagre de S. Nicolau
(tradução de Paulo Braga)

Bass Guitar Hero

Ainda estou para ouvir outro guitarra-baixo como o Chris Squire, dos Yes.

Chris Squire

segunda-feira, outubro 03, 2005

Antologia Improvável #58 - Bocage

SENTIMENTOS DE CONTRADIÇÃO,
E ARREPENDIMENTO DA VIDA PASSADA

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana;

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos:

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Retrato Próprio

Bocage

domingo, outubro 02, 2005

Figuras de estilo #11 - Ramalho Ortigão

Nunca as pompas da realeza e os cerimoniais da corte captaram a predilecção dos seus gostos simples. A sua casa do Vidigal, que ele mesmo edificou e em cujo retiro rural tanto se comprazia, em nada se diferença da de qualquer mediano lavrador alentejano. Aí frugalmente se alimentava da rude cozinha local, e habitualmente vestia, como os seus abegões, a jaqueta de burel e os ceifões de pele de borrego, podendo dizer na língua chã, predilecta do fundador da sua dinastia: -- «A mim todo o alimento me sustenta, todo o pano me cobre, toda a roupa me serve.»
Rei D. Carlos o Martyrisado

A ramalhal figura

sábado, outubro 01, 2005

Viana da Mota

Correspondências #15 - Viana da Mota a Fernando Lopes-Graça

Lisboa 3 de Abril 1936
Meu caro Senhor Graça
O Prado demorou imenso tempo a entrega das suas composições, depois levou ainda bastante tempo a encontrar o Sassetti, por isso só hoje lhe venho participar o que consegui do Sassetti.
Está pronto a editar as suas Variações, pelo gosto de ter nas suas edições uma obra sua, mas diz que o retraimento crescente do público não lhe dá esperança de cobrir as despesas de impressão. E que para obras vocais ainda a venda é mais resumida do que para o piano. Apesar da obrigação que incluímos no Conservatório de se apresentar uma peça portuguesa nos cursos superiores de piano e de canto a venda é limitadísima porque os alunos emprestam uns aos outros os exemplares.
Sei que este resultado não corresponde ao seu desejo, entretanto aconselho-o a aceitar a proposta do Sassetti, pois, embora as Variações não dêem, no seu entender, o aspecto exacto da sua personalidade actual, não fica por elas mal representado, visto serem m.º características e pessoais.
Infelizmente o Sassetti não pode, atendendo às despesas de impressão e pouca probabilidade de venda suficiente, oferecer-lhe nenhuma comissão.
Diga-me para onde quer que lhe mande as peças de canto e a Cena e dança.
Com os melhores cump.os
seu ded.º
J. VIANNA DA MOTTA
Não vi ainda a sua nota sobre os Nocturnos. Pode dizer-me em que n.º do Diabo ela saiu? M.º lho agradeceria.
Fernando Lopes-Graça, Opúsculos (3)

Fernando Lopes-Graça