quarta-feira, julho 27, 2005

São só uns dias...

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Caracteres móveis #29 - Ferreira de Castro (3)

E se um dia, peregrinos da desilusão, descontentes com os homens, tiverdes de procurar um refúgio carinhoso, procurai bater à porta duma dessas casas que se erguem nas encostas das montanhas da Córsega. Não importa que não conheçais quem nelas vive. Não vos perguntarão de onde vindes nem para onde ides. Desde que se compreenda que sois estrangeiro, a porta abrir-se-á e a casa será vossa. E, então, surgirá um paradoxo: no meio desta gente de tão terrível fama pensareis melhor dos homens.
Canções da Córsega

Castro

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terça-feira, julho 26, 2005

Almoço

Hoje, no meio de vulgares turistas, almoçava um grupo de rapazes e raparigas de uma dessas instituições sociais. Toscos por fora, lindos por dentro, pareceu-me. As histórias de cada um, só as poderemos conjecturar.

O outro erro

Pensar que a perfeição era concebível pelo Homem, através da ideia dada de Deus, foi o outro erro de Descartes.

domingo, julho 24, 2005

Antologia Improvável #35 - Jorge de Sena

FESTA ALEGÓRICA

O bobo do imperador Maximiliano
organizou uma festa alegórica
que o povo e a corte de soberano à frente
saborearam em grandes gargalhadas:
juntou na praça todo o cego pobre,
prendeu a um poste um porco muito gordo,
e anunciou ganhar o dito porco aquele
que à paulada o matasse. Os cegos todos
a varapau se esmocaram uns aos outros,
sem acertar no porco por serem cegos,
mas uns nos outros por humanos serem.
A festa acabou numa sangueira total:
porém havia muito tempo que o imperador
e a corte e o povo não se riam tanto.
O bobo, esse tinha por dever bem pago
o fabricar as piadas para fazer rir.

SB, 7/1/74

40 Anos de Servidão

Sena

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sábado, julho 23, 2005

Caracteres móveis #28 - Netchaiev

O objectivo é sempre o mesmo: destruir o mais rapidamente e o mais seguramente possível esta ignomínia que é a ordem universal.
Catecismo Revolucionário
(tradução de José Gabriel)

sexta-feira, julho 22, 2005

Antologia Improvável #34 - Camões

Foi já num tempo doce cousa amar,
Enquanto me enganava a esperança;
O coração, com esta confiança,
Todo se desfazia em desejar.

Oh! vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana uma mudança!
Que, tanto é mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que há-de durar.

Quem já se viu contente e prosperado,
Vendo-se em breve tempo em pena tanta,
Razão tem de viver bem magoado;

Porém, quem tem o mundo experimentado,
Não o magoa a pena nem o espanta,
Que mal se estranhará o costumado.

Sonetos

(edição de Maria de Lurdes Saraiva)

Luís Vaz

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quinta-feira, julho 21, 2005

Amanhãs que cantam

Para lá, Tomorrow never knows, última faixa do cd dos Beatles, Revolver; para cá, ponho a tocar Tomorrow Is the Question, de Ornette Coleman. Temas gravados em 1966 e 1959, respectivamente. Ouvir hoje música de ontem, sendo ainda hoje música de amanhã.

Sempre with The Beatles!

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Ornette Coleman

Posted by Picasa Tomorrow is the question!

Caracteres móveis #27 - Thomas Mann

Entregou-se completamente ao poder que lhe aparecia como o mais sublime sobre a terra, ao serviço do qual ele se sentia: o poder do espírito e da palavra, que impera sorridente sobre o inconsciente e muda vida. E com a sua jovem paixão entregou-se a ele; e ele recompensou-o com tudo o que tinha para oferecer e levou-lhe implacável tudo aquilo que costuma levar como prémio.
Ele aguçou-lhe o olhar e deixou-o entrever as grandes palavras que enchem o peito humano, abriu-lhe a alma humana e a sua própria, fê-lo clarividente e mostrou-lhe o interior do mundo e por fim aquilo que está por trás de palavras e acções. Mas o que ele viu, foi isto: o cómico e a miséria, o cómico e a miséria.
Tonio Kröger
(tradução de Cláudia Gonçalves)

Thomas Mann

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quarta-feira, julho 20, 2005

Antologia Improvável #33 - António Gedeão

POEMA DO SER INÓSPITO

No cúbiculo estreito onde a criança
dorme no homem como um ser inóspito,
duplas são as paredes e, na boca,
uva de moscatel, açaime de aço.
Dorme, criança, dorme.
Não deixes ficar mal os que acreditam
no mito da inocência.
Dorme, e espera que os homens se aniquilem
enquanto dormes.
Reduz-te a imaginar como serão as flores,
os insectos, as pedras, as estrelas,
e tudo quanto é belo e se reflecte
nos olhos das crianças.
Imagina um luar que cresce e aquece
e faz da tua carne flor de loiça,
orquídea branca que o calor não cresta.
Imagina, imagina.
Mas, sobretudo, dorme.

Poemas Póstumos

Aliás, Rómulo de Carvalho

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terça-feira, julho 19, 2005

Táxi!

Nostálgico, folheio um velho álbum de BD, da desaparecida Editoril Íbis: Strapontam e o Monstro de Loch Ness, com desenhos de Berk -- extraordinários estes nomes flamengos que soam a arroto... -- e texto de Goscinny. Se o humor deste não é ainda tão refinado como viria a revelar-se em Astérix ou Lucky Luke, por exemplo, não fica nada atrás do praticado em Iznogoud, e faz sorrir. A criança que eu era fascinava-se com as deambulações deste inofensivo motorista de táxi pela país do uísque e de «Nessie»...

Strapontam

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Antologia Improvável #32 - Fernando Assis Pacheco

Juntei-me um dia à flor da mocidade
partindo para Angola no Niassa
a defender eu já não sei se a raça
se as roças de café da cristandade

a minha geração tinha a idade
das grandes ilusões sempre fatais
que não chegam aos anos principais
por defeito da própria ingenuidade

a guerra era uma coisa mais a Norte
de onde ela voltaria havendo sorte
à mesma e ancestral tranquilidade

azar de uns quantos se pagaram porte
esses a que atirou a dura morte
diz-se que estão na terra da verdade

Lisboa
28-IV-94
Respiração Assistida
(edição de Abel Barros Baptista)

Fernando Assis Pacheco

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segunda-feira, julho 18, 2005

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (19 e final)

--Me deixa sua peste! Me deixa já! Não foi por ti nem pelos outros como tu que perdi a minha alma e vou para o inferno! Foi porque seu Juca te fez escravo e aos outros safados que te acompanham. Se estivesse no tronco, como tu, o feitor que me batia lá no Maranhão, eu também matava a seu Juca. Negro é livre! O homem é livre!
[...]
-- Me mande matar, se quiser, branco. Eu já sou muito velho e não preciso de viver mais...
Cap. XV, 32ª ed., p.287.
Última fala do negro Tiago, uma das personagens-chave de A Selva. Antigo escravo, velho coxo a quem os seringueiros tratavam por «Estica», de propósito para ouvi-lo praguejar dolorosamente, a todos proibia a alcunha excepto ao patrão, Juca Tristão, a quem tudo permitia, o que não impediu que o matasse. É Tiago quem lança fogo ao seringal após o aprisionamento de seringueiros fugitivos, de quem Alberto fora cúmplice na fuga, um deles o caboclo Firmino. Capturados por outros seringueiros -- episódio que suscita a Ferreira de Castro um extraordinário trecho --, são amarrados e açoitados no tronco, tal como sucedia, no tempo da escravatura, àqueles que eram apanhados. A passagem acima citada começa com a resposta a um dos seringueiros libertos pela acção de Tiago, um dos que lhe chamava «Estica» e queria agora, muito humanamente, agradecer-lhe o gesto . Um clic tinha-se produzido no velho e submisso Tiago, que se insurge da forma mais extrema. É esta insurreição, a destruição pelo fogo do algoz, que termina o calvário daqueles pobres diabos. A primeira leitura é óbvia: em situações extremas, justifica-se a eliminação do opressor. O que viria a seguir, Ferreira de Castro não nos diz, porque sabemos que a mesma exploração iria continuar, exercida por outrém sobre aqueles trabalhadores. A esperança reside num amanhã redentor, longínquo, mas que há-de vir. Em Novembro de 1929, o escritor terminava assim o seu romance: «O clarão perdia terreno: já não se via o bananal, apagavam-se ao longe os contornos da selva, o rio fundira-se na noite e os troncos cinzentos das palmeiras começavam a vestir-se de luto. Quando chegasse a manhã, derramando da sua inesgotável cornucópia a luz dos trópicos, haveria ali apenas um montão de cinzas, que o vento, em breve, dispersaria...» (Cap. XV, 1ª ed., p. 333)
O vento varre as cinzas dos escombros e limpa o terreiro para o que a seguir virá.

Perfeição

É da condição dos seres imperfeitos aspirarem à perfeição.

Máxima

Para estimar, tenho de admirar.

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (18)

«[...] E se Juca descobrisse? Se descobrisse que fora ele quem fornecera a lima?»
[...] «E se descobrisse?» Os nervos entumeceram-se-lhe numa súbita coragem. «Fizera muito bem! Fizera muito bem!» -- repetiu a si próprio. -- «Aqueles homens já não deviam nada. Há muito tempo que tinham pago, quatro ou cinco vezes mais do que o seu justo valor, tudo quanto haviam consumido. Era uma exploração em cadeia. A casa aviadora explorava Juca, ele, por sua vez, explorava os seringueiros, que eram, no fim, os únicos explorados. Mas Juca podia, ao menos, protestar, enquanto que aos seringueiros nem sequer isso seria permitido.»
Cap. XV, 32ª ed., p. 263.
Nota: A passagem em itálico não consta da edição inicial. Embora uma certa crítica tivesse papagueado que nos livros de Ferreira de Castro não havia luta de classes, entre outros disparates, Castro terá achado por bem, em edições posteriores, explicitar melhor a natureza das relações económicas do circuito trabalhador-patrão-intermediário. Daqui resulta algum aligeirar do peso da carga predatória do patrão, dado, apesar de tudo como uma peça da engrenagem. Não por acaso. Em Castro é difícil encontrar maniqueísmo. No capítulo anterior, a propósito do famigerado Juca Tristão, concede-lhe um natural estatuto de humanidade, com as suas claridades e as suas sombras: «Era certos que os homens são bons ou maus conforme a posição em que se encontram perante nós e nós perante eles; e falso o indivíduo-bloco, o indivíduo sem nenhum contradição, sempre, sempre igual no seu procedimento.» (Cap. XIV, 32ª ed., pp. 258-259). Esta posição, que é explorada noutros romances, como A Lã e a Neve (1947), faz com que a visão do mundo dada por Ferreira de Castro através dos seus livros fuja ao esquematismo dogmático, intolerante, prisioneiro de uma doutrina determinada e, por conseguinte, não-livre.

Glenn Tilbrook

guitarrista e vocalista dos Squeeze
foto de Bob ValleauPosted by Picasa

In quintessence

Ao ouvir o quarto álbum dos Squeeze, East Side Story, datado do já distante ano de 1981, recordei o pop mais pop da new wave britânica. Os Squeeze tiveram na sua formação inicial o pianista Jools Holland, autor do meu programa preferido, o «Later with J. H.», da nunca por demais louvada B.B.C. Rock da melhor tradição beatle, muito cantarolável. Fez-me recordar uns versos da variante m de A Passagem das Horas, de Álvaro de Campos, extraídos da também nunca por demais exaltada edição crítica de Teresa Rita Lopes, o Livro de Versos: «Faz tocar a banda de bordo -- / Musicas alegres, banaes, humanas, como a vida --».

domingo, julho 17, 2005

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (17)

-- Você, então, é monárquico mesmo?
-- Fui, fui.
-- Ah, aderiu à República?
-- Não. Hoje não me satisfaz nem uma coisa nem outra. Tenho aprendido muito nos últimos tempos. Sobretudo depois que vim para aqui.
-- Então?
-- Não sei. É um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida a Humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. Mas a evolução é coisa tão lenta e a vida de cada um tão pequena, que eu, às vezes, penso que a sede de justiça que há por toda a parte acabará por marchar à frente...
E como lesse a incompreensão no rosto de Juca:
-- Quando estamos fora da nossa terra, perdemos, quase sempre, a paixão política. Eu, hoje, sou diferente do que fui... Sinto que mudei bastante. Há muitas coisas que eu não dava por elas e agora dou. Penso que têm razão os que querem um mundo mais justo.
Cap. XIV, 32ª ed., p. 259.

Seringueiros no rio Madeira

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A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (16)

Alberto não lhe dava atenção. Prendia-o a carta materna, com a notícia de que os republicanos haviam, enfim, resolvido amnistiar os insurrectos de Monsanto.
[...]
«Os republicanos... Os monárquicos...» Tudo aquilo lhe soava imprevistamente a oco, longínquo e sem sentido. Arrefecera-lhe a paixão, as suas antigas ideias pareciam-lhe de tempos remotos, dum outro eu que se perdera e esfumara na lonjura. Examinava agora, a sangue-frio, a sua causa vencida e nenhum ódio guardava para os adversários que combatera anos antes. [...] Cada vez sentia menos o domínio das teorias que o haviam forçado a emigrar e parecia-lhe mesmo que sobre elas se iam condensando, de modo ainda mal definido, uma razão diferente e um sentimento de justiça nova, mais profunda e mais vasta. «Em muitas das suas expressões, a vida rastejava ainda, em tanto mundo e ali mesmo, à altura dos pés humanos; e não era decerto com os velhos processos, já experimentados durante dezenas de séculos, que ela poderia ascender aos níveis que o cérebro entrevia. Não era, decerto, no que estava feito, era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar, talvez, o melhor de si próprio.»
Cap. XII, 32ª ed., pp. 225-226.
O redentorismo libertário tem aqui uma eloquente expressão, com a rejeição da divisão política, superficial ou dogmática, em favor de uma ideia mais vasta de ascensão comunitária projectando-se num futuro: «era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar, talvez, o melhor de si próprio.» Sem messianismo, como às vezes se diz, mas antes com uma convicção profunda na capacidade de auto-superação do género humano: a libertação do homem tem de ser feita pelo próprio homem. Este humanismo não se queda em especulação de gabinete, mas abre-se à acção; é, por isso, voluntarista, reactivo, proactivo, revolucionário, libertário, anarquista.

Figuras de estilo #8 - Nicolau Tolentino

Os meus versos, que nunca foram bons, soarão agora muito pior aos ouvidos de V. Excelência, bem acostumados àquelas doces Poesias, as melhores que no seu género enobreceram o nosso bom Século de Quinhentos; mas, como neste papel faço a figura de poeta e de pretendente, contento-me de que V. Excelência, já que não pode achar doçura nos meus versos, ache justiça no meu requerimento; e espero do seu benigno coração que o homem infeliz ache hoje aos pés de V. Excelência aquele acolhimento que não deve esperar o mau poeta.
Memorial oferecido a D. Diogo de Noronha, depois conde de Vila Verde - Obras Selectas de Nicolau Tolentino
(edição de Augusto C. Pires de Lima)

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (15)

A mesa, que adivinhava lá dentro, com toalha branca, cristais e vinhos, enquanto ele comia na cozinha, ainda de mãos engelhadas pela água onde lavara as garrafas, provocava-lhe nova humilhação. [...] que pensaria o pai, se ainda vivesse, com aquele seu orgulho de velho general, que o lugar-tenente do rei exilado recebia de quando em quando, ouvindo-lhe respeitosamente as sugestões para a restauração da monarquia? Com uma severa ideia de classes, habituado a ser obedecido e servido, sem pensar nos que lhe obedeciam e serviam, que diria ele se o visse ali, àquela mesa, como outrora a criada lá de casa? A criada era um ser à parte. Ela e mesmo os homens que trabalhavam na quinta do Minho onde a família ia passar o Verão, aquela quinta, pequena mas tão simpática, que o pai herdara e depois vendera, quando os seus frequentes auxílios às conspirações monárquicas lhe criaram dificuldades de dinheiro, porque dava mais do que podia, mais até do que davam muitos que eram ricos».
[...] «Se não fosse a sua generosidade, sempre que se tratava de ressuscitar a monarquia, ou se houvesse aceitado gordas situações em bancos e poderosas companhias, à sombra da república, como alguns fizeram, o pai não teria deixado, ao morrer, apenas o seu montepio de austero militar e ele não se encontraria agora ali, a sofrer a vida dos miseráveis e dos escravos. [...]
De cara sem ruga de enfado, João levava agora a cafeteira e as chávenas para a sala. Seguindo-lhe os movimentos de servo, Alberto associou-os aos da velha criada da casa paterna, que sempre tolerara pacientemente os seus caprichos de filho único e sempre, até o fim, o tratara por «meu menino». Essa recordação incomodava-o agora, pela primeira vez e dum modo que até aí desconhecia: «Eu próprio tratava a Maria como um ser à parte».
[...]
Levantou-se também.
-- Não quer mais nada?
-- Não, senhor João. Muito obrigado. -- E sentiu uma súbita ternura pelo cozinheiro, como se através dele a veiculasse para a velha Maria, ainda ocupando o seu espírito.
Cap. IX, 32ª ed., pp. 189-191.
Dois aspectos importantes a sublinhar: o progressivo sentimento de fraternidade de Alberto para com os que se encontram numa situação adversa, como lhe está a suceder; a evocação do pai, velho general monárquico honrado, que, ao contrário de outros, não caiu no regaço da República triunfante: o regime de hoje acolhia e promovia os inimigos de ontem, indício de que as questões essenciais não estariam na natureza dos regimes.

Seringueiro

Extracção do látex na Amazónia
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A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (14)

Alberto recordava o diálogo com Juca e parecia-lhe que ele próprio fora mais humilde, na voz e nos gestos lisonjeiros, do que havia sido com o tio Macedo, mesmo com o Aragão, como se a miséria e os vexames padecidos lhe houvessem deteriorado a dignidade; e essa admissão agravou de repente o seu mal-estar.
Cap. IX, 32ª ed., pp. 180-181.

Sebastião da Gama

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Antologia Improvável #31 - Sebastião da Gama

O SONHO

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

--Partimos. Vamos. Somos.

Pelo Sonho É que Vamos

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (13)

Alberto e Firmino acercaram-se. Lourenço jazia sobre uma esteira, no pequeno terreiro, e do crânio fendido saía a massa encefálica. Mão piedosa havia-lhe limpo o rosto. Tinha os olhos abertos, como que parados num último assombro; e os curiosos mais propensos à afeição reconstituíam ainda, no último jeito dos seus lábios, a ternura, feita de ignorância e de renúncia, com que recebia os seringueiros em dia de sorte no lago. Aos pés, a mulher contorcia-se em altos gritos e sobre o peito a filha ocultava a boca soluçante.
Alberto quedou-se a observá-la. Era dez réis de gente, corpito por desabrochar, braços franzinos aos quais se ofereceria uma boneca -- e só um cérebro desvairado pensaria em que ela tinha também um sexo.
[...]
«Senhor juiz, senhores jurados...» A lembrança desses mudos exercícios retóricos, quando de noite caminhava sozinho nas ruas silenciosas que o levavam a casa, trouxera-lhe de novo a sua angústia de pária. Antegozava, então, o êxito de advogado jovem que se impõe rapidamente, que se imporia, sobretudo, na acusação dos grandes crimes, com adjectivos de violência e combate que melhor se ajustassem ao seu temperamento.
Agora, porém, haviam-se desfeito os sonhos de triunfo, tudo falhara e ele sofria como se as suas próprias ideias fossem realmente como o queriam os adversários -- um crime a espiar! Evocava o assassino, evocava o meio em que vivia e a imaginada eloquência morria-lhe no cérebro, deixando uma herança incómoda.
Cap. VIII, 32ª ed., pp. 165-166.
Um seringueiro, Agostinho, mata Lourenço, um tendeiro que se recusara a autorizar que aquele desposasse a sua filha de dez anos. Agostinho é uma personagem particularmente asquerosa, a mesma que pratica um acto de zoofilismo sexual com uma égua, descrito no capítulo anterior, o que não torna fácil a conclusão do narrador. À frente haverá maior clareza quanto ao que representa a justiça penal numa organização social desajustada.

sábado, julho 16, 2005

O «cárcere verde»

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A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (12)

Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir a pele de fera. [...]
Cap. V, 32ª ed., p. 106.
Nota: selva metafórica e selva literal, em ambas presente a necessidade vital de superação, na «luta desesperada de caules e ramos».

Zweig

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Caracteres móveis #26 - Stefan Zweig

Setenta mil pessoas da região do Ceará que, por causa de uma seca repentina, têm de abandonar os seus domínios, são engajadas ou, falando-se com mais sinceridade, compradas pelas companhias, e de Belém enviadas rio acima, em embarcações, para aqueles ermos. É que vai começar um terrível sistema de exploração naquelas regiões, que distam tanto das leis e da vigilância quanto outrora os vales auríferos de Minas Gerais. Embora não sejam escravos, esses seringueiros praticamente são mantidos em escravidão, por contratos de trabalho e pelo facto de os empresários, ainda não satisfeitos com o lucro obtido na borracha, venderem a esses infelizes trabalhadores, presos no «cárcere verde» da floresta virgem, os artigos e os víveres de que eles precisam, por preços quatro a cinco vezes superiores ao seu valor. Quem quiser conhecer todos os pormenores do horror desse período, leia o admirável romance de Ferreira de Castro, que, com grandioso realismo, descreve essa vergonhosa época.
Brasil, País do Futuro
(tradução de Oldilon Galotti)

A SELVA como expressão das ideias libertárias deFerreira de Castro (11)

Quando o seringueiro tinha «saldo», vendia-lhe tudo quanto ele desejasse; fosse loucura rematada ou objecto inútil [...]. Mas se o trabalhador, por curta estada ali, por doença ou preguiça não conseguira solver a dívida inicial, que rebentasse de fome, pescasse ou caçasse, pois não lhe forneceria nada para além do valor da sua produção. «De sem-vergonhas que tinham morrido antes de liquidar o débito ou que fugiram como cães, sem que ninguém os apanhasse, havia largo cadastro no seringal, a demonstrar quanto eram perigosas as transigências impostas por dó do coração.»
[...]
Mas com os «brabos», ignorantes do que era e não era indispensável, Juca Tristão procedia de maneira diferente. Ele próprio organizava a lista do aviamento: o boião a defumar, a bacia para o látex, o galão, o machadinho, as tigelinhas de folha, todos os utensílios que a extracção da borracha exigia -- e mais um quilo de pirarucu e uns litros de farinha, pois nos primeiros dias nunca um «brabo» sabe como se caça a paca e a cotia ou se pesca o tambaqui.
Aquele era sempre o «talão grande», ao qual se juntavam posteriormente as despesas da viagem e mais empréstimos que prendiam por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingénuo.
Alberto viu-se com o seu na mão -- setecentos e vinte-mil réis parcelados por seis ou oito linhas -- e depois sobre o balcão, meia dúzia de coisas que lhe pareceram não valer um pataco. [...]
Cap. IV, 32ª ed., pp. 91.92.
Nota: Chamo a atenção para o que escreveu sobre isto Stefan Zweig, um ou dois posts acima.

Eça em Paris

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Figuras de estilo #7 - Eça de Queirós

Nesta Quaresma, em Paris, na Madalena, igreja rica de burguesia rica, o ardente pregador dos dominicanos, o padre Didon, exclamava com santa cólera: -- «Quando vejo uma criancinha em farrapos, que chora com fome, odeio, como Jesus, meu amo, e como Ele amaldiçoo todos os repletos e todos os fartos!» E na nave da rica igreja, atulhada de repletos e de fartos, passou um longo frémito, como se, ante os farrapos e os choros da fome evocados, todos os corações concorressem no ódio e na maldição do nobre dominicano! Daí a dias Ravachol lançava a sua segunda bomba. E entre todos os repletos e todos os fartos foi grande o temor e grande a grita... Temor de quê, -- de Ravachol? Não. Temor da emoção que, na Madalena, os impelira a compartilhar a maldição do padre Didon, que, no seu púlpito e sob o seu hábito, era já Ravachol -- menos a irracionalidade e menos a nitroglicerina.
Primeiro de Maio
(edição de A. Campos Matos)

sexta-feira, julho 15, 2005

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (10)

O comendador Aragão era célebre em toda a Amazónia, pela sua enorme fortuna, vastidão de negócios e curiosa biografia. Fora dos que viera de tamancos, rude, analfabeto, as nádegas juvenis sempre expostas aos pontapés dos superiores, nessa época, ainda não muito distante, em que o comércio português dentro e fora da metrópole, se caracterizava por vida autoritária e rotineira. Casando a humildade com a esperteza, de marçano ascendera a caixeiro e, mais tarde, o amo, tendo de ir curar o fígado a Portugal, entendera que a melhor forma de não ser desfalcado pelos empregados, enquanto estivesse ausente, era fazer de um deles seu sócio. Aragão levara o negócio a grandes prosperidades e quando, anos depois, o abandonou, foi para se dedicar a outro mais rendoso. À mercearia sucedera um escritório de comissões e consignações -- porta aberta para todas as grandes fortunas, nesse tempo em que não era simples metáfora chamar-se oiro negro à borracha.
Cap. III, 32ª ed., p. 68.
Nota: um retrato de self made man, retrato mesquinho, sem o lado negro que se verá em Juca Tristão. É em Manaus que Alberto pede emprego ao «comendador» Aragão, chegando a invocar a sua condição de exilado político. O mesquinho Aragão, ao contrário do que esperara Alberto, recrimina-o por não tratar da sua vidinha, em vez ter andado «aos tiros e às revoluções». Para aliviar a consciência da recusa, oferece uma esmola a Alberto, que orgulhosamente recusa.
Fiquemos, para já, com um primeiro retrato de Juca Tristão, o dono do seringal «Paraíso»:
Baixo e com o sangue megro, graças a sucessivos cruzamentos, já insinuando apenas a sua remota existência, o dono do Paraíso, de mãos papudas rebrilhando anéis, mal disfarçava, sob o sorriso que lhe abria as faces largas, o olhar duro e enérgico, agora sombreado pelo chapéu.
Cap. IV, 32ª ed., p. 84.

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (9)

Ia a voltar-se para encarar quem punha dúvida na sua resolução, que era firme, mas logo se deteve numa atitude de orgulho juvenil. Tanto como aquele que cerceava a liberdade, indignava-o a alma submissa dos que acatavam, silenciosa e passivamente, a ordem iníqua. «Iria! Iria, custasse, o que custasse!»


Cap. III, 32ª ed., pp. 64-65.

Nota: Aportados a Manaus, numa escala, os futuros seringueiros são proibidos de desembaracar para uma simples visita à cidade pelo angariador de mão-de-obra, Balbino. O trecho referido, referente à atitude de Alberto em não acatar essa reflecte um espírito de insubmissão e rebeldia, além de desgosto pela passividade dos restantes trabalhadores.

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (8)

Os olhos inexperientes não encontravam referência nestas margens aparentemente sempre iguais, na vegetação que se repetia, senão na espécie, no entrançado, despersonalizando o indivíduo em prol do conjunto, único que ali se impunha. Cada curva se parecia com outra curva, cada recta com a recta antecedente; onde não exisitia barraca ou cidade, o espírito quedava-se, perplexo, a formular a pergunta íntima: «Já passei aqui ou é a primeira vez que passo aqui?»

Cap. III, 32ª ed., pp. 57-58

Nota: abordagem de um tema fundamental, o da importância do indivíduo em face do colectivo.

Figuras de estilo #6 - Albino de Forjaz Sampaio

Pratica sempre o crime, consciente, reflectido, dissimulado. Sê sempre mau e faz sugerir aos outros que és bom, sê sempre torpe dizendo-te honesto. Nada de violências. Hipócrita, cauteloso e subtil, conseguirás tudo, serás tudo, terás tudo. Uma hora de amor duma casada, uma condecoração, um emprego, a confidência dum segredo que compromete, dum vício que aviltece.
Para isso é necessário saberes insinuar-te, que a questão está em ter manha.
Dissimula rindo, ri ferindo. As tuas ambições, os teus egoísmos, os teus vícios e as tuas qualidades, tudos isso se mascara. Chama-se fidalguia à ambição, ao egoísmo desinteresse e ao vício honradez.
É só trocar os rótulos ao sentimento.

Palavras Cínicas

Albino de Forjaz Sampaio

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A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (7)

Alberto já conhecia, da sua permanência no Pará, aqueles nomes que os colonizadores portugueses transportaram, outrora, para longínquas plagas, juntamente com arcaicas peças de artilharia e uma sôma formidável de ambições. Contudo, agora, a recordação dêsse passado, que a distância cobria de fausto e de heroismo, sabia-lhe bem, adoçava-lhe os lábios, a alma era como uma íntima, uma silenciosa vingança contra a indiferença que cearenses e demais matulagem revelavam pela sua condição de civilizado.
Quando estava em Portugal, o passado surgia-lhe apenas em exemplo político a seguir, em lição que urgia decorar e manter para felicidade do país. Mas era só riqueza colectiva o que êle encontrava no luzimento pretérito da raça, de que dava notícia a história. Não a sentia nem a gosava individualmente. [...]
Com o seu desdem pelos rebentos dos descobridores, os brasileiros com quem êle convivera tinham-no levado a um exacerbado patriotismo. [...]

Cap. II, 1ª ed., p. 41.

Aznar, Bush e Blair...

As palavras-de-ordem nas manifestações, da esquerda, pelo menos, são muito prosódicas e devedoras da poesia popular. Foi o que me ocorreu naquela célebre manif contra a guerra no Iraque, que tem andado deveras irritante neste blogue que se pretende pacífico (mas não pacifista). A palavra-de-ordem do momento era: «Aznar, Bush e Blair / esta guerra ninguém quer!»:

Quando eu era jovem, as massas industriaram-me na poesia popular.
SOARES LADRÃO / ROUBA O PÃO
alertavam-me as paredes
com a força das convicções
e dos erros ortográficos.
Por vezes os versos eram brancos
embora vermelhos
por vezes eram brancos.
Assim o muro da recta do Dafundo
SOARES LADRÃO AMDA A ROUBAR O DINHEIRO DO POVO GATUNO VAI PARA A RUA JÁ!
podíamos ler nos idos de 70
e até algum 80.
Ainda hoje a poesia popular me persegue.

3-VII-2003

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (6)

A sua epiderme contraía-se sob a força do asco que o convés imundo lhe causava. Sentia-se inadaptado, estranho ali, quase inimigo das vidas que o cercavam, aparentemente alheias a tudo quanto não fossem imposições do corpo e aderindo, resignadas, a todas as contigências.
Magoava-o a facilidade com que outros recrutados dormiam tranquilamente um sono que era, para o egoísmo dele, quase uma afronta.
E sorria, depreciativamente, ao pensar no apostolado da democracia, nos defensores da igualdade humana, que ele combatera e o haviam atirado para o exílio. «Retóricos perniciosos! Queria vê-los ali, ao seu lado, para lhes perguntar se era com aquela humanidade primária que pretendiam restaurar o mundo. Via-se o que tinham feito! Tudo na mesma, sempre a mesma violência, a demagogia até. E ainda havia os que queriam ir mais longe no desvario, destruindo fundo os caboucos sociais, desmoronando uma obra construída e cimentada pela velha experiência dos séculos. E para quê? Para quê? Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o Mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida colectiva a beleza e a elevação que ela podia ter? Se a possuíssem, se tivessem sensibilidade, não estariam adaptados como estavam àquele curral flutuante. Mas não. Mas não. Era o seu meio e, se as transplantassem, ficariam tímidas, desconfiadas e murchas, como bichos selvagens nos primeiros dias de jaula. Ele e os seus, declarados inimigos da igualdade, defensores de élites, eram bem mais amigos dessa pobre gente do que os outros, os que a ludibriavam com a ideia duma fraternidade e dum bem-estar que não lhe davam nem lhe podiam dar. Só as selecções e as castas, com direitos hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com autoridade inquebrantável -- um rei e os seus ministros a mandarem e todos os demais a obedecer. O resto era fantasia maléfica de sonhadores ou arruaceiros. (...)
Cap. II, 32ª ed., pp. 46-47.
Nota: O extremar de posições é-nos dado pelos preconceitos da personagem principal, Alberto, um estudante de Direito, monárquico insurrecto de Monsanto, e por isso exilado; e um conjunto de gente ignara, acomodada naquele «curral flutuante» e conduzida em pura inércia de sobrevivência, um pouco o que acontece com os rebanhos. Não por acaso as noções de fraternidade e bem-estar, palavras-chave das doutrinas de revolução social, aparecem ligadas neste contexto de animalização dos futuros seringueiros, contrário, por isso, à sua intrínseca dignidade de homens. Este conceito de dignidade, geral e individual, é fundamental em Ferreira de Castro.

quinta-feira, julho 14, 2005

Drummond

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Antologia Improvável #30 - Carlos Drummond de Andrade

CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te -- de vez -- nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

A Rosa do Povo / 65 Anos de Poesia

(edição de Arnaldo Saraiva)

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (5)

Os novos habitantes do Paraíso foram descendo, em friso, a prancha que ligava o cais ao navio. Alguns adequavam motejo ao receio dos outros, quando eles estendiam o braço para o companheiro da frente, em solidariedade pueril de caminhantes em corda bamba.
Lá dentro, como se aproximassem da escotilha quando uma lingada descia, o mestre fê-los deter com voz rude e imperiosa. Quedaram-se um momento hesitantes, depois rumaram para a esquerda, seguindo Alberto, que ali descobrira refúgio.
O convés, ao contrário do de cima, era húmido, sujo e escorregadio. Dir-se-ia que visco fluido e repulsivo se exalava de toda a parte, estendendo-se sobre a pele, furando até os poros.
-- Fiquem aqui, que logo que o vapor acabe de carregar se armam as redes -- disse Balbino, antes de subir para instalar-se na primeira classe.
Estavam ali já outros tabaréus ignaros, gente destinada a vários seringais do Madeira, lá longe, onde o mistério insinuava bom futuro. Alguns levavam as mulheres e os filhos e, mesmo antes de aninhar-se, davam sensação de promiscuidade -- farraparia, miséria errante, expressões mortiças de sofredores.
Cap. II, 32ª ed., pp. 42-43.

Ou nós ou eles,

escreve Pacheco Pereira na edição de hoje do «Público», a propósito dos acontecimentos de Londres. E eu, eu concordo... Com pena, pois, se ainda me lembro, o articulista foi um dos apoiantes da investida contra o Iraque, com lindos resultados, o que, aceitemos, não lhe retira o acerto da análise, ao contrário de Soares, que esteve do lado correcto, mas espalhando-se ao comprido nos últimos comentários, sobre umas famigeradas causas, que como já aqui escrevi, só lateralmente têm que ver com o que se passou. Defendamo-nos, pois, com tudo o que temos à mão, como diz Pacheco Pereira: «tropas, polícias, agentes de informações, à dentada (...)», se for preciso. É brutalmente simples, reconhece, mas não deixa de ser realista. Ao contrário, Helder Macedo, pessoa, escritor e intelectual respeitabilíssimo, também hoje na «Visão», http://www.visaoonline.pt/, parece-me que incorre nos erros de apreciação do costume, ao avisar-nos, com legítima preocupação, em relação aos excessos, em particular dos demagogos e duma tropa fandanga que lhes está adjacente. Tolerância, democracia, está tudo muito bem, creio que os ingleses serão os últimos a cair em tentações estranhas. Não lhes peçam, porém, que se deixem imolar. Ou somos intolerantes com a intolerância ou, aí sim, capitularemos.

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (4)

Ao farfalhar do patriotismo, venha do Norte ou do Sul, da Europa ou da América, sobrepõe-se sempre no meu espírito uma causa mais forte, uma razão maior: a da Humanidade.

Do «Pórtico», 1ª edição

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (3)

Eu devia êste livro a essa Amazonia longínqua e enigmática, pelo muito que fez sofrer os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida. E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extracção da borracha entrega a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Livro bárbaro, como a vida que enquadra, como o scenário que lhe serve de fundo, êle completa em muitos pontos, à margem do entrecho, o meu romance «Emigrantes».
Num, a paísagem ridente do sul do Brasil; noutro a paísagem magestosa do Norte. Em «Emigrantes», o exílio pelo estômago; neste, o destêrro pelo espírito. E nos dois, a uni-los indissoluvelmente, a luta pela vida, a conquista do pão, a miragem do oiro -- um oiro negro que é miséria, sofrimento e quimera com que os pobres se enganam. (...)
Do «Pórtico», 1ª edição
Nota: as naturais referências aos seringueiros, «à gente sem crónica definitiva», objecto das preocupações sociais do autor. A conquista do pão é um dos mais conhecidos e importantes livros do príncipe Piotr Kropótkin, uma das grandes figuras da história do anarquismo, influência decisiva em Ferreira de Castro, sobre quem, de resto, projectou escrever uma biografia, nos anos 30, a pedido do poeta brasileiro Martins Fontes, um devoto do libertário russo.

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (2)

Entre 28 e 31 deste mês irá decorrer em Oliveira de Azeméis um congresso internacional sobre este livro magnífico de Ferreira de Castro. Participarei com uma comunicação sobre as ideias anarquistas do escritor. Até lá, postarei passagens do romance susceptíveis de serem trabalhadas por esse prisma, com eventuais comentários ou anotações. As edições utilizadas serão a 1ª, da Livraria Civilização, Porto, 1930 e a 32ª, de Guimarães & Cª. Editores, Lisboa, 1980.

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (1)

Posted by PicasaCapa de Bernardo Marques
Livraria Civilização,
Porto, 1930

quarta-feira, julho 13, 2005

Franja

A franja esconde
-te os olhos grandes.
O vestido justo molda
-te as coxas exuberantes,
tão descaradas como
os teus grandes olhos
escondidos pela franja.

VI-2003

terça-feira, julho 12, 2005

Antologia Improvável #29 - Fernando Jorge Fabião

Há casas profundas
onde resplandecem linhos desfeitos
passos de mulher
casas cheias de doçura
orações esquecidas
lâmpadas ardendo como conchas
casas com colinas de água por dentro
e contos de fadas
e anjos perplexos na caligrafia dos quartos
há casas atravessadas
por um dom luminoso e feroz
por um júbilo de rosas
e portas por abrir


Pedras Salgadas
21 de Agosto de 1999
Nascente da Sede

Eolo

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Song of Aeolus

A propósito das nortadas de Cascais, Eça de Queirós escreveu certa vez a sua mulher que a vila era a «caverna de Eolo», deus dos ventos. Quem conheça Cascais e a fama do Guincho sabe que é assim; e quem por cá vive, experimentou-o bem na passada semana. Veio-me este arrazoado meteorológico quando ouvia o álbum Softs (1976), dos Soft Machine, grupo britânico de fusão, e em particular a faixa intitulada «Song of Aeolus», da autoria do teclista Karl Jenkins. Nela sobressai o guitarrista de então, John Etheridge, apesar de tudo um guitar-heroe do rock, por muito jazzística que tivesse sido esta progressiva banda.

John Etheridge

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segunda-feira, julho 11, 2005

Caracteres móveis #25 - Musset

Sei muito bem que neste mundo há calamidades que eu não poderei evitar; lamento as que não conheço, mas se sei de alguma devo tentar minorá-la. Por mais que faça, é-me impossível ficar indiferente perante a dor.
Mimi Pinson
(tradução anónima)

Alfred Musset

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domingo, julho 10, 2005

Antologia improvável #28 - Alberto de Lacerda

Café

Espiral de energia

Explosão silenciosa
Do prazer

Yèvre-le-Châtel
26 de Junho 90
Átrio

sábado, julho 09, 2005

Antero retratado por Columbano

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Correspondências #7 - Antero de Quental a sua Mãe, Ana Guilhermina da Maia Quental

Coimbra 29 de Julho 1858.
Minha querida Mamã.
Depois de tantos trabalhos e sustos chegou finalmente o dia, em que dando um suspiro de alivo pude descansar sem cuidados; e por isso é que lhe escrevo debaixo da agradável impressão de ter feito os exames e de me achar habilitado com os exames de Instrução Primária, Francês, Latim, Lógica, Retórica, História e Geografia, Geometria, e Introdução aos três Reinos da Natureza, e apto para me matricular em qualquer Faculdade, a qual será a que o Papá e a Mamã escolherem.
Estou pois muito contente, não só pelo facto em si, como também pela alegria que com isto terão todos os que por mim se interessam; e muito aliviado pois o fim do ano é o maior Cabrion que um pobre Estudante pode ter.
Agora pois estou em Férias, e espero passá-las descansado, e lendo algum livro que possa instruir-me, sem contudo ter o peso da Ciência: agora que lancei a Ciência nas certidões, posso-me entregar um pouco aos meus passatempos favoritos de Literatura e Poesia: são estes os meus divertimentos nesta terra, e confesso que tem para mim milhares de atractivos, e que os prefiro a todos os outros.
Agora estou eu fazendo uma pequena tradução em verso, e em estando pronta lha mandarei, visto que a Mamã tem a suma bondade de ler as minhas modestas rabiscas.
Não sei se passarei aqui as férias: eu desejava ir uns 15 dias à Figueira, tomar banhos e passear, pois esta vida de Estudante não só é monótona e incómoda, mas também pode fazer mal sendo contínua: por isso mesmo é que se fizeram as férias, tempo de descanso: além disso o meu estado de saúde pede esta pequena viagem: não que eu tenha doença alguma grave, mas ando sempre com pequenos achaques tais como dor de cabeça, febre, constipação, etc. Já vê a Mamã que preciso espairecer, e mesmo os ares do mar fazem-me iludir um pouco, e transportam-me pelo pensamento aos belos e saudosos tempos que aí passei. Quem me dera já o ano que vem, para lá ir, como o Papá me prometeu: enfim será quando Deus quiser!
Também lhe quero pedir um favor -- Daqui até Novembro, tempo em que começam as aulas, precisava ler alguns livros de Literatura filosófica, para não ir para a Universidade com os olhos fechados sobre este ramo das Letras, que é necessário pela relação íntima que tem com todos os outros: precisava pois comprar esses Livros, e é o favor que lhe peço, o pedir ao Papá que me mande dinheiro para eles, que, para os que por ora preciso, não será necessário mais que 5 ou 6 mil réis. Isto devia eu ter pedido directamente ao Papá, mas não sei que acanhamento me deu, que tenho vergonha de lho pedir, enquanto que à Mamã lho peço com mais confiança.
Peço-lhe me recomende muito a todos; Manas, André, Prima Anica e Beza: a esta última peço lhe dê um abraço da minha parte.
Adeus minha querida Mamã
deite a sua benção ao seu
Filho muito obediente e amigo
Antero
Cartas I
edição de Ana Maria Almeida Martins

Vincent Herring

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